domingo, 18 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6178: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (9): Os dias da batalha de Guidaje, 27 e 28 de Maio de 1973

1. Continuação da apresentação deste que é um dos documentos narrativos mais pormenorizados dos trágicos acontecimentos de Guidaje em Maio de 1973, publicados no nosso Blogue, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), em boa hora enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:


Os Marados de Gadamael

e os dias da Batalha de Guidaje


Parte IX

Daniel de Matos

Os Dias da Batalha


27 de Maio

Sou mandado chamar à secretaria. Sou, isto é, ninguém reclama o meu nome, querem é a presença do “mais-velho” graduado dos pelotões da CCaç 3518. Lá fui, não por ser “mais-velho” de nada, mas por ser o único dos seis graduados que vieram do COMBIS que ainda podia andar com relativa ligeireza. Um alferes (não me lembro de o ter visto antes, deve ser da CCaç 19) pede-me que mobilize quatro soldados que devem apresentar-se ali uma hora depois, para ajudarem a sulcar novas covas, pois o comandante decidiu mandar enterrar os defuntos que restavam na enfermaria. E repete-me as explicações que é possível dar: a situação é insustentável, não se prevêem evacuações, o cheiro já não se aguenta… Sim, é evidente que serão também sepultados os homens da minha companhia. E devo preparar uma secção que, tão ataviada quanto possível (os mais limpinhos e com camuflados menos rasgados?), irá prestar as honras militares durante o funeral, porém, sem salvas de tiros para o ar, para se evitar o charivari da cerimónia anterior com os camaradas pára-quedistas, e também para que o IN não contabilize de ouvido o número das nossas baixas.

Dói-me participar nos enterros do Machado, do Telo e do Ferreira, particularmente nestas condições. E não se sabe quanto tempo irá durar a débil respiração do Gonçalves. Meu caro, – advertiu o alferes, – é o que tem de ser feito e não há que hesitar. Apesar de compreendida, às primeiras impressões a solução não é bem aceite. Dizem-me os soldados em tom de revolta que fazem e acontecem e que levam os corpos às costas até Bissau, e por aí fora! Deixar os corpos em Guidaje é que está fora de causa. Mais tarde, conformam-se, alguns de lágrimas nos olhos.

À hora marcada, transportam-se os corpos para o local que, embora já conhecido por cemitério “provisório” de Guidaje, tem um número reduzido de sepulturas. De facto, não alberga a maioria das vítimas da batalha que travamos, nomeadamente os comandos tombados durante o assalto a Koumbamory, enterrados algures.

Os dez voluntários de Os Marados de Gadamael a quem dei refrescamento prévio de “ordem unida” já se encontram perfilados junto aos jazigos cavados durante a manhã, comigo à frente. Apesar da profunda tristeza, foi caricato ter passado o resto da manhã a treinar manobras com as G3 com estes homens, até que atinassem, e mal, com a posição de funeral-arma, difícil de efectuar devido ao maior número de movimentos de braços que é preciso efectuar. Haviam-na treinado uma única vez, na recruta. Quase dois anos depois e numa ocasião destas, a motivação para treinos de ordem unida também não é muita…

Outros homens, em especial os membros da companhia, concentram-se nas imediações para um último olhar, uma despedida dos camaradas que viram a vida ceifada pela morteirada filha da puta. Experimentem enterrar um irmão no quintal para perceberem o que isto é! Jazem neste quintal de casa alheia, logo adiante, os restantes corpos que já referi. Todas as campas têm espetadas em cima cruzes de pau, e já existem outras cruzes prontas para serem espetadas na vertical sobre os novos defuntos que, por agora, estão deitados no chão, embrulhados em panos de tenda, lençóis, penso que também em rolos de gaze e adesivos, cada qual frente à cova que não sabemos se será a sua derradeira morada. Chega o tenente-coronel Correia de Campos, pela posição em que me encontro, à frente dos soldados já perfilados, percebe que serei eu a gritar as palavras de comando e faz-me sinal com o pingalim para que inicie a cerimónia.

Grito “firme”, “sentido”, etc., até ao “funeral arma”! Faço continência ao comandante sem saber o que procedimento deveria seguir-se (já sabia que não daríamos tiro algum em honra dos tombados). O comandante murmurou algumas palavras de circunstância a rimar com pátria e nação, que estamos aqui para render homenagem a estes nossos heróis, mas as condições ditam que temos de ser breves, e manda avançar os dois africanos da CCaç 19 e os dois madeirenses da minha companhia (tenho ideia de que um deles era o Abreu, do meu pelotão), que em silêncio, – neste caso, verdadeiramente sepulcral, – da direita para a esquerda e um por um, começam a descer os corpos e a cobri-los com pás de terra.

Quero lembrar-me de outras imagens desses companheiros, mas vivos, como se fosse possível não arquivar na memória esta forma de os ver desaparecer sob as pazadas de terra. O primeiro a ser depositado é o corpo do Fernandes. O que pensar a seu respeito, se mal o conheci? Só o convívio recente, o rogar pragas à vida, o ter falado mais que uma vez da sua origem, da aldeia de onde é natural, – Carção, – e por não sabermos onde fica nos explicar ser terra de almocreves e a capital portuguesa dos marranos (judeus convertidos à força) e que conserva as tradições dos “cristão novos”, como o pão ázimo, feito sem fermento e para ser comido durante a Páscoa judaica. Ficas aqui a dois passos do teu quase vizinho Geraldes, de Algoso. Será que chegaram a conhecer-se?

O soldado Manuel Geraldes, – o primeiro corpo sepultado na fiada de campas onde se encontram os três pára-quedistas, – era apreciado na freguesia de Algoso pelas qualidades pessoais, que deviam ser muitas, tal a saudade que deixou, não apenas entre familiares, conforme ficou demonstrado tantos tempo depois, quando o seu corpo foi exumado e trasladado até ao Vimioso. Ainda foi recordado ser um rapaz trabalhador, por ter um gira-discos trazido de França que ajudava a animar a juventude local do seu tempo, organizando bailaricos e puxando-a também para o futebol.

Segue-se o Telo. Até sempre, Telo! Por este andar, até breve, amigo! Também já não devemos resistir muito, a quantas mais morteiradas vão esquivar-se os nossos corpos? Já sentimos saudades tuas. Os teus familiares, esses, já as sentem desde que partiste de Paul do Mar, da fajã linda e sossegada que tantas vezes enalteceste, da salina antiga onde começaste a dar os primeiros chutos numa bola, da igreja que ajudaste a construir e onde foste sacristão. Adeus companheiro, para além do militar exemplar que te revelaste ao longo deste tempo em que caminhámos todos juntos, demonstraste perante nós uma atitude e uma educação invulgares. E foste o atleta que muitos de nós também gostaríamos de ser, – tão depressa, o União da Madeira não vai arranjar um substituto à altura para constituir o onze… Já não apanhas mais o barco até ao Funchal, capaz de regressares a casa só quinze dias depois, passados em treinos e jogos pelos pelados da ilha. Só assim se formam os verdadeiros atletas! Lembras-te, camarada, do belo Dia da Infantaria (14 de Agosto) em que, para queimar o tempo e animar as hostes em Gadamael, o capitão resolveu comemorar com uma mão-cheia de actividades desportivas e ambos fizemos parte da equipa de voleibol? Ganhámos que nem ginjas o primeiro lugar e limpámos o prémio das duas grades de cerveja à equipa de “Os Pipas”, – vinda expressamente de Cacine a bordo dos Sintex, – e vingámos a derrota por 2-0 no futebol… E tu, – quem mais poderia ser? – ex-aequo com os furriéis Custódio e Almeida, ainda ficaste em primeiro no salto em altura… Por agora, Telo, ficas aqui, em solo africano. Podem dizer cobras e lagartos de que vieste para a Guiné fazer a guerra, mas tu há muito que combatias era pela paz no continente negro, há muito que enviavas donativos para ajudar as crianças de África, através das missões católicas em que militavas.

Passados dias será mandado um telegrama para a Fajã da Ovelha dirigido aos pais. Perante o remetente, já conhecido, nenhum carteiro o quis entregar, nem ler o conteúdo pelo telefone. A irmã do Gabriel Telo, mais nova dois anos (Gabriela) estava sozinha em casa e vieram chamá-la para ir atender um telefonema à mercearia. Era para levantar o telegrama na Fajã, para onde não tinha meios de se deslocar. Desconfiou que fosse algo relacionado com o irmão mais velho (eram cinco ao todo, três rapazes e duas raparigas). Lá conseguiria uma boleia e acabou por ser um outro irmão, ainda mais novo, quem foi buscar a notícia, que a todo o custo queriam ocultar à mãe, para adiar o desgosto. Mais tarde veio a mala e os pertences, gerando novas angústias e a revolta por nada mais haver a fazer, que o corpo já estava enterrado. Quem poderia imaginar que o mesmo corpo chegaria à terra 36 anos depois e que, a pedido da família, iria restar no mesmo local onde o pai, João de Jesus Telo, fora entretanto sepultado? “Agora ele está na sua terra!” A vida tem destas coisas.

O Telo (e também um irmão mais velho) foi jogador no União da Madeira. Nesse tempo, os clubes pagavam a outros militares para que fossem mobilizados no lugar dos seus craques (o regime não se opunha a tais trocas, e nem protegia só os atletas, mas as gentes endinheiradas, cujos filhos, caso enveredassem por tal “modalidade”, ou não iam à guerra ou o faziam a cobro de especialidades não operacionais). No caso do Telo havia já um voluntário, só que este, à última hora, terá sido também mobilizado e a troca abortou. Era um homem bondoso. Quantos de nós, no regresso de férias da metrópole, nos lembrámos de trazer roupas “para os pretinhos”? Ele fê-lo! O destino existe? O Telo e os outros do seu pelotão, poderia nem ter ido parar a Guidaje. Seria o quarto pelotão a alinhar na malfadada coluna a (presumiam os soldados) Farim, mas como o respectivo alferes (António Francisco Lopes Monteiro) passou a ser o comandante interino da companhia devido à ausência do capitão, que estava de férias no Porto Santo, alguém entendeu ser preferível escalar os primeiro e segundo pelotões naquele dia de Maio de 1973.

Agora, caro João, és tu a descer à cova. Já estilhaços traiçoeiros te tinham ferido na estrada de Guileje (aquela mina maldita que ceifou a vida ao Raposeiro e que também feriu o soldado João Manuel Oliveira, do pelotão Fox 2260, em 7 de Agosto do ano passado). Foste evacuado para Bissau, depois para Lisboa e, tratadas as feridas, vieste cair de novo neste lamaçal. Pensar que voltaste há pouco mais de três meses à companhia para ficares agora neste estado? Que pôrra, Ferreira, também contigo somos levados a acreditar no destino? Já tinhas o teu quinhão, rapaz!

E tu, meu querido camarada e amigo Zé Carlos? Que grande partida te pregaram! Não lembra ao diabo que por vires trazer madeira para reordenamentos acabarias por morrer neste inferno, tu que te calhou em sorte teres o reordenamento como tarefa, o capitão não te mandou a Bissau para tirares o estágio há um ano e picos? Nunca, meu amigo, nunca te vi de verdadeiro mau humor, sempre cordial com toda a gente. Tanto que, quando azedavas, quando te fazias de zangado, ninguém te levava a sério. Nas nossas brincadeiras de garotos, digo bem, acordarmo-nos uns aos outros arremessando botas para cama alheia não é próprio de homens que andam na guerra, nem as camas à espanhola nem os baldes de água nos umbrais das portas, divertimo-nos imenso com estas e muitas outras brincadeiras de garotos. Tiveste sempre a habilidade de contabilizar mais partidas aos outros do que encarnares o papel de vítima. Taparam-te agora o rosto, embrulhado dessa maneira. Mas estou a imaginar por baixo da gaze o leve sorriso que sempre te vimos nos lábios, como que a dizer-me, desta vez, apanharam-me, fui eu que caí, mas na volta já vos fodo!

Também em Sá, concelho de Valpaços, a família do José Carlos Machado amenizou a angústia e o pesar trinta e seis anos depois. “Já o cá temos connosco”! Irmão, mãe e pai (com o qual, se bem me lembro, por circunstâncias da vida o Machado conviveu durante pouco tempo), todos em lágrimas, como se o Mundo estivesse parado ao longo desta eternidade, por uma incerteza, um enterro não resolvido. Em 1973, a notícia oficial chegou a Sá igualmente através de um telefonema para o posto público: os familiares andavam a tirar ervas de uma terra de batatas e foram obviamente apanhados de surpresa. É que, apesar de quem tinha lá fora os filhos e os maridos andar sempre com o coração em sobressalto, temendo o pior, restava sempre a esperança de que as desgraças que abalavam todas as localidades do país acontecessem só aos outros…

Embora ninguém mo tenha solicitado, memorizo a ordem por que ficam em repouso para elaborar e entregar mais tarde um croquis. O comandante do COP3 manda destroçar e abandona o local quando o corpo do Machado desaparece sob a terra. Nada mais há a fazer e digo ao meu pessoal que pode regressar às valas onde “residimos”. A maioria não arreda pé tão depressa e deixa-se ficar a olhar as sepulturas, num último adeus. Dois soldados passam as armas aos parceiros do lado, ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e rezam. Os camaradas que fazem de coveiros alisam a terra com as costas das pás e espetam as cruzes de pau improvisadas, que ali ao lado aguardavam o seu destino. Interrogo-me se e quando seriam resgatados os corpos destes camaradas?

Neste dia imaginei que quando a situação operacional estivesse normalizada fosse possível levantar as campas e transportar os féretros para Bissau e daí para os seus destinos (famílias). Mais tarde, a seguir ao 25 de Abril, pensei que antes da retirada da Guiné-Bissau, as autoridades militares acautelariam essa questão em devido tempo. Era a altura ideal, antes da passagem administrativa do poder para as novas autoridades. Depois ficou a incógnita, o território passou a ser um Estado independente e a burocracia e confusão das primeiras décadas de soberania só poderiam trazer dificuldades, tanto mais que a política externa dos governos portugueses, sobretudo nos anos 70, 80 e ainda 90, foi sempre uma lástima no tocante a cooperação, por motivos que são basto conhecidos e que não vêm à baila nestas páginas. Por que é que isso não foi feito (nem com estes nem com outros corpos sepultados nas antigas colónias), só quem lá esteve nessa altura poderá eventualmente ter explicações.

Curiosamente, o BCaç 4512, – uma das unidades com mais vítimas mortais durante esta “crise” e a cuja primeira companhia pertencia o soldado Geraldes, um dos corpos a exumar, – comandado pelo tenente-coronel de infantaria António Vaz Antunes, foi quem “comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo de desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, a qual foi efectuada no subsector de Guidaje, em 21 de Agosto de 1974”. Na perspectiva de uma qualquer iniciativa, coloquei a questão ainda nos anos oitenta durante um encontro/convívio de “Marados” em Lisboa. Há muito que tinham passado os cinco (havia quem dissesse sete) anos, tempo mínimo técnica e legalmente (?) para se poder proceder ao levantamento de ossadas. (Maria Lourenço, irmã do pára-quedista Lourenço da CCP 121, disse que recebeu a notícia da morte a 28 de Maio de 1973, e que lhe disseram que nada havia a fazer quanto a funerais, pois o irmão já estava enterrado e “só quando fizesse sete anos é que mandavam os ossos”). Por razões pessoais, eu vim a ter bom relacionamento com dirigentes do PAIGC e admitia ser bem sucedido para obter autorização do governo de Bissau com vista a desbloquear os procedimentos administrativos e tratar do assunto.

Um dia, em Fevereiro de 1987, aproveitei uma conversa com Vasco Cabral (por coincidência, nascido em Farim e que, escapando por um triz à morte quando do assassinato do líder do PAIGC, viria a falecer muito recentemente, suponho que há dois anos) e pedi-lhe uma opinião sobre o assunto. Apesar de torcer o nariz ao precedente e de considerar que “mexer nos mortos é sempre complicado”, disse-me que nunca ninguém teria levantado essa questão, pelo menos que fosse do seu conhecimento, mas que as autoridades não deixariam de analisar e de encontrar a melhor solução para que os corpos sepultados em Guidaje pudessem voltar às suas famílias. Apesar do apelido e de estar na génese da criação dos movimentos de libertação nacional das ex-colónias, Vasco não tinha qualquer parentesco com Amílcar Cabral. Ambos, conjuntamente com Agostinho Neto e Mário de Andrade (angolanos) e Marcelino dos Santos (moçambicano), todos a viver e/ou a estudar em Lisboa, foram os dinamizadores das actividades da Casa dos Estudantes do Império, ao Arco Cego/Lisboa, integraram o MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, ao lado de muitos anti-fascistas portugueses), entre outras façanhas que marcaram a nossa história política e cultural.

No encontro de Marados em Lisboa, a minha proposta foi derrotada pelo argumento do reavivar desnecessário dos choques para as famílias e, democrata que sou, aceitei também o silêncio. A questão das famílias é argumento válido para muitas delas, mas não para a maioria, como se tem demonstrado. As famílias dos três pára-quedistas da 121, as do Telo, do Machado e do Geraldes viram com bom olhos as trasladações… Um funeral adiado só prolonga o sofrimento, a constrição, é um nó na garganta. O enterro, religioso ou não, consuma a despedida, encerra o ciclo.


28 de Maio

A desmoralização amplia-se a ritmo galopante. Como se não bastassem as consequências operacionais do cerco e o sentimento de incapacidade absoluta de dar a volta às coisas e furar o bloqueio, é também a logística que começa a falhar. Os pedaços de salsicha, cada vez mais precários, têm sido substituídos por sardinhas de conserva, que chegam ao prato em pasta. A groselha também acabou, tudo rebenta pelas costuras! Desde o ataque de dia 25, que cortou a luz no quartel, os geradores nunca mais tiveram um funcionamento regular (parece que não há gasóleo para os ligar) e passámos a estar sem electricidade (nem a do céu, que a mudança de estação para a época das chuvas faz aparecer nuvens que encobrem o luar). O que vale é que não há nada nos frigoríficos que se estrague!

Por onde andamos, tropeçamos constantemente em destroços, granadas, invólucros de munições, restos de latas de conserva que, os poucos que as tenham, já nem se dão ao trabalho de as pôr no lixo, além de pedaços de tectos de zinco arrancados pelos rebentamentos, restos de móveis inúteis, etc.. Ainda por cima, a água que desde sempre aparecia nas torneiras, talvez uma hora (incerta) por dia, deixou praticamente de aparecer. Ou seja, se nos primeiros dias ainda conseguimos lavar as mãos e a cara muito apressadamente, pois havia sempre outros atrás de nós à espera de fazer o mesmo, agora já nem isso fazemos.

No caso do pessoal “marado” faz já catorze dias que temos no corpinho o mesmo camuflado, vestido vinte e quatro horas por dia, quase todos sem ter conseguido tomar um banho. De cabelos desgrenhados e cinzentos da poeira e com barbas por fazer da mesma cor, ainda conseguimos brincar, dizendo que se corrêssemos para um turra desta maneira, ele morreria logo, mas era de susto! E caso aguentasse olhar para o nosso terrível aspecto, sucumbiria à mesma, com o cheiro… Eu cá, se despir o dólmen e o poisar no chão, ele aguenta-se, de certezinha, em pé. O suor acumulado, a volumosa pasta de sangue dos camaradas mortos e feridos que absorveu no abrigo do Obus, confesso que algumas lágrimas em cima, mais a moinha do cacimbo, à noite, o pó poisado durante as deslocações e emboscadas, e ainda a sujidade de terra desde que passei a dormir no chão, tudo isto acumulado dá uma argamassa que nem colete à prova de bala.

O curioso é que não me sinto propriamente a cheirar mal, nem sinto que os meus companheiros cheirem mal. Terei perdido o olfacto? Ou, nas nossa narinas, também o hábito faz o monge? Não faço ideia porquê, nem como, mas de repente dei por ter ficado sem os atacadores das duas botas de lona. Das meias verdes, resta-me uma, cujos buracos me estão a provocar bolhas. A do pé direito era um buraco só e desfez-se: achei-a folgada demais, puxei-a e, desprovida da “sola”, saiu inteirinha do pé sem necessidade de descalçar a bota.


Equipa de voleibol dos Marados

Equipa de futebol
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6154: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (8): Os dias da batalha de Guidaje, 24, 25 e 26 de Maio de 1973

Guiné 63/74 - P6177: Adiantamentos e Prestações O.G.F.E. (António Tavares)

1. Mensagem de António Tavares* (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72, com data de 8 de Abril de 2010:

Caro Vinhal,
Os artistas de fotografias dizem que num retrato o primeiro olhar é para a cara e depois para pequenos pormenores…

Nesta foto, que foi das primeiras tiradas em Galomaro, os pormenores era o bigode e o camuflado ainda novo em folha!
Não tinha ido à mão das nossas queridas lavadeiras… bajudas de preferência! Bem depressa estragavam a nossa roupa.

Camuflado comprado a prestações nas O.G.F.E., Sucursal do Porto, na Rua da Boavista 216.

A compra de roupas, gasolina e produtos dos ex-supermercados da MM - especialistas em massas, farinhas, bolachas -, a prestações era um privilégio dos Oficiais e Sargentos.

Comiam, bebiam, vestiam-se e ao fim do mês lá aparecia uma pequena importância a pagar aquilo que já tinha sido gasto no tempo. Enfim… regras em uso...

Enquanto tive esse privilégio também comprei alguns artigos militares a crédito… e a pronto pagamento vestuário civil… recordo um casaco de antílope!

Os artigos em pele eram muito cobiçados porque havia/há uma grande diferença de preços e qualidade em relação ao comércio tradicional.

As O.G.F.E. ou CASÃO MILITAR tinham/têm dos melhores artigos do mercado nacional!

Tinham um senão… eram muitos os Galões e Estrelas que por lá se viam!

Outra vantagem (?) - era deixar de pagar as prestações em divida em caso de morte do militar… como o meu destino era a Guiné aproveitei a regalia… comprei o equipamento necessário ao militar mobilizado… comecei a descontar a despesa em Junho de 1970.

Feitas as contas, à moda do Porto, o total foi descontado em 11 prestações.

Não recordo como aceitei a sugestão… o certo é que aprovei tal convite!

O macabro conselho tem a sua graça decorridos 40 Anos!

Felizmente tive alguém - (leia-se: um Deus) - que se interessou pela minha pessoa durante os 23 meses passados nas matas da Guiné… naquela brutal guerra!

Além das ditas prestações descontavam o valor da minha Pensão. O que recebia, na Guiné, era superior à média do Pré dos Praças e abaixo do Vencimento Base - 3.800$00 - dos Alferes Milicianos.

O pessoal do Quadro Permanente recebia quase o dobro dos Milicianos.

Os Praças recebiam o Pré, os Oficiais e Sargentos o Vencimento!

O meu Pai ia mensalmente ao Quartel do RI 6, na Senhora da Hora, Porto, levantar a minha Pensão.
Os Pais… sempre disponíveis para ajudar os seus filhos!

Era custosa aquela deslocação quer no aspecto psicológico quer a viagem propriamente dita porquanto ao tempo - 1970/72 - não havia muitos transportes para aquele quartel!

Quem conhece o RI6 facilmente imaginará as dificuldades no trajecto.

Dos 21 Boletins de Vencimentos, que guardo religiosamente, publico o do mês de Abril de 1971 porque confirma tudo o que acima escrevi e porquanto foram os últimos Valores dos Descontos dos Adiantamentos e das ditas Prestações.

Recordem os diversos Abonos: - Vencimento Base ou Pré e Read.; Vencim. Complementar; Subvenção Campanha; Gratificação Isolamento; Gratificação de Serviço; Alimentação; Subsídio Renda de Casa; Abono Família; Ajudas de Custo e Grat.: Rep .Acum. ou F. Esp.

Abonos não faltavam… para alguns!

Escrevo propositadamente os valores na antiga moeda: - Escudo em Portugal Continental; Pesos na Guiné.

Em 1970/72 o Escudo valia mais 10% do que o Peso, ou seja, trocávamos uma nota de 500$00 Escudos por 550$00 Pesos.

Lembremos que 200,482 Escudos equivalem a 1€.

Os manuais: - I e II Caderno do Soldado (Folheto da 1.ª Rep/EME) dizem:

A Pensão de Família era diferente da Subvenção de Família, esta destinada às famílias das Praças que obedecessem a umas certas condições, digo eu, de miséria….

A Pensão de Família podia ir até 2/3 do vencimento no Ultramar, incluindo abonos especiais que lhe possa vir a ser concedidos a título transitório.

Tinha início a partir do mês seguinte àquele em que o militar embarcava para o Ultramar.

Todo o militar nomeado para serviço no Ultramar e por conta do seu vencimento podia estabelecer a pensão.

A pensão é estabelecida mediante simples declaração do interessado, feita em papel de 35 linhas e à máquina e apenas em original.

O quantitativo e o beneficiário podem ser alterados por simples declaração, tudo se passando como se tratasse de uma nova pensão.

Esta é uma história real escrita por um dos muitos milhares de ex-combatentes… diferente nas pessoas, quantitativos e patentes… Histórias sempre associadas à guerra de guerrilha vivida e sofrida, de 1963 a 1974, na mártir Guiné.

Este escrito teve entre outras vantagens o recordar o valor total recebido durante a Comissão no Ultramar… a Guiné Portuguesa, como se dizia!

Clicar para ampliar a imagem

Um abraço do
António Tavares
Ex-Fur Mil SAM
Foz do Douro, 08 de Abril de 2010
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6082: Os nossos regressos (20): A impressionante chegada a Figo Maduro na noite de 22 de Março de 1972 (António Tavares)

Guiné 63/74 - P6176: Parabéns a você (108): Raul Rolo Brás, Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2381 (Os editores)

1. A data de 18 de Abril de 2010 vai ficar na história por ser o dia em que o nosso camarada Raul Rolo Brás completa 64 primaveras. Hão-de seguir-se muitos verões, temos a certeza.

A Tabanca vem por este meio apresentar ao Raul os seus votos de um bom dia de aniversário passado, com alegria, junto dos seus familiares e amigos. Nós vamo-nos associar à festividade brindando à sua longevidade.


Raul Brás foi Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2381, “Os Maiorais”, que esteve em Buba, Quebo, Mampatá e Empada nos anos de 1968/70.

Está na nossa Tabanca há muito pouco tempo, mais propriamente desde Fevereiro último, pelo que a sua colaboração no Blogue ainda não se fez sentir.

Dizia-nos o Raul no dia em que começou a fazer parte da tertúlia:

Olá amigos, camaradas e companheiros de guerra,


Assim me apresento:


Para quem não me conhece, sou o Raul Rolo Brás, nascido e criado em Salavessa, na data de 18/04/1946, concelho de Nisa, distrito de Portalegre, devidamente recenseado e editado para o serviço militar obrigatório, na data de 14 de Agosto de 1967.

Assim como qualquer bom português, no meu tempo, apresentei-me à chamada no dia 14/08/1967, Regimento de Lanceiros Nº 1 (C.I.C.A. 3), em Elvas, para frequentar a recruta e a especialidade de Condutor Auto.

Após 6 ou 7 semanas de instrução e o Juramento fidedigno á Bandeira Nacional, ainda em Elvas, fui destacado para o Regimento de Cavalaria Nº 6 no Porto, em 08/10/1967.

Permaneci com a especialização apontada mais 2 meses aproximadamente, findos os quais fui destacado para Regimento de Transmissões, também no Porto, no dia 26/11/1967, onde permaneci até finais de Janeiro de 1968.

Na perspectiva de aperfeiçoamento de condução em todo-o-terreno, onde revi e contactei novamente, com antigos camaradas da recruta, segui para Santa Margarida - Regimento de Cavalaria Nº 4, até à data de 18/03/1968.

Nessa data fui destacado para o Regime de Infantaria Nº 2, em Abrantes, permanecendo ali com o destino traçado até hoje na minha memória, á Guiné, no dia 30/04/1968.

Dali parti, integrado na Companhia de Caçadores 2381 “Os Maiorais”, no tão afamado e conhecido transportador marítimo Niassa (que para a guerra levou e trouxe tantos de nós como eu), no dia 01/05/1968.

Um abraço,
Raul Brás
Sold Cond Auto da CCAÇ 2381
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5806: Tabanca Grande (202): Raul Rolo Brás, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 2381 “Os Maiorais”, Buba/Quebo/Mampatá/Empada, 1968/70

Vd. último poste da série de 15 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6158: Parabéns a você (107): António Pimentel (ex-Alf Mil OpEsp/RANGER da CCS do BCCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70 (Os editores)

Guiné 63/74 - P6175: O povo e o município de Moura homenagearam, no passado dia 10, os seus 29 mortos na guerra colonial (Parte I) (Luís Graça / Francisco Godinho)




Moura > Largo de São Francisco > 10 de Abril de 2010 > Concentração junto ao monumento aos mortos da guerra do Ultramar. A pedido da Comissão Organizadora, coube à nossa camararada Giselda Pessoa efectuar a deposição de um ramo de flores na base do monumento. Foram lidos os nomes dos nossos 29 camaradas mortos nas três frentes da guerra colonial (Angola, Guiné e Moçambique). Respeitou-se depois um minuto de silêncio à sua memória.



Moura > Largo de São Francisco > 10 de Abril de 2010 > Singelo monumento de "homenagem aos jovens do concelho de Moura que perderam a vida na guerra colonial", num total de 29. O monumento, iniciativa do Município, data de Junho de 2008. A lista está organizada por freguesias (entre parêntesis, os respectivos naturais): Amareleja (7), Estrela (1), Moura (11), Póvoa de S. Miguel (1), Safara (3), Sobral (4), Santo Aleixo da Restauração (1), Santo Amaro (1). Por teatro de operação, a contabilidade dos mortos é a seguinte: Angola (16), Moçambique (7), Guiné (6).



Moura > Rua Henrique José Pinto > 10 de Abril de 2010 > Natural da freguesia de Santo Agostinho, o 1º Cabo At Henrique José Pinto, da CCav 487 / BCav 490, morreu em combate 24 de Janeiro de 1964, repousando os seus restos mortais no cemitério de Bissau.


Moura > Cine Teatro Caridade > 10 de Abril de 2010 > Aspecto parcial da assistência (primeiras filas, lado esquerdo) ao colóquio sobre a guerra colonial. Na primeira fila, quatro dos cinco elementos da Comissão Organizadora, todos eles ex-combatentes.



Moura > Cine Teatro Caridade > 10 de Abril de 2010 > Aspecto parcial da assistência (primeiras filas, lado direito) ao colóquio sobre a guerra colonial



1. Realizou-se em Moura, cidade do Baixo Alentejo, no passado dia 10, uma condigna homenagem aos ex-combatentes, naturais do concelho, mortos durante a guerra do Ultramar / guerra colonial (*)
Às 10h30, teve lugar, no Cine teatro local, um colóquio subordinado ao tema da guerra colonial, o 25 de Abril e a descolonização, com a participação de cerca de 80 pessoas, incluindo diversos autarcas.

Intervieram os seguintes oradores:

(i) José Joaquim das Esteves, ex-Fu Mil, Polícia Militar, Guiné, 1966/68, em nome da Comissão Organizadora;

(ii) Pedro Lauret, comandante da Marinha de Guerra Portuguesa, Cap de Mar e Guerra na Reserva, Militar de Abril, membro da Direcção da Associação 25 de Abril, membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ex-combatente, Guiné 1971/73.

(iii) José Brás, autor do romance "Vindimas no Capim" (Editora Europa-América), galardoado com o Prémio Revelação de Ficção 1986 da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura; .ex-combatente, Guiné, 1966/68.

(iv) Luís Graça, sociólogo (Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade Nova de Lisboa); fundador, administrador e editor principal do Blogue "Luís Graça&Camaradas da Guiné"; ex-combatente, Guiné, 1969/71.

(v) Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref, membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ex-combatente, Guiné 1972/74.

Por razões de ordem pessoal e imprevistas, o Mário Beja Santos comunicou na véspera a impossibilidade da sua participação no colóquio.

Intervieram no final o Major General Manuel Monge e o vice-presidente da edilidade.



Moura > Cine-teatro Caridade > 10 de Abril de 2010 > Intervenção do Major General na Reserva Manuel Monge, Governador Civil do Distrito de Beja, ex-combatente em Angola (duas comissões) e na Guiné (duas comissões), membro do MFA, natural do vizinho concelho de Serpa. Na mesa, da direita para a esquerda: Vice-presidente da CM Moura, Santiago Augusto Ferreira Macias; e os nossos camaradas Pedro Lauret, Miguel e Giselda Pessoa.


Finda a sessão, os participantes dirigiram-se para o Largo de S. Francisco, onde por volta das 12h45 foi depositada, pela nossa camarada Giselda Pessoa, uma coroa de flores junto à lápide evocativa aos 29 ex-combatentes mortos ao serviço da Pátria durante a guerra colonail. Após a leitura dos respectivos nomes foi guardado um minuto de silêncio em sua memória.

As 13h00 houve um belíssimo almoço-convívio no Restaurante O Celeiro, junto ao Pavilhão de Exposições e Depósito de Água, mais exactamente sito na Rua Henrique José Pinto (ex-combatente morto em combate na Guiné, em 1964).

A Animação musical esteve a cargo de 2 grupos: (i) Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense; (ii) Grupo Vá de Modas.


Moura > Restaurante O Celeiro > 10 de Abril de 2010 > A Giselda e o Miguel Pessoa, cuja história militar e pessoal tocou os participantes locais no colóquio... Foram apresentados por Luís Graça como "o casal de militares mais strelado do mundo"...




Moura > Restaurante O Celeiro > 10 de Abril de 2010 > O Pedro Lauret e a esposa



Moura > Restaurante O Celeiro > 10 de Abril de 2010 > O nosso camarada José Brás, que pertenceu ao pessoal de voo da TAP e de cujo sindicato foi dirigente nacional, fez uma emocinante e emocionada intervenção no âmbito do colóquio, e de que esperamos poder apresentar, em vídeo, um excerto.


Moura > 10 de Abril de 2010> Aqui ficam a saudação especial à Comissão Organizadora: Francisco Diogo Candeias Godinho (Telem. 93 343 47 24), membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ex-combatente na Guiné (primeiro à esquerda); José Mira Borralho Infante; José Manuel Ramos Lérias; José Joaquim das Estevas (que esteve na Guiné, tal como o Godinho);  António Fernando Canudo Capa.

(Continua)

Fotos: © Luís Graça (2010). Direitos reservados

____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5989: Agenda Cultural (66): Homenagem aos ex-combatentes da Guerra Colonial do Concelho de Moura, dia 10 de Abril (Francisco Godinho)

sábado, 17 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6174: In Memoriam (39): Baixa na CCS/BCAÇ 2845 - morreu no dia 21 de Março de 2010 o ex-1.º Cabo Cardoso (Albino Silva)

1. Mensagem de Albino Silva* (ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2010:

Carlos Vinhal
Agradeço que coloques na Nossa Tabanca este trabalho que te envio, e que a grande custo o fiz, pois era um excelente camarada afinal.

Obrigado e abraços para toda a Tabanca.
AS


BAIXA NA COMPANHIA

Informação à C.C.S.

Faleceu no dia 21 de Março o CARDOSO


José Manuel Taveira Cardoso, 1.º Cabo NM 058732/67.
Atirador de Infantaria, era Quarteleiro em Teixeira Pinto, onde era assim conhecido por todos.

Para quem com o passar do tempo já não se lembra bem, o TAVEIRA CARDOSO, era aquele militar que andava sempre a tirar fotografias (malditas) , e que ele próprio depois revelava, e das quais tu mesmo ainda guardarás alguma, já que toda a CCS foi fotografada por ele.

É em forma de Homenagem que lhe presto, ao mesmo tempo que te vou avivando a memória .
O Cardoso chegou a ter pequenos problemas por dedicar mais tempo às fotos de que à sua própria Especialidade, mas era um excelente camarada que nunca causou problemas a ninguém.

Como te deves recordar, ou talvez não, o Cardoso era o único militar que tinha lá a esposa com ele, pois era casado, bem como o Tenente Paulo Dias e o Dr. Maymon Martins.

Recordo-te que o BCaç 2845 deixou Teixeira Pinto e a Guiné, mas o Cardoso que tinha
passado à disponibilidade, portanto civil, ficou com a mulher em Bissau, com o intuito de trabalhar por conta própria como fotógrafo, e daí o seu grande azar e pouca sorte, porque enquanto militar nunca teve nada, e depois como civil foi com uma Companhia operacional para o mato para tirar umas fotos aos militares e fez accionar uma mina.

Houve mortos dessa Companhia, e o Cardoso ficou com as duas pernas amputadas, seja com a perna direita pela virilha, e a esquerda pelo joelho.

Poucos souberam , porque o Taveira Cardoso apenas com uma pequena bengala, não dava a perceber aquilo de que realmente padecia.

Foi no primeiro convívio da CCS que ele próprio organizou em Almeirim, que ele me contou o seu passado, o qual até hoje guardei.

Quis falar disto, mas presto eentida homenagem ao Cardoso, que durante alguns anos compareceu em todos os encontros da CCS, tendo ele mesmo organizado alguns, e sempre se preocupou em procurar camaradas.

Todos aqueles que participaram em diversos convívios se lembram bem dele, embora saiba que há muitos camaradas da Companhia espalhados por todos os cantos do mundo, que através da Internet vão vendo aquilo que vou escrevendo sobre o nosso Batalhão e Companhia, e muitos me contactam para saberem notícias da CCS , porque tal como eu também adoram saber onde param camaradas do tempo do camuflado e de armas.

É pois para eles em especial que tristemente dou esta notícia, lembrando que no funeral foi chamado o nome do Cardoso, dissemos presente, e assinamos o livro, em nome da CCS e BCaç 2845.

Agora onde quer que esteja será sempre camarada. Paz à sua alma

Albino Silva,
Sold. Maq. 011004/67


Comentário de CV:
É sempre com tristeza que vemos partir um dos nossos camaradas, tivesse sido ele nosso companheiro de Unidade ou não.

Caro Albino, esta tua singela, mas sentida homenagem, é digna de alguém com sensibilidade que nunca esquece os velhos camaradas, apesar de volvidos este anos todos, e já vão sendo muitos.

O teu camarada, companheiro e amigo Cardoso encontrou finalmente a paz. Para ele acabou um sofrimento de uma vida durante a qual carregou os sinais do infortúnio e da má sorte. Repito-te: Paz à sua alma.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6029: Memória dos lugares (72): Prestei o meu serviço na Guiné (Albino Silva)

Vd. último poste da série de 7 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5945: In Memoriam (38): Agradecimentos (Ana Duarte)

Guiné 63/74 - P6173: Convívios (217): 3º Encontro da Tabanca do Centro (Joaquim Mexia Alves)

Depois de um contacto preliminar com o "nosso Almirante" Vasco da Gama, ficou marcado o 3º Encontro da Tabanca do Centro.

Dia 28 de Abril, na Pensão Montanha, em Monte Real, pelas 13h30.

Reunião no Café Central às 13h00.

Voltamos assim, ao Cozido à Portuguesa, a pedido de "várias famílias".

As inscrições podem ser feitas na caixa dos comentários da Tabanca do Centro: http://www.tabancadocentro.blogspot.com/
Ou para o mail: tabanca.centro@gmail.com
Inscrevam-se até ao dia 21 de Abril, sem falta!
Cá esperamos os "atabancados" de todas as Tabancas!
_________
Nota de MR:
Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P6172: Da Suécia com saudade (24): Histórias desconhecidas do 25 de Abril: Quando Marcelo Caetano quis armar a GNR com as G3 de Beirolas

1. Texto do José Belo, com data de 13 do corrente:


Assunto: Histórias desconhecidas do 25 de Abril




Caro camarada e Amigo:

Volto a incomodar, para te chamar a atenção do que acabo de publicar na TABLAP [, Tabanca da Lapónia,]  quanto à tentativa desesperada de Marcelo Caetano de armar a GNR de G-3, a curtas semanas de Abril.

Não sei se interessa ao blogue, mas é sem dúvida uma das pequenas/grandes histórias, sempre por muitos desconhecidas, que (e quem sabe hoje?) poderá ter tido alguma influência no decorrer daquele histórico dia!

Meia-dúzia de humildes empregados civis de armazém de material de guerra, um Ten Cor para todos desconhecido e alguns jovens oficiais menos convenientes podem, nas suas obscuridades, terem evitado banhos de sangue, naquela FESTA que foi ABRIL!

Valerá a pena ser mais divulgada que...SÓ...na Lapónia?!


Um grande abraco do José Belo.




Lisboa > Quartel do Carmo > Sede da Guarda Nacional Republicana (GNR). 2007.
Foto de JSobral. Copyleft. Cortesia de Wikipédia.

2. Histórias desconhecidas do 25 de Abril: Quando Marcelo Caetano quis armar a GNR com as G3 de Beirolas (*)

por José Belo

O Regime já podre de Caetano é sacudido pela revolta militar das Caldas da Rainha. As greves, a agitação e e os confrontos com as forças policiais, tanto por parte de milhares de operários nas zonas industriais como também de jovens estudantes criavam nos círculos governamentais uma crescente preocupação com o 1 de Maio que se aproximava.

Tudo levava a presumir que a data seria uma verdadeira apoteose de agitação e as numerosas inscrições, um pouco por toda a parte, referindo um 1 de Maio "vermelho", não contribuíam para acalmar os responsáveis pela "seguranca".

Surge então, por parte do Governo, a ideia de armar a GNR com espingardas-metralhadoras G-3. O Depósito Geral de Material de Guerra em Beirolas é superiormente encarregado de fornecer alguns milhares dessas armas. O Oficial que na altura Comandava o Depósito prestara, anteriormente, serviço, durante longos anos, na GNR, tendo um conhecimento mais do que abalizado da organização e funcionamento da mesma.

A  organização do MFA dentro de Servico de Material, conhecendo-o, assim como o seu irmão, oficial de Cavalaria, como elementos democratas, já o tinham contactado, insinuando aproximar-se para breve "algo". Entretento, e invocando a sua experiência de anos de serviço na GNR, comentava o Comandante do Depósito em roda de amigos Oficiais:
- A GNR tem mantido a ordem,e de que maneira, nas últimas dezenas de anos, utilizando as espadas de Cavalaria para umas "chanfalhadas" oportunas, e a espingarda Mauser que lhes está distribuída. A coronha da espingarda Mauser presta-se às mil maravilhas para dar umas boas cacetadas, e a cadência de tiro é mais que suficiente para acções de ordem pública!... Agora a G-3?!...Uma metralhadora de guerra?.........SÓ SERVE PARA MATAR!... E reparem que, com a sua pequena coronha de plástico, nem serve para dar as tais cacetadas! E as quantidades requisitadas que significado têm? Para fazer frente a operários armados com pedras e a estudantes com livros? Não será antes para outros voos?

Mas as pressões faziam-se sentir sobre Beirolas. Apoiado por elementos do MFA, foi conseguindo protelar os fornecimentos, invocando mil e uma razões burocráticas. Mas as pressões aumentavam, por parte de quem não estava habituado a não ser rapidamente...obedecido. Tornou-se necessário utilizar o bluff para ganhar mais algum tempo precioso...

Algumas centenas de mecanismos de disparar das G-3 foram desmontados (Nota: não me refiro a culatras, mas sim à totalidade dos mecanismos de disparar), em todos os seus diminutos componentes, e espectacularmente colocados sob panos de tenda ocupando chão de enorme armazém. Quando os Oficiais da GNR, responsáveis pelo levantamento das armas, se deslocaram a Beirolas, foi-lhes mostrado todo este "espectáculo", seguido do comentário do Comandante:
- Como podem verificar, a montagem de todos estes mecanismos de disparar é trabalho demorado, e infelizmente o DGMG não dispoe de pessoal qualificado em quantidade suficiente para acelerar o mesmo como seria desejável!...

E continuou:
- Têm duas hipóteses: Ou aguardam que nós terminemos a montagem, o que será demorado, ou assinam documento responsabilizando-se pelo levantamento de todas estas pequenas peças e componentes, podendo montá-las depois vocês próprios na GNR... No entanto,e falo-lhes com experiência, não vos aconselho a segunda hipótese, pois como vêem são milhares de pequenas peças que facilmente se podem extraviar com o transporte e armazenamento, e depois sao só mais problemas e problemas.

O ar paternalista do Comandante, aliado por certo ao facto de terem que "assinar papel", levou-os a partir mais uma vez sem o armamento, perante crescente dificuldade de alguns presentes, "dentro do assunto", em conterem o sorriso irónico.

Abril aconteceu! O Largo do Carmo foi o símbolo da resistência de um Regime que caiu de podre. A GNR, honra lhe seja feita,serviu esse regime com lealdade, até ao último minuto. Foram dos poucos que, com armas na mão, demoraram a capitular. No entanto, como profissionais, sabiam e sentiam o "peso" da inferioridade do armamento individual de que dispunham frente ás forças militares que os cercavam. Teriam sido mais "arrogantes" se dispusessem das centenas de milhares de espingardas metralhadoras que nessa altura deveriam já estar-lhes distribuídas?

BEIROLAS CUMPRIU... ANTES DE ABRIL...EM HUMILDE SILÊNCIO... na pessoa de um Ten Cor desconhecido, de uma meia-dúzia de humildes trabalhadores civis de armazém, e de alguns jovens Oficiais... menos convenientes.

 José Belo

_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 23 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6038: Da Suécia com saudade (21): A Tabanca da Lapónia em mudanças para a... Flórida! (José Belo)

Guiné 63/74 - P6171: Convívios (216): Pessoal do BART 645, dia 14 de Abril de 2010, em Fátima (Rogério Cardoso)


1. O nosso Camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviou-nos, em 14 de Abril de 2010, notícias da festa da seu BART 645:
Camaradas,

Anexo 2 fotos dos Camaradas do BART 645, que se reuniram em Fátima no passado sábado dia 10-04-2010.
Cerca de 90 ex-militares, que, com familiares, totalizou 210 pessoas.
Um abraço amigo,
Rogério Cardoso
Fur Mil da CART 643/BART 645
_________
Nota de MR:
Vd. último poste da série em:
13 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6148: Convívios (129): Almoço/Convívio do Pessoal da CCAÇ 1590, dia 5 de Junho de 2010, em Minde / Fátima (Mário Silva)

Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)


1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 12 de Abril de 2010, a segunda parte da sua nota de leitura iniciada no poste P6162:
Queridos amigos,
Assim acaba a incursão pela obra de Cristóvão de Aguiar, no que tange a temática da Guiné.
Vamos agora fazer um recuo aos anos 60, às obras de Manuel Barão da Cunha e Amândio César.
Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo

“Braço Tatuado, Retalhos da Guerra Colonial”, é o título mais recente de Cristóvão de Aguiar no seu eterno retorno à Guiné (Publicações Dom Quixote, 2008).
Valeu a pena o escritor de “Relação de Bordo” e “Trasfega” ter remexido, depurado, reestruturado páginas que foram inicialmente publicadas em 1985.
São memórias da sua comissão militar, sobretudo na região Leste. Inevitavelmente, a condição de ilhéu invade o território da mente que escancara as memórias, tudo começa com uma viagem onde só falta que os animais falem.
E os animais são cães que dão pelo nome de Andorinha e Morteiro, não sei se não são mesmo os animais maiores da literatura que nos legou a guerra da Guiné.
A viagem começa em Nova Lamego e prossegue até Dunane, passa por Jabicunda, onde se distribuem uns comprimidos do Laboratório Militar que curam todas as mazelas, desde chagas a diarreias galopantes, isto enquanto a magalagem faz directamente a psico-social com as bajudas; daqui se segue para Sonaco, altura em que o vinho de coco começou a trepar à cabeça do nosso alferes.
Este, por acaso o autor, deixa-nos uma água-forte do chefe de posto: “É um cabo-verdiano odiado pela maioria dos indígenas.
Mas possuiu o grande predicado de ter uma mulher também cabo-verdiana, perfeita de mais, muito mais moça do que o marido e pejada de apetites extra-conjugais.
Num clima excitante e puxavante como este, será muito natural e humano que exija do marido pela medida acogulada, que ele, com os seus quase sessenta, não tem forças para lhe matar o desejo com a frequência desejada.
Os alferes, na força miliciana da idade e desempenados, são por isso a sua predilecta sobremesa”.
Entra logo a seguir o capitão Carvalho que tinha por hábito desfazer-se de todos os guias, eram executados, quem já tinha colaborado com os «turras» devia desaparecer.
Depois escrevia-se no relatório que havia a lamentar a morte do guia, guerrilheiro capturado em anterior operação, preparava-se para fugir, houve patrioticamente que o abater.
As imagens de horror sulcam-se nesta simplicidade da escrita, o guia sabe que tem a sentença marcada, vai algemado, leva uma corda amarrada à cintura, o soldado que caminha atrás vai dando pontapés, mais adiante, enquanto o furriel enfermeiro dá de comer ao guia algemado o soldado aproveita, à socapa, para lhe calcar os pés com as botas.
Assim se descreve a bruteza, a tal que existiu e apetece ignorar. Relato do horrífico é-nos dado pelo tenente Roberto, a aguardar promoção ao posto imediato por distinção e louvor: “Os filhos, em férias, brincam na parada.
Vejo-os da ampla janela que para lá se debruça. Jogam ao jogo da guerra, matam e esfolam terroristas que são as crianças indígenas que aguardam, nas imediações da cozinha, os restos do rancho.
O pai treinou-os”. Eis o horror, em toda a singeleza: Como pai exemplar e extremoso, o tenente Roberto exercitou os filhos nas artes marciais.
Sempre que faz prisioneiros no mato, manda chamar os filhos e incita-os a que piquem o tronco nu e luzidio dos capturados com as navalhinhas amoladas. Apressa-se depois, num acto de caridade, a deitar-lhes álcool nas feridas abertas pelos filhos...»
Mas o reverso do horror não se pode escamotear: «Mais tarde veio a saber-se que o capitão Roberto, na altura prestes a ser promovido a major também por louvor e distinção, numa outra comissão, desta feita em Angola, onde comandava uma companhia de comandos, acabou por encontrar a mulher com o impedido na cama.
Chegara mais cedo e inesperadamente de uma operação de três dias. Matara e esfolara e trazia muitas orelhas para apresentar à mulher. Não teve coragem de matar os dois amantes em flagrante delito.
Preferiu enforcar-se num galho de uma árvore de pau-sangue.» O ramerrame, a insipidez das rotinas, a ingénua convicção de que se mal até agora não aconteceu é porque nada vai acontecer, desafiam a madre experiência, às vezes com resultados sinistros.: armas que se disparam, granadas que se despoletam sem ninguém lhes tocar, banhistas devorados por crocodilos.
Segue-se o relato da vida em Dunane, eremitério como poucos: «A caserna é um amplo barracão de adobes com telhado de zinco. Poucos se arriscam a lá pernoitar.
Descansam apenas durante o dia. A altura do barracão e a sua fragilidade transformam-no num alvo perigoso e fácil de bazuca. Eu e o furriel mais antigo habitamos um abrigo a setenta passos de distância da caserna.
Às vezes conto setenta e três, outras sessenta e oito, consoante. Esta moradia foi construída anteriormente à nossa chegada. A matéria-prima é constituída por bidões vazios de duzentos litros de capacidade.
Dezoito são eles ao todo. Seis à frente, outros seis à retaguarda com outros tantos encavalitados por via da cobertura ficar com a inclinação própria de telhado para que as águas desagúem».
Enfim, um eremitério como quase todos nós conhecemos, recebemos uma guia de marcha para Dunane, ali vivemos semanas, meses, anos. Cristóvão de Aguiar pouco mexeu no episódio de Niza e seguramente que fez bem, é uma narrativa pungente, um crucifixo de solidão e perda de identidade.
É muito difícil a qualquer Niza aguentar a partida da Lena quando se tem o seu nome no braço tatuado. Dias depois, o Uíge levanta ferro, mas é bom que os senhores leitores saibam que há guerras que não têm fim, ela regressa pela calada da noite, os nossos olhos insones são espevitados por incêndios, estrondos, gritos, metralhadoras que nunca se silenciam.
É por isso que se transmitem estes farrapos de memória, estes apelos em que nos reencontramos, há horas de horror nos nossos dias levantados, não se sabe até quando.
E assim nos despedimos de Cristóvão de Aguiar, também não se sabe até quando.

Cristóvão de Aguiar
Um abraço,
Mário Beja Santos
Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52
_________
Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P6169: Lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló: Lisboa, Museu Militar, 15 de Abril (2): Um grande contador de histórias, um homem bom, um notável condutor de homens...





Lisboa, Museu Militar, 15 de Abril de 2010. Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010) (*). Breves palavras, finais, de agradecimento proferidas pelo autor, após intervenção do presidente da Associação de Comandos, Dr. José Lobo do Amaral, e dos restantes oradores, Cor Comando Ref Raúl Folques (comandante do Batalhão de Comandos da Guiné, de 28 de Julho de 1973 a 30 de Abril de 1974), Cor Inf  Ref Manuel Bernardo e Dr. Nuno Rogeiro, jornalista e analista político.

Vídeo (1' 07''): ©   Luís Graça (2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes





Lisboa, Museu Militar, 15 de Abril de 2010. Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010). Breve intervenção, final, do Dr. Augusto Mendes Pereira, que foi furriel miliciano vague-mestre da 1ª Companhia de Camandos Africanos, sediada em Fá Mandinga, onde conheceu Amadu Djaló.

Vídeo (2' 11''): ©   Luís Graça (2010). Alojado no You Tube > Nhabijoes




Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Membros da nossa Tabanca Grande, o Alberto Branquinho e o António Costa.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Membros da nossa Tabanca Grande,o José Martins (Odivelas) e o Jero (Alcobaça e Oeiras)... Mesmo em dia de chuva, a meio da semana,  ao fim de tarde, os nossos camaradas fizeram, questão de comparecer para apoiar o Amadu e o Virgínio.



Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Membros da nossa Tabanca Grande, e neste caso também da Tabanca da Linha, o José Manuel Dinis e o António F. Marques.


Fotos, vídeos e  e legendas: © Luis Graça (2010). Direitos reservados
___________

Nota de L.G.:


(*) Vd. posterior anterior da série > 16 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6168: Lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló: Lisboa, Museu Militar, 15 de Abril (1): "Os cobardes, esses, vivem mais, mas nunca hão-de ter música para dançar" (provérbio tradicional guineense)

Guiné 63/74 - P6168: O Spínola que eu conheci (14): Sempre vi naquele homem, trinta e quatro anos mais velho do que eu, o Chefe Militar (Torcato Mendonça)


O nosso Camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil At Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69), enviou-nos, com data de 15 de Abril de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,
Parece difícil e pouco conveniente o envio deste escrito. São notas, simples notas sobre um Homem que respeitei com Comandante Militar.
Leio o que se escreve; leio uma breve biografia saída num "Diário" e vêm-me à memória tempos passados, quer encontros, quer histórias sobre este Militar.
Será sempre uma figura incontornável da guerra na Guiné. Mesmo da Guerra Colonial, pois, além de ter combatido em Angola, teve papel militar de relevo. Não esqueçamos o dia 25 de Abril e o pós-Abril.
Sobre isso não me pronuncio.

Envio as notas.

Enviei textos, talvez na semana passada. Pedi, como sempre o acusarem a recepção. Só depois soube a ausência do Vinhal e a consequente sobrecarga.

NOTAS sobre ANTÓNIO de SPÍNOLA
Recebi só hoje, segunda-feira dia 12, a Biografia do Marechal Spínola, saída num diário na última sexta-feira.

É o custo do interior ou da interioridade. Veio e esgotou porque vieram poucas. Pessoa amiga comprou-o e só hoje o tive em mão. Certamente o livro Spínola vai demorar mais. Está pedido e… espero…

Não queria escrever mais sobre este Homem. Receio que, ao ler estes dois livros, altere, modifique mesmo, não as recordações que dele tenho mas o que dele penso, mais como homem do que como militar. Difícil a alteração.

Escrevo estas notas tentando recordar vivências passadas na Guiné. Outras, que sei dele como homem e militar, se não passadas na Guiné do meu tempo nada anotarei.

A primeira vez que com ele me encontrei foi em Mansambo. A data não me recordo. Pensava ser em Junho mas tenho uma nota a dizer que ele visitou Mansambo em 2 de Julho de 68. É possível porque a actividade operacional estava intensa e sofremos um forte ataque ao aquartelamento em 28 de Junho. Irrelevante a data ou talvez não.

Convém recordar que o Com-Chefe estava atento, quotidianamente, aos acontecimentos na Província ou Colónia. Devido à efervescência na zona talvez tenha ido lá naquela data.

Ouvimos o som característico do helicóptero e rapidamente se montou segurançaAterrou e dele saíram o então Brigadeiro Spínola e o seu ajudante de campo Capitão Almeida Bruno. A recebe-los o Comandante da Companhia (que pouco por lá ficava, exercia o comando mais de Fá e Bambadinca) e vários graduados.

Em Mansambo só estavam, se bem me recordo, três grupos e o outro estava á disposição do Batalhão. Também em Fá ou Bambadinca estavam a maioria dos militares da “formação”.

Os cumprimentos normais e o Brigadeiro Spínola questionou, com uma voz rouca e pausada, sobre a nossa situação. Perguntou aos oficiais o nome e o que faziam na vida civil e falou de Angola com o Capitão. Este tinha feito uma comissão como Alferes e, ou se conheceram lá ou tinham outro conhecimento qualquer em comum.

Dirigimo-nos para uma morança, que servia de comando, refeitório de oficiais e sargentos, sala de convívio e muito mais num exíguo espaço. Sobre a mesa foi colocada a Carta da zona e falou-se, com mais pormenor da situação militar. A conversa era mais entre o Brigadeiro e o Capitão.

O ajudante-de-campo estava atento a tudo. No decorrer do breve briefing o Brigadeiro perguntou qual a principal base IN. Foi de pronto informado que era o Burontoni mas que numa noite se conseguia lá chegar saindo de Mansambo.

Sensivelmente a resposta foi esta. Eu devo ter abanado a cabeça ou ter feito outro gesto, simples e breve, de discordância. Se o Capitão não ia l, á porque dava aquela informação e sabendo que, a ir-se lá, não se sairia de onde estávamos e seriam forças superiores a uma companhia. Tudo fácil para ele.

O Capitão A. Bruno, talvez pelo conhecimento que tinha do Com-Chefe quase sem se dar por isso, disse-me algo e eu apontei na Carta.

Continuou a conversa. Já a terminar o Brigadeiro voltou-se para mim e disparou:

- Parece que aqui o Alferes não está muito de acordo com o seu Capitão sobre o Burontoni.

Olhei para ele e, quando ia responder fui interrompido pelo Capitão Bruno que disse ser uma aproximação difícil e o IN ter, antes da base, postos avançados. Dificultava assim qualquer aproximação, pior ainda se fosse feita com saída por Mansambo etc.

Safou-me e o assunto ficou por ali. O Brigadeiro veio para fora e falou às tropas. Discurso inflamado, apelando ao patriotismo, ao dever, à necessidade de ali estarmos. Um discurso com teor idêntico aos do regime vigente nesse tempo. Só que aquele homem, além da memória que mostrou ter, quando da conversa tida com o capitão sobre Angola; com o interesse demonstrado sobre a nossa situação quer face ao IN quer de vida; a visão, quase periférica e atenta a tudo o que se passava em redor e na qual eu caí; ao falar assim aos militares comovia-os e apelava a que lutassem em nome de uma pátria que tudo lhes daria e, pela qual os sacrifícios eram deveres: Alguns, mais sensíveis, tinham lágrimas nos olhos.

Ouvia e pensava para comigo: parece que estou em plena II Guerra e isto são para fotos da “ Revista dos Aliados – Guerra Ilustrada", creio eu; só que com este ar de oficial prussiano dado pelo monóculo, pingalim e luvas pretas (O Capitão Bruno segurava a G3, a descansar a coronha no cinturão, com luvas cremes de condução auto), o Brigadeiro parecia estar noutro teatro de operações.

Depois, pouco tempo depois, começamos a receber notícias do já General e das transformações por ele operadas na Guiné. Além do respeito começo a ver uma personagem diferente do primeiro encontro. Os oficiais superiores certamente também sentiram a diferença e alguns vieram a ser bons operacionais, outros vieram mais cedo para a metrópole. Creio mesmo que todos os militares sentiram a mudança.

Encontramo-nos diversas vezes. Confesso que sempre vi naquele homem, trinta e quatro anos mais velho, o Chefe Militar. Obstinado, de forte coragem e frontalidade, teimoso, determinado em vencer o inimigo mas não de qualquer maneira.

Discordava dele muitas vezes, só que impensável dizer algo. Discordei quando não permitiu montarem emboscadas na margem direita do Corubal, na operação Lança Afiada. Operação que acompanhou talvez diariamente e não se furtando a ir a zonas de maior perigo. Talvez quisesse vencer o inimigo, não destrui-lo, como diz o Cor Comando Matos Gomes. Ainda o respeito pelo IN e que não se torturassem os prisioneiros.

Quanto ás torturas não aceito e, nem me passa pela cabeça, que não estivesse informado sobre determinados comportamentos.

Encontrei-o em Galomaro a querer que retirassem, creio eu, roquetes, na parte inferior das asas de uma DO. Assunto entre ele e os Páras.

Nós estávamos no COP 7 mas, eu e o grupo, só fazíamos segurança e outros trabalhos.

Humano e pronto ajudar quem comandava. Um exemplo: Época das chuvas de 69. Estava com o meu grupo numa tabanca. Tínhamos ido por breves dias. Só que a rendição não se fez e a alimentação e não só estavam a atormentar os militares. Havia que aguentar o que estava a ser difícil.

Uma manhã sente-se o barulho de um helicóptero, foge a malta para a segurança e eu tento encontrar uns calções melhores e umas botas do nosso exército, nada. Atiram-me um quico e aí está o General a sair do héli.

A ele e a quem o acompanha me dirijo. Barba e cabelo grande, camisola, outrora branca, calções e botas não regulamentares. Haja Deus, o quico era regulamentar. Sentido, faço continência, recebo a resposta e vislumbro por detrás daquela cara uma interrogação.

Conheceu-me claro e perguntou o que se estava a passar. Disse que estávamos mal de alimentação devido á época das chuvas, ao prolongar da estadia e a roupa, a minha e de outros, estava a tentar secar depois de uma saída. Falou no tom habitual e despediu-se mais rápido do que costumava.

Talvez duas ou três horas depois novo barulho de heli. Gritam: aí está ele…aí…mas não era. O piloto e o mecânico entregam caixas com mantimentos e uma garrafa de uísque para o comandante daquela tropa. Com os cumprimentos do Com-Chefe. Conseguimos comer decentemente, beber, fumar um cigarro e sorrir.

Passados, talvez dois dias éramos rendidos.

Obrigado meu General em meu nome e dos militares que comando.

São notas, breves e poucas notas de alguns encontros com um Militar que foi meu Comandante e que respeito bastante.

Quanto ao cidadão e ao político nada digo. Na Guiné tentou a política “por uma Guiné melhor”, para saída política e negociada para o conflito. Não só. Posso discordar. Cá foi um cidadão conotado com o regime vigente. Talvez mais antes da ida para a Guiné. Não vou anotar nada sobre isso.

Pós 25 de Abril a História o julgará. Faria cem anos se fosse vivo.

Estou velho pois tenho só menos trinta e quatro anos e uns meses. Velho não, isso é feio de se dizer.

Espero a leitura dos Livros/Biografia. Ainda me falta um.

Um abraço,
Torcato Mendonça
Alf Mil At Art da CART 2339
__________
Nota de M.R.:
Vd. poste anterior desta série em: