1. Mensagem de Ernesto Pacheco Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, com data de 22 de Dezembro de 2010:
Relembrando aquilo que nunca se esquece
Camarada Carlos Vinhal
Muito obrigada pelo teu mail.
Como finalmente, decidi-me a tentar contar a minha história, mais militar, do que civil, vou começar pela internet.
Na minha profissão sempre trabalhei com computadores, mas nunca tive tempo para aprender. Era dada uma chave, e com ela acesso aos campos que como técnicos de nºs tínhamos necessidade.
Reformado, fiquei com um computador, mas durante muito tempo pouco lhe liguei.
Um dia por casualidade, penso que na casa da minha filha, olho para ver que bicho seria a Net e foi facílimo encontrar o vosso SITE e muito rapidamente, encontrava o Passeiro, o Cabral e Mansabá, adorada, odiada, que causou que causa ainda hoje sentimentos contraditórios por vezes dramáticos e violentos mesmo, e outras vezes saudades, não sei bem de quê mas causa e que continua a ter uma força enorme, aparecendo no vosso abençoado site, a cada voltar de pagina, estava lançado e mais uma vez, fui tentando ver, tentando aprender o que mais tinha necessidade, e hoje não ando depressa, mas ando.
Tenho épocas como no Inverno, que lhe dedico muitas horas, no Verão muito pouco, vou para a minha terra e quero ir de mãos a abanar aí dedico-me mais aos jornais, às revistas.
Já escrevi, duas ou três coisas, mas não mandei fotos, e penso que todas elas, desagradáveis, e bastante enroladas, e até talvez mal criadas, o que não faz parte de mim, não escrevi mais, porque vocês são todos uns jovens, a começar pelo Manel Jaquim, eu sou um velho, a minha Mansabá é outra, sem estradas asfaltadas e sem piscinas, mas acho que tão acolhedora como a vossa, eu sou um velho, mas voltar propriamente ao assunto:
Eu sou o Ernesto Pacheco Duarte, nascido a 09.06.1942 (68 Anos).
Antigo Curso Comercial
Natural de Aljezur - Algarve
Camponês de onde o Espinhaço de Cão quase que toca na Foia a (Norte)
Ex-Furriel Miliciano BC1857/CC 1421
Ex-Chefe de Cobranças de Grandes Clientes e Clientes Especiais na Petrogal
Nos clientes especiais estavam incluídas as forças armadas o que durante anos e anos me permitia contactar regularmente com militares.
Resido actualmente em Alfornelos – Amadora - Uma porta Aberta
Sou casado tenho uma filha e dois netos lindos.
A minha vida de militar é igual à de tantos e tantos outros, talvez com a maior diferença, que eu fui para aí a 2.ª ou 3.ª geração a passar a comissão inteira pelo Oio, por Mansabá, com a criação de algo também, para não dizer pior, uma aberração, o K3, só compensado de algum modo com um acampamento que tínhamos em Manhau e que nós encerrámos, mas ajudámos a criar outro em Banjara.
Portanto 40 anos a tentar perceber, o que me tinha acontecido, 40 anos calado falando muito pouco, 40 anos a tentar esquecer, e agora os últimos um pouco anarquista e um pouco mais louco, efeito dos 80 (oitenta) anos que levo agarrado ao mesmo, para não ser muito pesado, digo troquei a pele pela farda de um miliciano que passou por Mansabá.
Em Janeiro de 1964, fui para Tavira, parecia-me tudo louco, uns discursos, que eu não entendia muito bem, mas penso que eram sobre patriotismo, foi muito tempo mas não de todo insuportável.
Acabado o curso, Setúbal e aí havia um problema enorme, não tinham devolvido os invólucros das munições, dos tiros que os batalhões que por lá passavam, era suposto terem feito.
Uns meses de carreira de tiro, a queimar munições, e a não perder os invólucros. Foi Polícia, foi Legião, foi a PVT, quando se equilibrou os stocks, o Comandante agradeceu-me porque eu tinha mantido um muito bom relacionamento, com as forças da ordem civil prevendo-me um bom futuro como homem responsável e quem sabe até no Exército, porque tinha contribuído em muito, para a resolução do problema.
Continuava a não estar muito enquadrado com aquilo, era burro paciência e lá fui para Beja e lá fui dar instrução a um pelotão da GNR e GF que estavam a tirar um curso para Sargentos, estava a ser porreiro. E aí contribuo noutro acto de grande patriotismo, «voluntários» votamos no Américo Tomás. Houve um agradecimento em parada, com missa de acção de graças, com todas as autoridades do distrito, presentes.
Acabada a recruta, exercícios finais na coutada do José Visconde grande amigo do Américo Tomás, mais uma grande festa, com Beja inteira a ver e à noite um grande jantar, e tudo acabou em bem, até para aí dois ou três dias depois, quando os guardas do Visconde, não encontraram as lebres e as perdizes, que eles diziam que estavam lá, e quando tudo estava a correr também eu tenho o primeiro problema, não com o Exército mas com a tropa, a muito custo lá me deixaram sair para Abrantes e sinceramente, não sei como os bichos foram parar às marmitas da maioria da malta.
Abrantes só a loucura de formar duas Companhias, só tendo havido um problema com um jantar porque como bons patriotas tínhamos prolongado a instrução até muito tarde, e não tínhamos dito nada a ninguém.
Em Abrantes não tínhamos Sargentos do Quadro, e havia uns milicianos, como eu já velhotes, e uns que tinham acabado a Especialidade, e tinham saltado para lá.
Este grupinho mais velho fazia tudo, inclusive viver de bem com os seus anfitriões, a quem tínhamos que pedir tudo.
Como dos mais velhos já não assisto ao dividirem a Companhia em duas, porque parto para Santa Margarida onde ia receber tudo o que fazia falta para passarmos lá um tempo que já não estava muito definido em calendário quanto seria, e receber, sargentos do quadro, condutores, cozinheiros, uma pancadaria de gente, de Abrantes só vinham os atiradores.
Começou a mexer comigo, e a sentir um grande peso, uma sensação de impotência muito grande quando saí de Abrantes e há muita gente a despedir-se, e a levantar-se aquela dúvida se nos voltaríamos a ver, trocámos uma série de moradas, eu entro em Santa Margarida já um fulano desconsolado, e com uma sensação de impotência que mais se agrava ao ver as instalações a onde os soldados ficavam a cozinha de campanha, que porcaria.
Assinando um papel por tudo até pelas casernas, não fosse eu vender alguma, um quartel general, com tanto gajo por aquelas secretárias à espera que chegasse a mobilização deles (e muitos amarelados) era o que os motivava, odeio Santa Margarida, odeio a minha sorte, naquela altura.
Aí começa uma outra fase para mim, já desencantado de todo, não compreendia como é que podiam tratar tão mal os soldado, a dureza, violência que representava a porcaria daqueles pavilhões o horror daquele comer de cozinha de campanha e marmita.
E aí fiz coisas gravíssimas quanto à tropa, que deu participações e participações.
Fomos para Alferrarede num carro atulhado, jantar, vestidos de camuflado, à entrada foi giríssimo, com a PM.
O espólio da companhia feito por um sargento ajudante muito gordo, pondo as coisas dentro de uma camioneta, roubamos dessa mesma camioneta tudo quanto fazia falta, apanhamos uma anotação honrosa, por estar tudo certinho.
Quando recebemos as espingardas consegui mais 4, num telefonema que o sarja tinha ido atender, outra menção honrosa, pela responsabilidade que tínhamos demonstrado para com o património da nação, não havia uma espingarda riscada ou com qualquer pequeno defeito…
Oficiais e sargentos fomos fazer os últimos tiros tendo ido o Capitão na viatura connosco, ele desceu e nós fomos descendo atrás dele em plena ordem e respeito, ele foi estender a mão a um capitão gordo que lá estava que lhe deu um raspanete, por não ter apresentado a força, formamos logo rapidamente e cumpriu-se a ordem militar, até ao ínfimo pormenor fazendo com que o gordo se levantasse a cada momento, mas eu trazia uma formação louca de tiro de Setúbal e por ter estigmatismo, o que só soube muito mais tarde, tinha pontaria máxima.
Tivemos todos o máximo em pontuação de tiro e deu para estragar os pés dos alvos quase todos.
O comandante de batalhão apareceu lá queria fazer uns tiritos com a malta, nós à revelia do capitão contamos-lhe, o coronel quis o relatório que o gordo tinha que fazer. O tipo passou por cima de uma série de coisas e só realçou as nossas qualidades como atiradores, e militares disciplinados.
Outro grande crime contra a tropa, na sala de jantar, à entrada os sargentos tinham um cabide enorme onde deixavam as boinas, nós que fazíamos sargentos dia às companhias, arranjava-se outra ordem para as boinas, participações e mais participações.
Quando deixo Santa Margarida e embarco no Niassa aí por Julho de 1965, já não me conheço sou uma pessoa diferente, muito revoltado, uma moral baixíssima, uma auto estima também lá no fundo, um fulano descrente, um fim de semana na Madeira, tendo se esgotado as bebidas no casino e houve baile toda a noite com uma orquestra militar, os estrangeiros, já havia muitos lá nessa altura, e a população da Madeira veio para a rua, adoraram, contra todas as previsões não houve o mínimo desacato, e não faltou ninguém, esse convívio foi maravilhoso, mais uns dias curtindo o resto das bebedeiras, desembarque, e Mansoa um jantar maravilhoso dado pelo Batalhão de Artilharia que lá estava, os Águias Negras, mas a ansiedade e o nervosismo já não se conseguia disfarçar.
Estivemos em Mansoa, 15 dias no máximo.
Nesse espaço de tempo, recebemos as armas fizemos os primeiros tiros, apanhamos os primeiros tiros, um soldado nosso de guarda entre o quartel velho e novo, matou uma preta, um grupo assaltou uns táxis que havia em Mansoa e foram uma noite para Bissau, fomos socorrer, uma auto metrelhadora que na primeira bolhanha na estrada para Bissorã tinha apanhado com uma granada anticarro, acho que com 4 militares lá dentro.
Um furriel nosso ao fazer a ronda à noite a Manssoa, enganou-se no caminho e atolou as viaturas na bolanha, tivemos que ir reforçar o pessoal da ronda, só no outro dia conseguimos tirar as viaturas.
E a terminar, ao irmos fazer guarda de honra a uma companhia de Balantas que iam jurar Bandeira, chove a cântaros e os indivíduos que não tinham sido formados por nós abandonam a formatura.
Mansabá era o destino e apelando ao nosso orgulho não quisemos escolta, o comandante de sector acedeu de boa vontade, penso que ele achou que era uma maneira simples de se ver livre de nós, para sempre.
Mansabá primeira saída «UASSADO» um morto, não dava para respirar, mas lá fomos enchendo os pulmões e começando a respirar com alguma dificuldade, mas estava instalada em nós uma raiva enorme e a partir de aí, acentuou-se em definitivo aquele sentimento nós ou vós, então que sejam vós e assim lá fomos vivendo, usufruindo de uma vantagem que tínhamos à altura as G3 tinham maior alcance do que as pistolas metralhadoras que era o que eles mais usavam, como o barulho do nosso tiro também era mais desmoralizador.
Claro que andei pelo Oio, e fui ao Móres mais do que uma vez e a todos aquelas casas de mato, cercando Mansabá mais do que uma vez.
Tivemos reencontros, alguns violentíssimos, outros menos, em todos os sítios assinalados num mapa que junto e ainda as emboscadas na estrada e as minas.
Estivemos em Mansabá com uma companhia dos Águias Negras depois sozinhos e por fim, já era sede de Batalhão.
Daqui para a frente é-me muito mais difícil falar porque eu ainda vejo as cenas, ainda oiço o barulho das armas e os gritos e ainda sinto o cheiro, aquele cheiro a terra e pólvora, mas eu vou falar e não o faço já porque eu como louco não oficial e como gosto muito de escrever, não tenho a noção da quantidade que escrevo, e como não sou escritor, não tenho que arranjar caixotes de adjectivos, para ficar tudo bonitinho, e como sou muito calão raramente leio o que escrevo.
Mas reafirmo foi muito grande o pontapé que levei à chegada, lá eu não fazia a mínima ideia do que ia encontrar.
Foi muito grande o pontapé que levei à chegada à metrópole, não conhecia o meu país e percebi, ou pelo menos penso que percebi, que era uma guerra de soldados e seus familiares, não a guerra de uma nação.
Era assim como viver de bem com as gentes da tabanca e à noite íamos à procura dos fulanos que conviviam connosco durante o dia, tem exagero, mas talvez não tanto como possa parecer.
Ernesto Pacheco Duarte
Bcaç 1857/Ccaç 1421
Mansabá - 1965 a 1967
2. Fotos enviadas pelo camarada Ernesto:
Vista aérea do Quartel de Mansabá em 1965/67, substancialmente diferente em 1970 - Legenda:
1 - Caserna de Sargentos; 2- Balneários de Sargentos e Praças; 3 - Caserna de Soldados; 4 - Cantina e Refeitório; 5 - Armazém de Géneros; B - Porta de Aramas e estrada para Cutia; 7 - Cozinha Rancho Geral; 8 - Messe de Sargentos, Secretaria, Comanda, Posto de Rádio e Posto Cripto; 9 - Cozinha de Sargentos e Depósito de Material de Guerra; 10 - Casa do Chefe de Posto; 11 - Posto Médico; 12 - Messe e Quartos dos Oficiais; 13 - Homens da Artilharia e Auto Metralhadoras; 14 - Caserna dos Soldados; 15 - Parque Auto: 16 - Peças de Artilharia.
Vista aérea da povoação e quartel de Mansabá
Ernesto Duarte na estrada de acesso ao quartel
Estrada de acesso ao quartel, quem chegava de Cutia. Vê-se lá bem ao fundo a Casa do Chefe de Posto situada dentro do aquartelamento.
Ernesto Duarte em Mansabá
Diz Ernesto Duarte: - Os carregadores, são meus, muito meus, furados na minha cintura, quando eu estava de visita a CAI.
O Movimento Nacional Feminino de visita ao K3, às portas de Farim.
Um foto de Bissorã, infelizmente com pouca qualidade
3. Comentário de Carlos Vinhal:
Caríssimo Ernesto,
Tivemos já umas trocas de mensagens, pelo que sabes como me sinto particularmente honrado por te receber na nossa Tabanca Grande.
Tenho, assim como toda a minha CART 2732, para contigo e para com a tua Companhia, uma gratidão enorme pelo que nos deixaram como herança naquela terra de Mansabá, onde alguém disse, se ardia vivo.
Tivemos o bem-bom de uma estrada alcatroada entre Mansoa e Mansabá, que vos terá custado tanto suor e sangue, como nos custou a nós, a que ajudamos a alcatroar entre o Bironque e o Rio de Farim.
Um parênteses para te dizer que fui buscar a Mansoa um Primeiro Sargento (de má memória) que vinha destinado à minha Companhia. Ele que tinha estado em Mansabá nos anos de 1965, tremia só de pensar que tinha de fazer aquela estrada até lá. Quando se apercebeu de que já não íamos por picada, mas por alcatrão, o homem até rejuvenesceu. Esteve connosco pouco tempo, felizmente.
Falamos de locais tão familiares que é quase trágico-cómico partilharmos estas recordações. Lembro-me de uma operação à tabanca de Uassado numa noite de temporal desabrido, com um guia que nos prometeu manga de ronco, não tendo acontecido nada.
Vós, como nós, calcorreastes aquela malfadada estrada entre Cutia e Mansabá passando junto ao corredor que atravessava a estrada, em Mamboncó, em direcção ao Móres. Ali nos ficaram duas vidas a um mês do fim da comissão.
Pelas fotos que mandas, constato que as instalações do quartel foram ampliadas depois da vossa permanência, pois os quartos dos furriéis ocupavam no meu tempo as casernas 1 e 3, sendo que a 4 era a messe de sargentos. Os balneários de que falas eram dos furriéis e dos militares locais. Deixou de haver distinção entre alimentação de oficiais, sargentos e praças, havia uma única cozinha e a comida igual para toda a gente.
Lembras-te do senhor José Leal, o homem que explorava a floresta e que matava a fome ao pessoal? Era o único branco existente em Mansabá. Ao tempo tinha com ele a esposa e a sogra. Nasceu-lhes uma menina em 1970.
Se não te importares vou colocar as tuas fotos no site da
CART 2732, porque fazem parte da história de Mansabá, onde já quase não há vestígios da passagem dos portugueses.
Esperando que não tenhas esgotado todas as tuas recordações nesta apresentação, fico(amos) à espera de mais histórias do Morés, K3, Bironque, Cutia, Manhau, Mantida (de má memória para CCAÇ 3417), etc.
Recebe desde já um abraço de boas-vindas de toda a tertúlia, prometendo que não deixas morrer, pela parte que te toca, Mansabá neste Blogue.
O teu camarada, amigo e mansabense
Carlos Vinhal
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Setembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3163: O Nosso Livro de Visitas (25): Francisco Passeiro, ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)
Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7506: Tabanca Grande (256): João Bonifácio de volta ao Canadá, desiludido com Portugal