quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8660: Recortes de imprensa (46): Guiné: Cmdt Fuz Esp Rebordão de Brito, em entrevista ao “O Diabo” (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)

1. Com a devida vénia e agradecimentos ao semanário O Diabo (fundado  em em 10 de Fdevereiro de 1976) publicamos hoje, para quem ainda não conhece, mais um interessante depoimento para a catarse da história da guerra na Guiné, datado de 16 de Junho de 1992. É uma entrevista ao lendário Comandante Fuzileiro Especial Alberto Rebordão de Brito (entretanto já falecido), que de alguma forma reforça as ideias e  matérias reproduzidas nos poste P8644 e P8650.

A postagem, em formato Word, contou mais uma vez com a preciosa e amigável colaboração do nosso Camarada Manuel Marinho (1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), pelo que se registam igualmente os nossos melhores e devidos agradecimentos. (MR)

Comandante na reserva, Rebordão de Brito, em entrevista.

“ O PAIGC DIFICILMENTE AGUENTARIA MAIS UM ANO DE LUTA”
Chama-se Rebordão de Brito e é comandante na reserva. Nasceu em Cabo Verde, de onde saiu com apenas 4 meses de idade. Decidiu ser militar ao serviço dos Fuzileiros Especiais nº 12, que foram colocados na Guiné. Aí participou na conhecida operação Mar Verde e chefiou campanhas em cenário de guerra. No dia 25 de Abril estava de férias em Londres, regressando 4 dias depois da revolução. De Lisboa embarcou para a Guiné para que as tropas africanas portuguesas não caíssem na mão do inimigo. Com a chegada ao poder de Vasco Gonçalves decide abandonar o País. Parte para o exílio, no dia 11 de Março de 1975, porque a Pátria que serviu não é a mesma. Hoje tem uma vida igual à de tantos militares que, como ele, combateram nas províncias ultramarinas embora não se sinta refugiado no seu próprio país, não quer ser fotografado, nem pel’O DIABO


O DiaboEm que ano foi colocado em África?

Comandante Rebordão de Brito – Não fui colocado em África fui voluntário, para prestar serviço no Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 12 que partia em comissão de serviço para a província ultramarina da Guiné. Estranhará por certo esta diferença de terminologia, mas, o facto é que, tendo nascido em Cabo Verde, sempre me senti português de alma e corpo inteiro e nunca um colonizado.

O DiaboQuais eram os objectivos da operação “ Mar Verde”?

R B – O principal objectivo era resgatar os portugueses que se encontravam prisioneiros em Conacri. Simultaneamente dado conhecermos a enorme oposição a Sekou Touré, seria facilitar a ascensão ao poder de um governo não hostil a Portugal que interditasse ao PAIGC a utilização de santuários no território da Guiné-Conacri. A dar-se tal situação é fácil de prever que o esvaziamento daquele partido era uma mera questão de tempo.

O DiaboEssa operação destinava-se também a resgatar Amílcar Cabral?

R B – Como atrás disse, o principal objectivo não era esse. No entanto, se Amílcar Cabral se quisesse acolher à nossa protecção seria certamente
bem-vindo, e quem sabe, talvez ainda hoje fosse vivo.

O DiaboConsta-se que um dos objectivos seria apanhar uma série de aviões “MIG” que estariam estacionados numa base da Guiné – Conacri. Tem algum fundamento?

R B – Não era básico. Essa intenção fazia parte da neutralização das forças da Guiné-Conacri, o que permitiria andar por lá praticamente à vontade. O que interessava era trazer os prisioneiros, e como havia connosco uma série de dissidentes do regime da Guiné-Conacri, a ideia era dar cobertura à instalação de um poder que nos fosse favorável, e com isso, claro, desmantelar o PAIGC.

O DiaboQuem foram os principais intervenientes nessa operação?

R B – Bom, essa pergunta é de difícil resposta. Temo, por um lado esquecer-me de alguns que, convicta e orgulhosamente, nela participaram e, por outro, relembrar quem, convenientemente hoje, por ela não quer ser recordado. Ainda assim, e porque é homem que não renega o seu passado, não posso deixar de referir o inspector-adjunto Matos Rodrigues. Embora não tendo participado fisicamente na operação, ao seu entusiasmo, patriotismo e proficiência na recolha de informações, estabelecimento de contactos e apoios se deve uma boa parte da gestação da operação “ Mar Verde”.

O DiaboComo descreveria a situação da guerra ultramarina à data do
25 de Abril 74?

R B – Julgo ser suficientemente conhecido o panorama em Angola e Moçambique para que a ele me refira agora. Quanto à Guiné, em que a situação era um pouco mais complicada (dada a pequenez do território e a grande extensão fronteiriça), creio, apesar desses condicionalismos, termos sido, vítimas de bem tramada intoxicação, de deficiente informação ou ainda de ambas. E digo isto porque em Junho 1974, quando da entrada dos primeiros elementos do PAIGC, estes se apresentavam, na sua maioria esfarrapados e com péssimo aspecto. Alias, ao conversar na povoação de Cacine com o então comandante da sua marinha (Pedro Gomes), este confessou-me que dificilmente o seu partido aguentaria mais um ano de luta. Esta confissão é sem dúvida corroborada pelo insistente pedido feito às nossas autoridades para que se procedesse ao imediato desarmamento das forças africanas.

O DiaboÉ verdade que na Guiné o PAIGC levava uma grande vantagem sobre as tropas portuguesas?

R B – Nada mais falso. Se se disser que os guerrilheiros atacavam com alguma impunidade guarnições fixamente agarradas ao terreno, isso poderá, nalguns casos, corresponder à verdade. No entanto sempre que os encontros se davam com tropas especiais ou outras tropas comandadas, com determinação e vontade, o confronto era-lhes sempre e fatalmente, negativo.

O Diabo É de opinião que de um modo geral a guerra em Angola e Moçambique estava ganha?

R BEstava estacionária e em regressão.

O DiaboEntão só na Guiné é que ainda havia problemas?

R B – Na Guiné havia, mas depois vim a averiguar de que não era tão grave como isso. Após o 25 Abril vim a confirmar essa situação. Na altura não havia pilotos suficientes, nem meios aéreos, mas se tivéssemos forças de intervenção rápidas, em vez de fazermos uma guerra de quadrículas, nós tínhamos conseguido resolver a questão.

O DiaboO que aconteceu na Guiné depois do 25 de Abril?

R B – Eu estava em Londres no dia 25 de Abril. Vim para Lisboa a 29 e segui para a Guiné onde as manobras de guerra tinham parado. Havia uma situação um tanto ou quanto confusa, e como as operações tinham parado havia que dar destino àquela gente que tínhamos enquadrado, africanos, que eram bastantes. Uma das minhas preocupações, um pouco antes da independência, foi andar entre Lisboa e Bissau a ver se conseguia integrar aquelas forças nas futuras Forças Armadas da Guiné e, no meu caso, criar uma marinha onde eles tivessem um lugar, nem que fosse para lhes salvar a vida. Não se conseguiu totalmente. Nas minhas unidades consegui-o mais ou menos, pagando-lhes até ao fim desse ano (1974).
Aconselhei-os a saírem da Guiné o mais depressa possível e dirigirem-se para o Senegal para não terem a sorte que na altura tiveram, muitos comandos africanos.

O DiaboQue foram mortos?

R B – Sim, e muitos por culpa deles, porque se deixaram ficar na Guiné-Bissau.

O DiaboAcompanhou sempre todas as operações militares na Guiné?

R B – Sim, de 1967 a 1974. Saio da Guiné antes da independência.
Recusei-me a assistir à independência.

O DiaboConhece alguns episódios ocorridos durante a guerra colonial que queira contar?

R B – Como deve calcular, ao longo do tempo que passei no ultramar, milhentos episódios se passaram. Como temos falado da “Mar Verde” vou-lhe contar um, de certo modo caricato, que durante ela se passou.
Quando o meu grupo de assalto largou do navio-mãe e partiu em direcção às embarcações inimigas houve um bote que se atrasou visivelmente. Voltei atrás e insultei o seu chefe, o pobre marinheiro Sani, (mais tarde assassinado pelos seus “irmãos libertadores”). Disse-lhe que se tinha medo podia voltar para bordo, pois não queria cobardes no grupo. Ele balbuciou umas palavras que na confusão não entendi e deixei-o, voltando à cabeça da formação. Concluída a missão dei ordem de reembarque e cada um voltou ao seu bote. Isto é, cada um julgou ter voltado, ao seu. Mandei-os seguir à minha frente a fim de verificar os resultados e confirmar se não haveria algum retardatário. Verificações feitas, acelerei a fundo e da carcaça do meu potente motor saiu um profundo gemido e um tossir que assustaria o mais calejado médico dos sanatórios do Caramulo. Enfim, grunhindo e arrastando-se, o miserável bote lá conseguiu chegar ao navio onde, no negrume da noite, qual fantasma, me esperava uma branquíssima dentadura que generosamente apenas me perguntou:
“ Então chefe, a quantas cervejas tenho direito?”

O DiaboConcorda com a afirmação de que o general Spínola se terá deixado ultrapassar pelos acontecimentos aquando do 25 Abril?

R B – Não concordo de forma alguma. Acho, isso sim, que o general Spínola, raciocinando e agindo como homem e militar íntegro que era e é, foi enredado nas malhas que a traição e baixa política tecem. Convém não esquecer os vários “judas” (conscientes ou imbecis úteis), que na sua órbita gravitavam. O general Spínola queria manobrar e verificou que não tinha forças para isso, alguns não compareciam, outros saíram deliberadamente, outros faziam o jogo da esquerda sem saber bem porquê. São os tais a quem eu chamo os “imbecis úteis” e ele viu-se enredado numa confusão tremenda e só teve, a saída que teve em 30 de Setembro, que foi aquele discurso.

O DiaboComo se processou a fuga do general Spínola para o Brasil?

R B – Antes de mais refuto liminarmente a tese da fuga. Como já foi amplamente divulgado, dadas as informações que circulavam, houve um grupo de civis e oficiais (entre os quais o general Spínola), que foram aconselhados a receber a protecção de uma das poucas unidades militares não completamente conspurcadas pelo desvario pseudo-revolucionário que então grassava em quase todo o País.

Em determinada altura, por estarmos sem qualquer comunicação com o exterior, acompanhei o general Spínola à unidade vizinha no intuito de sabermos o que se passava. Quando o nosso helicóptero regressou ao ponto de onde partira verificamos imediatamente uma enorme efervescência na guarnição e soubemos que alguns oficiais já tinham sido presos. Considerei que o melhor, de momento, seria embarcar a esposa do general Spínola e a aproveitar o helicóptero para sermos colocados fora da unidade e daí seguir para onde julgássemos ser mais conveniente. No entanto, dada a perseguição movida durante algum por dois aviões, considerou-se que o mais seguro seria rumarmos a Espanha. Não foi, nesta altura, considerada a hipótese de partir para o exílio no Brasil.

O DiaboPortanto nesta altura ninguém pensava no exílio?

R B – Nessa altura apenas pensávamos em sair da base aérea e sermos colocados num sítio qualquer e dali arranjar um transporte que nos levasse aonde quiséssemos. Não havia nada a ideia de sair do País, mas dado as condições foi a melhor coisa a fazer. Assim considerámos a hipótese de ir para França, para não estarmos muito afastados de Portugal.

O Diabo Era essa a única solução?

R B – Sem dúvida. Com a loucura colectiva comandando o País, o mais provável era ter havido fuzilamentos a coberto da defesa da Revolução.

O DiaboEm sua opinião o que é que poderia ter alterado o rumo dos acontecimentos nos dias que se seguiram ao 25 de Abril?

R B – É-me muito difícil dar uma resposta razoável a essa pergunta, porque, nessa altura, me encontrava na Guiné tentando salvar a vida dos fuzileiros africanos que tive o privilégio de instruir e comandar.

O DiaboO que pensa dos acordos do Alvor celebrados em 1975?

R B – Os acordos do Alvor? Poderá considerar-se acordo uma farsa montada pelos vassalos da ex-URSS com um fim único de servir o expansionismo desta e adiar o seu estertor? Creio bem que não.

 O DiaboOs acordos do Alvor, uma farsa?

R B – Não é mais do que isso. Estava tudo perfeitamente orquestrado para entregar aquilo às forças marxistas de Angola, e, aliás, com o desenrolar da situação verifica-se isso.

O DiaboComo classifica neste momento a situação vigente na Guiné?

R B – É dramática. É um país, sem economia, sem indústrias, a agricultura está destruída. Não tem quadros; uma classe dirigente e completamente corrupta; todas as ajudas exteriores que recebem são desviadas. Não vejo grande saída para a Guiné: ou é absorvida por aqueles dois grandes espaços francófonos a norte ou a sul, ou (passo o termo) encosta-se a Portugal e é a única maneira de sobreviver como país independente.

O DiaboComo natural de Cabo Verde como vê o futuro daquele arquipélago?

R B – O caso de Cabo Verde é um pouco diferente. Tem uma colónia de emigrantes muito grande, quer nos Estados Unidos quer na Holanda, e em Portugal, como é óbvio, mas as outras são muito mais potentes economicamente, e como tal, recebe imensas divisas. Neste momento está a dar alguns passos no turismo e tem condições para desenvolver a pesca, e, para além disso, tem quadros e uma população muito mais evoluída e culta que a Guiné. Embora também não tenha uma agricultura muito desenvolvida, porque em Cabo Verde só chove quando Deus quer, e muitas vezes Deus não quer.

O DiaboQual é a sua opinião relativamente ao diferendo existente entre o Governo e a Presidência por causa da lei dos coronéis?

R B – Eu não gostaria de ter opinião acerca disso, mas julgo que os únicos prejudicados no meio disso tudo são os militares que não foram tidos nem achados para alimentar essa fogueira e que estão nessa querela sem culpa nenhuma.

O DiaboO que pensa do serviço militar obrigatório ter passado para 4 meses?

R B – Entre haver serviço militar obrigatório com 4 meses e não haver, acho que era preferível não haver. Fazer isso, sim, mas com umas Forças Armadas profissionais, bem treinadas e relativamente pequenas, porque serviço militar obrigatório de 4 meses não dá para coisíssima nenhuma.

O DiaboÀ semelhança do que acontece nos EUA com os Fuzileiros?

R B – Porque não. Basta olhar para Inglaterra, são perfeitamente profissionais, quando são chamados estão sempre prontos, e sabem aquilo que fazem.


O DiaboOs nossos Comandos não correspondem a essa necessidade?

R B – Os Comandos são um ramo das Forças Armadas, mas como sabe têm também serviço militar obrigatório. Apenas os quadros são profissionais.

O DiaboMantém contactos regulares com os militares que o acompanharam em campanhas no ultramar?

R B – Muitos dos meus colegas que serviram nos fuzileiros não estão ao serviço ainda. Tenho contactos permanentes, quase todas as semanas um deles me telefona e anualmente fazemos um almoço para comemorar a ida para a Guiné. Os outros, os africanos, que temos aos poucos conseguido trazer para cá, quer eu, quer o meu antigo imediato, estão todos empregados, e mais não temos feito porque não temos tido apoios.
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Notas de M.R.:

Vd. também os postes relacionados com esta matéria em:

6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8644: Recortes de imprensa (43): O pacto secreto de NINO com a PIDE, jornal TAL & QUAL, 14 Maio 1999 (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)

9 de Agosto de 2011 >

Guiné 63/74 - P8650: Recortes de imprensa (45): Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê? Da autoria de António Vaz Antunes (Coronel de Infantaria)

Vd. último poste desta série em:

9 de Agosto de 2011 >

Guiné 63/74 - P8650: Recortes de imprensa (45): Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê? Da autoria de António Vaz Antunes (Coronel de Infantaria) 

Guiné 63/74 - P8659: Contraponto (Alberto Branquinho) (38): As Frentes e os Homens

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 8 de Agosto de 2011:

Caro Carlos Vinhal
Porque verifiquei com a colocação do poste de hoje que estás, ainda, ao serviço neste mês de Agosto, aqui te envio um novo texto a contrapontar.

Um abraço do
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (38)

As “FRENTES” e os “HOMENS”


1 – As “frentes”

Tenho lido aqui, muitas vezes, afirmações idênticas às que seguem:

- “Eu, que estava na linha da frente…”
- “A minha Companhia, que estava na frente de combate…”

Recordo-me ter já feito um comentário a um poste, dizendo que, em guerra de guerrilha, não há frente(s).
Podem ser “aquecidas” ou “arrefecidas” temporariamente certas zonas, a critério e decisão de quem faça a guerrilha, mas certo é que a guerrilha não luta pela conquista e ocupação do terreno e não organiza o mesmo para o defender, de forma a impedir o avanço e sua conquista pela(s) força(s) inimiga(s). Isso acontece em guerra clássica.

Esse equívoco existiu nos primeiros tempos de acções de contra-guerrilha em Angola, quando foi entendido, do lado Português, que, com a “conquista” de determinados espaços ou lugares, usados como bases pela guerrilha, tinha sido conseguida “a vitória contra os terroristas”. Fora “uma” vitória, mas não “a” vitória. À guerrilha não interessa conquistar terreno, como é sabido. (Só para propaganda externa foi usada a expressão “zonas libertadas”).

Assim, essas referências a “linha(s) da frente” não informam devidamente os “leigos” que leiam os postes aqui publicados.

Mas, se não havia “linhas da frente”, não quer dizer que não tenha havido muitas retaguardas…


O nosso "ex-Alfero" Jorge Cabral ladeado por actuais camaradas (versão feminina) do Exército Português
Foto de Mário Fitas, editada e legendada por Carlos Vinhal

2 – Os “homens”

Outras afirmações que, de tempo a tempo, surgem são:

- “Um dos meus homens…”
- “Dei ordem aos meus homens…”

A gente sabe que esta manifestação de comando enche a boca e satisfaz o ego.
Mas, meus senhores, o que eu gostaria (AGORA!), nos tempos que correm (e se pudesse estar na tropa), era dizer umas coisas assim:

- “Uma das minhas mulheres…”
- “Tinha eu todas as minhas mulheres à minha volta…”

E mais não digo.

Alberto Branquinho

(Negritos e itálicos da responsabilidade do editor)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8591: Contraponto (Alberto Branquinho) (37): Adivinhação... ou as guerras de Bissau (...e afins)

Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado)

1. Comentário do dia 8 de Agosto de 2011 de José Manuel Pechorro (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73) ao Poste 8644:

Acabo de ler a postagem sobre a intenção do Nino desertar do PAIGC…

Na minha modesta opinião e sinceramente acredito na história descrita.

A batalha de Guidage (Estrada Binta – Guidage, os ataques e flagelações ao quartel, a acção da nossa aviação, e o nosso fortíssimo contra ataque contra a base do PAIGC em Cumbamory, que foi quase totalmente destruída, foi de facto uma pesada derrota para o movimento da guerrilha, que inseriu na zona cerca de 800 combatentes!

O PAIGC atacou e cercou uma companhia de recrutamento na Guiné, a CCaç 19, de etnia Mandinga e o Pel Art 24 com negros da tribo Balanta, sediados em Guidage. O Batalhão de Comandos Africanos, eram negros da província, que invadiram a base de Cumbamory; além de outras forças africanas da Guiné que participaram na batalha de Guidage… Esta gente teve papel preponderante na sua derrota! Deu-lhes que pensar.
Os negros africanos da Guiné faziam-lhes frente e combatiam por Portugal…

A operação Cumbamory desenrolou-se em confrontos no dia 19 de Maio de 1973, quem estava em Guidage a 5kms, ouviu todo o desenrolar dos combates. O Batalhão retirou para Guidage, onde chegou cerca das 18 horas, logo escurecendo, e foram aparecendo…

Cansados, alguns esgotados, sujos, enlameados, suados, carregando além do seu armamento pessoal, 1 ou 2 armas do PAIGC e espingardas G3 que encontraram nos armazéns do IN.

Ao chegar ao quartel deixavam-se cair no chão e adormeciam logo, em locais de risco, como perto do edifício do comando, longe das valas e até na parada os vi deitados…

No comando estiveram com o senhor TCor Cav Correia de Campos, os oficiais do Batalhão de Comandos Africanos, o Major João de Almeida Bruno (hoje General), os Cap António Ramos, Matos Gomes e Jamanca (negro) e o Alf Marcelino da Mata. O Cap Raul Folques foi para a enfermaria. A eles ouvi relatos do que acontecera durante o dia…

Escrevi que ao dormirem fora das valas estavam em alto risco! Ouvindo, um oficial branco comando disse-me: “Depois da sova que levaram, hoje não atacam Guidage. Estão a tratar dos feridos e dos mortos!”

Assim foi, o IN sabendo do mais provável ataque terrestre a Cumbamory, no dia 19 começou com uma flagelação cerca das 02h10 e outra 05h15, com morteiro 82 e canhão s/recuo, sem consequências; o dia 20 foi de descanso e só voltaram a incomodar no dia 21 cerca da 02 horas da madrugada, durante 30 minutos com morteiro 82 e canhão s/recuo, meteram as granadas quase todas na parada, numa noite de luar, fresquinha…

E será assim até desistirem, com flagelações de uma a duas por dia …

O seu esforço foi de tentar impedir a chegada de abastecimentos via estrada, que não conseguem evitar no dia 29 e onde a 38-ª Ccmds teve o principal confronto com o PAIGC no Cufeu…

O senhor Major Almeida Bruno deu-me o Relim da operação para remeter para Bissau, onde este descrevia o resultado da operação, que somado ao que ouvi na sala de operações aos oficiais comandos, desmente o que o senhor Manuel dos Santos “Manecas” (comissário político do PAIGC da zona norte) menciona no livro “A Última Missão”, do Maj (hoje Cor) Calheiros no que se refere a Cumbamory na batalha de Guidage. O senhor “Manecas” tentou limpar da história um acontecimento verídico: O PAIGC foi derrotado em GUIDAGE, e nesta batalha os soldados negros portugueses da Guiné tiveram papel de destaque no seu fracasso. É isto que eles não querem admitir... Porque tem ainda forte impacto político…

Se nós com 47 baixas mortais (brancos, e negros na sua maioria) nos angustiou; eles, com os seus cerca de 150 mortos (que já mencionei noutras intervenções) e a sua base principal na zona norte atacada e destruída, o abalo foi fortíssimo e compreende-se que o Nino procurou aproveitar o momento para dar outra solução para a Guiné Portuguesa… Os Mandingas da CCaç 19 não escondiam o seu desagrado em serem governados por Cabo Verde, se os portugueses abandonassem a Guiné…

Um abraço a todos,
José Pechorro
Ex-1.º Cabo Op Cripto –71/73
Ccaç 19 – Guidage - Guiné

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2. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1971/74), com data de 10 de Agosto de 2011:

Ao ler a excelente e muito completa discrição do camarada José Perrocho, sobre o que se passou em Guidage em 1973, assaltaram-me algumas duvidas que gostava de ver elucidadas.

O que desejo perguntar é se nesta batalha e na defesa de Guidage, esteve o capitão Salgueiro Maia? Figura que todos nós conhecemos e eu pessoalmente admirava e na verdade li um relato seu sobre penso eu, o mesmo período.

Se o Nino Vieira pessoa que sempre detestei, foi posteriormente o comandante operacional no Sul e do ataque a Guilege?

E por último volto aqui a fazer uma pergunta já noutro poste feita, se não estou em erro pelo C. Martins: - Porque não se defendeu Guilege? Porque não foram disponibilizados os meios que se utilizaram em Guidage? Porque foi pedida ajuda e ela não foi disponibilizada em tempo útil? Onde estavam os comandos africanos e brancos? Onde estavam os pára-quedistas? Os fuzileiros que raramente para aqui são chamados onde estavam? Porque só foram utilizados depois? A contra guerrilha não é atacar o inimigo quando ele se prepara para nos atacar a nós?

Já se tem falado aqui amplamente, sobre a diferença de seis combatentes portugueses para cada um do PAIGC, para além de blindados aviação, artilharia pesada e ligeira. Porque não se utilizou essa supremacia?

Por que é que um militar com o prestigio do General Spínola é substituído no comando da Guiné, quando ele foi o impulsionador da chamada dos Guinéus à sistema politico e militar do território, com a sua famosa acção psicológica?

Praticamente a nossa tropa nativa era equivalente em número de homens do PAIGC, mas eles com muito menos logística.

Por que se abandonaram zonas e nunca mais foram por nós ocupadas?

Como também já aqui foi referenciado o nosso governo levou jornalistas e observadores a alguns desses locais em visita relâmpago, mas não ficou lá ninguém a ocupar o terreno.

Já por mais de uma vez, foram apontadas como parte da revolta dos capitães, a situação militar na Guiné para além da ditadura na Metrópole. Também afirmações de que Angola era caso arrumado e Moçambique estava a caminho disso têm sido um constante. Se estávamos tão bem, por que se resolveram as coisas da forma que foram resolvidas? Acaso a Junta de Salvação Nacional não era composta por oficiais superiores com larga experiência nas questões Ultramarinas? Ou os galões que ostentavam saíram em alguma rifa?

O decréscimo da actividade das guerrilhas, que de repente reaparecerem com violência redobrada, são tácticas conhecidas em todo o lado. Não há frente nem retaguarda. É uma táctica movediça que obriga a quem ocupa, um esforço enorme de meios em equipamento e homens. São como incêndios que temam em reacender-se, depois de terem sido dados como extintos.

Quero deixar bem claro, que em nada belisco a valentia dos nossos soldados, que considero como os únicos no Ocidente, que aguentaram as condições em que vivemos na Guiné.

Desculpem mas estes casos já foram aqui aflorados por diversas vezes, mas porque num comentário, foi utilizada uma frase meio nebulosa ou fora do contexto, logo os assuntos em discussão descambam em ataques pessoais e ficam relegados para a velha «Guerra Perdida ou Ganha».

Como popularmente se diz Perguntar não Ofende, espero não ter melindrado ninguém.

Um abraço
Juvenal
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Notas de CV:

Sobre os acontecimentos de Guidaje, vd. postes de:

19 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5300: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - I Parte (José Manuel Pechorrro)

21 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5310: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - II Parte (José Manuel Pechorrro)

16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5479: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - Agradecimento e algumas informações (José Manuel Pechorro)

4 de Abril de 2010 Guiné 63/74 - P6105: (Ex)citações (63): O Ten Cor Correia de Campos foi um dos heróis de Guidaje (José Manuel Pechorro)

4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5763: Notas de leitura (62): Salgueiro Maia (1): Crónica dos Feitos por Guidage (Beja Santos)

6 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8646: (Ex)citações (145): Uma afirmação, um desabafo, uma pacificação (Joaquim Mexia Alves)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



II - GUINÉ, 1968

Dia 1
Novo ano começa. Embora a Guiné e os seus fantasmas se continuem insurgindo à minha frente, o ano de 1968 não se apresenta sinistro. A Guiné será muito em breve para mim e para todos estes heróis que me acompanham, como que um sonho acontecido ontem, do qual raras vezes visionaremos imagens precisas. Este novo ano será para mim um ano de libertação, um ano de paz. Como alguém me escreveu, este ano poderá ser para mim um ano maravilhoso. Quando os meus olhos se deleitarem de novo a olhar o belo panorama dos montes da minha terra, cobertos do verde dos pinheiros e do cinzento das oliveiras, serei de novo feliz. E, como eu, todos estes homens da Companhia de Caçadores 1546, quando pisarem o chão de Lisboa serão homens diferentes.

Será uma nova vida que todos teremos pela frente. Será um novo futuro a sorrir às nossas vidas.
Que esse dia e essa hora não demorem a chegar!..

A convicção de que este ano não será para nós mais um ano de guerra, é já uma razão muito forte a descongestionar as nossas mentes, todo o nosso espírito, até aqui impregnado de medos e sombras.
Hoje, em rigor, não fiz nada. Foi por isso um dia de tédio... Mesmo um dia inútil...
Ao fim da tarde cacei algumas rolas... Apaga-se o tédio matando alguma coisa!.. E matar, mesmo que seja uma simples rola, causa-nos sempre um estranho prazer... Não passamos de uns reles sádicos...


Dia 2
Pelas dez horas começou a grande reza dos Mandingas. Fui assistir, a convite do régulo e dos chefes da tabanca. Realizada ao ar livre, a cerimónia, desprovida de aparato externo e de barulho, é cheio de simplicidade. Quando vejo estes homens rezar, com tanto fervor e convicção, fica-me até pena de não ser Mandinga ou Fula como eles. Na vida quotidiana destes muçulmanos a religião, com toda a sua singeleza, é fundamental.

Chegou de Farim a secção de quartéis da Companhia que nos virá render. É mais uma esperança... É o dia do regresso cada vez mais próximo...

Guidaje
Foto: Ex-1.º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (2009). Direitos reservados


 Dia 3

De tarde saí para os lados de Guidage, a queimar o capim que se estende ao lado da estrada e que já está a ficar seco. Com estas queimadas pretende-se aumentar a visibilidade ao longo da estrada, anulando assim a possibilidade de emboscadas muito perto do itinerário que temos que percorrer.
O alferes que veio com a secção de quartéis é um doente mental muito chato. Se assim continua, antes de terminar a comissão vai maluco para a metrópole.

Se os que vieram para cá normais, no gozo perfeito das suas faculdades, acabam por ficar malucos, que destino poderá estar reservado aos que chegam aqui já contaminados, e muito, com o vírus da maluquice?


Dia 4
De tarde fui a Guidage.
A Companhia está a entregar o material à tropa que nos vem substituir. É a rendição à vista. A hora do regresso a chegar...


Dia 5
O capitão anda absolutamente maluco. Já não tem remédio. Vive só para os caprichos de que se vai alimentando, e mais nada. Cada homem para ele não passa de um simples boneco, com quem ele se farta de brincar... É um louco... Agora deu-lhe para martirizar o pessoal da secretaria com trabalho nocturno. Como de costume, levanta-se perto do meio-dia. De tarde vai de jeep para a tabanca fazer ninguém sabe o quê... Ou até se sabe! À noite dá-lhe para chatear toda a gente. Passa o tempo a berrar e a gritar. As pessoas convenceram-se de que ele é doido e, talvez por isso, vão tendo paciência para o aturar... É um homem desorganizado e sem regras...
Mas não é tarefa simples aturar um doido desta natureza, principalmente quando esse doido é chefe...
Durante quanto tempo teremos ainda que o aturar!

Binta
Foto: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.

Dia 6

Chegaram as barcaças com o abastecimento. O 2.º Tenente que comanda a escolta ficou connosco todo o dia.
O inimigo terá sofrido 3 mortos e alguns feridos no rebentamento de uma armadilha que montei em Tenanto.


Dia 7
Ao alvorecer parti para Farim ao encontro do pelotão que ficará em Guidage no interregno da rendição. Ainda antes do almoço parti com a coluna de viaturas para o referido destacamento. Só piquei a estrada a partir de Genicó. Regressei a Binta ao entardecer. Deixei em Guidage a secção de quartéis e um alferes do Batalhão de Engenharia.

A nossa guarnição que estava em Guidage, o 4.º pelotão, também veio comigo para Binta. Aquilo já não é um pelotão de tropa, mas um grupo de homens esfarrapados. A miséria desta tropa chegou a tal ponto que já nem dão aos soldados uma farda em condições. Aparentemente somos uma tropa esfarrapada. De facto, somos todos um grupo de heróis mal vestidos e mal tratados... Dificilmente haverá no mundo um exército que trate desta maneira os seus heróis!

Agora por aqui anda tudo louco...

Estou com medo de um ataque dos turras... O grau de abandalhamento e de desmotivação é tal que, se os gajos se dignam atacar isto a sério, pode acontecer um grande desastre. Todos se comportam como se a guerra já tivesse terminado ou fosse qualquer coisa que acontece noutro mundo, muito longe de todos nós. Mas não é assim... Ainda estamos na guerra... À nossa volta, e talvez a poucas centenas de metros, para além do rio, o inimigo existe. Às vezes até me espanta o facto de ele não nos atacar com mais frequência.


Dia 8
O ambiente geral é de que iremos embora dentro de pouco tempo... Por isso, agora os dias parecem mais longos e são mais difíceis de passar... Mas lá se vão passando. O que interessa é sair o mais depressa possível deste Vietname em miniatura, fugir a esta guerra que parece não ter fim, desta guerra que apenas serve para destruir vidas, muitas vidas, mutilar pessoas, criar ódios... E enriquecer, por certo, alguns homens, que nem serão muitos.

Há na companhia, ao que parece, propostas para algumas condecorações e louvores. Se os boatos se confirmarem, e se tiverem lugar os louvores ou as condecorações de que se fala, tudo não passará de uma farsa, e de um verdadeiro ultraje à dignidade de todos estes homens. Nestas condições, para mim, pessoalmente, um louvor, ou uma condecoração, seria algo que me negaria a aceitar... Vindo da pessoa que poderia vir, isso constituiria para mim uma vergonha, ou um ultraje, e não algo de que me pudesse orgulhar...

Comenta-se por aí, e com razão, que a tribuna dos heróis está a ser ocupada por fantoches, que o sacrifício foi suplantado pela fanfarronice, que a justiça deu lugar à desvergonha, à ingratidão, às cenas de pancadaria e a um novo tipo de escravatura.
E as virtudes militares deram lugar aos relatórios majestosos, repassados de cinismo e de mentiras, onde a guerra se apresenta como vencida e o inimigo como inexistente, ou esmagado. E é este o mundo dos nossos heróis. Os que de facto o são, se é que alguns há por aí, são heróis desconhecidos... Mas, para além do mais, o que estes homens precisam, e todos nós precisamos, é, quando formos desmobilizados, de condições de emprego, de trabalho e de integração social. Com as condecorações e com os louvores de que se fala, ninguém irá resolver problema nenhum.
 A concretizarem-se os boatos que se ouvem por aí, o mundo dos nossos heróis fica muito de rastos... Será que a cobardia algum dia poderá vir a ser condecorada?


Dia 9
Acredito que a política nem sempre segue o rumo que os seus criadores desejam incutir-lhe. As ordens e as ideias que partem dos que governam chegam aos seus destinatários sempre muito deturpadas. É, talvez, o problema dos intermediários... Dos realizadores...

Hoje eu pergunto-me:
- Será que o governo, em Lisboa, está devidamente informado sobre o evoluir dos acontecimentos, de tudo o que se passa com esta guerra? Tenho muitas dúvidas. Como o que está em causa é o prestígio do exército, e o dos seus chefes, pressagiar o abandono desta guerra e o arrumar das malas, seria um golpe demasiado duro para essa gente que apenas se deleita a olhar para o ouro dos galões que traz sobre os ombros... Para muita gente não convém que a guerra termine... É talvez por isso que ela ainda irá continuar por muito mais tempo. Os generais não têm interesse em que isto termine. Com o fim da guerra eles iriam perder importância e influência, o que não lhes interessa nada. E perderiam também muito dinheiro! E todos nós sabemos que é o dinheiro, e tudo quanto com ele se consegue, quem alimenta todos estes conflitos.

Invoca-se o interesse da população... Do povo... Mas é só para atirar areia aos olhos da sociedade que se deixa cegar com muita facilidade.

O destino tem destas ironias:
- Faz-se tudo em nome do povo... Justifica-se tudo com o interesse do povo... E ele, em nome de quem tudo é feito, não beneficia, em rigor, mesmo de nada. Ele é mesmo sacrificado dia a dia, hora a hora, nesse altar iníquo que é, no nosso caso, uma torpe ideia de Império, com algum sentido em séculos passados, ou até nas primeiras décadas deste século vinte, mas que hoje, face à evolução cultural e política que pelo mundo todo vemos, não faz mais sentido. Mas, infelizmente, é em nome dessa ideia ultrapassada e torpe, que por aqui se combate, se sofre, se definha e se morre! Só não se adivinha até quando tudo continuará assim.


Dia 10
Coluna a Guidage. Foram os rebeldes. No regresso trouxeram a secção de quartéis. O alferes de Engenharia ficou em Binta por falta de transporte.


Dia 11
Antes de partirmos para a Metrópole o capitão já começou a sementeira do joio. Quer deixar aqui a erva daninha da intriga e da discórdia. Em conversa com o novo Comandante das tropas de Binta, e referindo-se ao Brayma Sonco, que o ano passado fugiu de Guidage para o Senegal, disse-lhe que o homem regressará, embora seja contribuinte do PAIGC. Estará apenas a aguardar que a nossa Companhia se vá embora. Entende que, se regressar, deve ser preso.
Nunca quis admitir que, se o homem fugiu, foi apenas por medo do que lhe poderia fazer, ou mandar fazer... Ele, capitão, foi o único causador dessa fuga.

O Brayma Sonco, até no momento em que desertou foi um homem leal... Se, como se quis insinuar, ele fosse efectivamente simpatizante do PAIGC, na altura em que desertou teria tomado outra atitude bem mais prejudicial para as nossas tropas. O homem fugiu para o Senegal, mas ocupou o seu lugar até ao último minuto... Foi-se embora mas não levou a arma nem a farda... Levou com ele apenas o seu orgulho e a sua dignidade. Roubaram-lhe a oportunidade de ser herói! Roubaram-lhe aquele momento grande em que poderia “fazer ronco,” ser espectacular! E ele não aguentou a frustração e foi-se embora...


Dia 12
O Alfange, a barcaça da Marinha de Guerra que nos levará para Bissau, é esperado com ansiedade geral. Os preparativos da partida estão concluídos. Agora é mesmo só esperar a hora do embarque... Embarcar e… partir...
Agora já ninguém pensa em mais nada. Já ninguém apaga a esperança...
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**)Vd. primeiro poste da série de 8 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois

Guiné 63/74 - P8656: Álbum das Glórias (52): Ordem de Serviço N.º 43 do BCaç 2892, de 18 Fevereiro 1970 (Arménio Estorninho)

1. Mensagem de Arménio Estorninho (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2011:

Camarigo Carlos Vinhal, Saudações.
Habitualmente guardo o que acho por conveniente, quando apropriado apresento como troféu e tal como o que se segue:

- Pele de uma jibóia que media cinco metros de comprimento, que fora curtida de modo tradicional;
De Aldeia Formosa (Quebo) – Região de Tombali – 1968.

– Peça em madeira do artesanato guineense, trata-se de uma gazela mãe a acariciar uma cria;
De Bissau Região de -1970.

Sendo possuidor de um amuleto de recordação na circunstância a Ordem de Serviço (O.S.) Nº 43, de 18/Fev/70, do Batalhão de Caçadores 2892, instalado em Quartel de Aldeia Formosa (Quebo) - Guiné.

A seguir, em 24 de Fevereiro de 1970, a CCaç 2381, deslocou-se de Empada para Bissau e ficou a aguardar embarque para a Metrópole.

Esta relíquia de O.S. é a própria que já em Bissau, foi lida perante a CCaç 2381, a qual depois me foi oferecida pelo meu amigo e Irmão Maioral, o ex-1.º Cabo “Escritas” António Soares C. Gonçalves, natural e residente em Vinha da Rainha – Soure.

Neste documento, devidamente assinado pelo Comandante do Batalhão de Caçadores Nº 2892, o então Tenente-coronel de Infª. Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto, foram concedidos os últimos Louvores a Militares da CCaç 2381, “Os Maiorais” de Empada, Guiné 1968/70.

Prezo em apresentá-la, onde também são mencionados outros camaradas, Pelotões e Companhias, que à data se encontravam sob o Comando do citado Batalhão de Caçadores e servirá também para memória futura.

Com um Abraço
Arménio Estorninho








(Clicar nas imagens para ampliar)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8441: Efemérides (51): A nossa malta no 10 de Junho, em Belém (2) (Arménio Estorninho)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3836: Álbum das Glórias (51): Santo Tirso, 1963, o almirante (Teixeira da Mota) e o poeta (Ruy Cinatti) (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8655: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte II) (Jorge Canhão)




Mais três Ilustrações retiradas da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), unidade que foi rendida pelo BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)... (Sobre esta aparente confusão de dois batalhões com o mesmo número, ler o poste do nosso camarada Agostinho Gaspar, P7414, de 10 de Dezembro de 2010).

Um exemplar da história desta unidade, o BCAÇ 4612/72,  foi-nos oferecido em tempos  pelo nosso camarigo Jorge Canhão (ex-Fur Mil 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).  O Jorge há havia aqui publicado uma série de postes com a história do batalhão... (se bem que incompleta, segundo julgo crer). 

Como já foi referido em poste anterior (*), este documento tem cerca de uma dúzia de interessantes (e raras) ilustrações, feitas por um ilustre desconhecido (toca a descobrir o autor, nminha genete!), a estilete sobre "stencil"... 
 
Na minha opinião,  têm qualidade suficiente para merecerem também vir à luz do dia, pelo menos algumas que, na fotocópia, apresentação melhor resolução. 

Possivelmente depois das férias, retomaremos alguns aspectos da actividade operacional deste batalhão que foi rendido já depois do 25 de Abril de 1974 pelo BCAÇ 4612/74 (unidade a que pertenceu o nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribero).

Imagens: Cortesia de  Jorge Canhão (2011).
 
[ Selecção / edição / legendadem: L.G.]

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Nota do editor:

(*) Vd., poste anterior da série > 5 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8640: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte I) (Jorge Canhão)



Guiné 63/74 - P8654: Parabéns a você (299): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745


Com um abraço do camarada Miguel Pessoa, Tertúlia e Editores
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Notas de CV:

- Alberto Nascimento foi Soldado Condutor Auto na CCAÇ 84 que esteve em Bambadinca nos anos de 1961 a 1963

- Tomás Carneiro foi 1.º Cabo Condutor Auto na CCAÇ 4745 - "Águias de Binta" que esteve em Binta, Cumeré e Farim nos anos de 1973 a 1974

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8649: Parabéns a você (298): Anselmo Garvoa, ex-Fur Mil da CCAÇ 2315/BCAÇ 2835

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8653: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (38): O Sétima Dia


1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:

O SÉTIMO DIA

A vida militar cria laços difíceis de explicar para quem “não andou por lá…”
Depois, já na vida civil, com o correr dos anos esses “laços” estreitam-se $em relação a alguns camaradas. O contrário também por vezes acontece quando, com o decorrer do tempo, conhecemos um pouco melhor com quem lidámos quando éramos jovens de vinte e poucos anos.
Os encontros anuais dos ex-militares aumentavam ou diminuíam o "valor acrescentado” do que conhecíamos ou julgávamos conhecer em relação aos nossos antigos camaradas de armas. Nalguns casos foram precisos anos para perceber melhor com quem tínhamos lidado durante esses anos da guerra do Ultramar.
Apesar de tudo não tivemos muitas surpresas porque os maus bocados de uma comissão de dois anos definem o carácter e a maneira de ser de cada um… sem grandes margens de erro.

O mais irreverente dos Alferes da C.Caç. 675, que serviu na Guiné dos idos de 1964-66, Artur Mendonça de seu nome, nado e criado em Felgueiras, só voltou a aparecer anos depois dos primeiros encontros anuais da Companhia.
Na foto o Capitão Tomé Pinto e o Alferes Mendonça em Binta-Guiné (1965).
Era então já engenheiro têxtil, com sinais evidentes de estar bem na vida. Era um homem de sucesso que já tinha trabalhado mundo fora e que continuava brincalhão .Era um “gozão” nato.
Ao longo dos anos sempre que nos encontrávamos contemplava-me de imediato com a recitação de uns versos ingénuos que tinha escrito e publicado num “jornal de parede” da Companhia, no Natal de 1964.
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
O Mendonça tinha uma memória prodigiosa…
Tivemos que aguentar esta piada ao longo dos anos, embora por vezes não nos faltasse vontade de mandar o nosso Alferes “abaixo de Braga”. Mas como o Mendonça já vivia em Felgueiras…
Há uns dois ou três anos soube pelo Belmiro Tavares - outro Alferes da C.Caç. 675 – que o Mendonça estava bastante doente . Tinha feito quimioterapia e já sabe que a partir daí a vida sofre grandes mudanças.
O Tavares, que tem as suas raízes familiares em Sever do Vouga, visitava-o de vez em quando.
Uma semana atrás o telemóvel tocou e vimos que do outro lado estava o Tavares: - Então Kamarada tudo bem?
Nem acabámos a brincadeira habitual entre nós – Kamarada mas com “K” – porque pelo tom de voz do Tavares percebemos que ele não estava bem.
Entre soluços e poucas palavras disse-nos que estava em Felgueiras e que o Mendonça tinha morrido. O seu corpo já estava na Igreja e o funeral ia ser dentro de meia hora. Desligou de seguida sem nos dar tempo de dizer nada.
Havia que deixar passar algum tempo e foi o que fizemos.
---#---
No passado dia 4 de Agosto viajámos para Felgueiras. O Tavares veio de Lisboa e nós apanhamos a sua boleia na estação de serviço da Nazaré, na A-8.
Tínhamos entretanto combinado telefonicamente que uma representação da “675” deveria estar presente na Missa de 7º.Dia.
Connosco viajou também o Moreira, ex-Furriel Atirador da nossa Companhia.
Durante o tempo de viagem – mais de duas horas – recordámos entre risos inúmeras “estórias” do menino “Arturinho”, como mais tarde viemos a saber que era conhecido na sua terra natal . Rimos com gosto convencidos de que seria daquela maneira que o nosso Alferes gostaria de ser recordado pelos seus pares.
Viveu a vida militar sempre a “gozar com a tropa”no limite do admissível para não ser punido. Assumia que não seria voluntário para nada mas que cumpriria os “mínimos”, pois também não lhe interessava levar uma “porrada”.
No final da comissão ,na ausência do Capitão, desempenhou por alguns dias as funções de Comandante de Companhia Interino. Aproveitou o tempo para louvar os maiores “cromos” da Companhia. Quando dizemos “cromos” queremos dizer os militares que só teriam sido exemplo em “nabices”…
Por volta das 19H00 estávamos junto da mansão do menino “Arturinho” onde viemos a conhecer a sua viúva, dois filhos e um dos seus netos.
A família estava conformada com a partida do seu ente querido. Tinham durante cerca de três anos feito tudo o que era possível para o ajudar na sua luta contra a doença e estavam convencidos que o seu familiar tinha partido sem sofrimento.
A Igreja e o Cemitério eram a poucas dezenas de metros da casa do Artur Mendonça.

Um seu neto de 7 anos, com ar de esperto que nem um rato, andava de bicicleta à nossa volta com à vontade e destreza.
Tinha sido um dos grandes amigos dos últimos tempos de vida do seu Avô, a quem ensinava com paciência como gravar programas da televisão e outras habilidades informáticas.
Seguiu-se a missa do 7º. Dia, celebrada por um sacerdote despachado.
Vinte sete minutos mais tarde estávamos fora da Capela da Pedreira.
Visitámos o cemitério, com a surpresa de ver o nosso amigo sepultado num jazigo pouco vulgar.

«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
Depois foi o tempo do regresso.
Viajámos até Sever do Vouga onde pernoitámos numa das casas do Belmiro Tavares.
Na noite longa que se seguiu dormi mal, muito mal e pensei longamente no menino “Arturinho”.
Julguei perceber finalmente a sua maneira de ser e a irreverência congénita de que fazia alarde.
Tinha sido criado em berço de ouro -o seu Pai tinha sido um respeitado médico da região de Felgueiras - e atingiu os diversos patamares da vida sem grandes dificuldades porque alem de ser esperto era “filho de família”…
O que, quer se queira quer não, dá sempre jeito.
Quando chegou à vida militar percebeu rapidamente os pontos fortes e fracos da vida castrense.
E gozou sempre que pôde com a tropa. Na boa…
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma
nova.»
Até sempre, menino Arturinho.
Até sempre, meu Alferes Mendonça.
JERO
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:

3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8208: Histórias do Jero (37): 3 de Maio de 1966, o dia D de desembarque em Lisboa (José Eduardo Oliveira)

Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
É só para recordar que este livro se vendia nas tabacarias da Guiné, ouvi mesmo comentários mordazes acerca de relatos que pareciam ficcionados, Alexandre Barbosa descreve incursões em áreas que a guerra tornou improváveis. Só que tudo quanto ele descreveu foi anterior à guerra. Impressiona, mais do que a qualidade da prosa, a autenticidade da sua devoção pelas pessoas e a natureza, a exaltação da caça com as suas preliminares e por vezes o seu trágico desfecho com a morte do caçador.
Uma Guiné de nostalgia que apetece reler, pois pesa a estima e a devoção por aquele cantinho africano que guardamos no coração.

Um abraço do
Mário


Guinéus: contos, narrativas, crónicas

Beja Santos

“Guinéus”, de Alexandre Barbosa, foi publicado pela Agência-Geral do Ultramar em 1967. O livro tinha sido distinguido com o Prémio Literário Fernão Mendes Pinto, modalidade de novelística, em 1963. A crítica aplaudiu, considerando que versava belos testemunhos de humanidade, com um poderoso recorte de personagens guineenses, uma mistura equilibrada entre o etnográfico. O autor viveu na Guiné durante 18 anos, provavelmente antes da eclosão da guerra, uma boa parte das suas narrativas venatórias passa-se na região Sul, em localidades profundamente afectadas após 1963. Alexandre Barbosa faz parte daquele leque de autores ainda da literatura colonial cujo discurso narrativo mistura uma atitude cosmopolita com o fascínio africano.

Falando dos bijagós, exalta o carácter identitário do povo, a criatividade da sua escultura e os aspectos por vezes desconcertantes das suas práticas animistas; um povo em que a mulher decide abertamente com quem casa, dá sinais da sua opção afectiva. Apaixonado pelos segredos das matas, Barbosa deixou-nos textos eloquentes de quem captou pacientemente, apaixonadamente, sons, cores, cheiros, basta este exemplo: “Do seu esconderijo escuta enlevado os ruídos estranhos do mato e o fascínio do canto dos pássaros de plumagem policroma. Segue com enternecimento as exuberantes correrias dos pequenos antílopes; o ar embevecido de uma gazela pintada que vigia as primeiras traquinices do filhote; labor admirável de uma colónia de abelhas silvestres; o vaivém dos pássaros tecelões levando nos bicos filamentos de capim para entretecerem os ninhos baloiçantes nos pilões, ou o galanteio quixotesco dum fritambá em redor da fêmea confundida e hesitante. Continua vigilante para ver a astúcia de um civete que espreita uma ave desprevenida, a jibóia que avança subtilmente para o roedor hirto de espanto, petrificado; o grupo de urubus, atraídos pelo odor da morte, a banquetearem-se com os restos de animal abatido, ou o curioso trabalho de equipa de uma legião de formigas pretas a transportar insectos mortos ou restos de carne das vítimas dos felinos. Uma vez por outra cai um tronco, com fragor, corroído pela baga baga; drapeja um ramo por golpes de brisa ou brincadeira de macacos ou desprendem-se mais folhas secas e encarquilhadas para se apodrecerem no solo húmido e ubérrimo”. Exemplo que vale por si: um domínio perfeito do que é possível ver, ouvir e cheirar, dito em língua portuguesa, alguém que se rende à exuberância de uma floresta tropical.

São histórias de dor, há mesmo crítica velada, ao trato colonial dominador, relatos de admiração do labor mandinga quando faz os seus diques para aproveitamento dos recursos do solo. Também admiração pelas artes cénicas dos lutadores felupes, combatendo agilmente ao som do bombolom, agradecendo sempre o talento dos caçadores nativos, não terá sido por acaso que ele lançou a seguinte dedicatória, no arranque da obra: “Aos nativos mancanhas Nicolau e Armando e ao fula Mamadú Djaló, meus fiéis pisteiros e ideais companheiros durante centenas de digressões venatórias através do mato guineense sob o sol acutilante, o cacimbo envolvente, a rija chuva e a fúria dos tornados, cenário de tantos momentos de satisfação, de desalento e, por vezes, de perigo, que sucederam para marcar os motivos mais saudosos que vivi em terras guineenses”. Alexandre Barbosa descreve como os caçadores untam o corpo com sucos vegetais para ludibriar o olfacto dos animais, munem-se de mezinhas e amuletos, guardas-do-corpo, tudo tem a sua função miraculosa: para que não suceda qualquer desastre de caça, para que haja poder de concentração no instante em que se procura abater o hipopótamo ou a onça.

Por vezes o autor deixa-se embalar pela toada a que a cultura o vincula, vai desinsofrido na encenação da escrita, o pretexto é um cenário africano, naturalista, como se exemplifica: “No penhasco onde assenta o farol não há rebentação de mar e neste lado, na ilha irmã, o quase imperceptível ondulado das águas estira-se preguiçosamente sobre o lodo reconquistado com pezinhos de lã, o terreno deixado antes no fadário rotativista das marés (…) O ambiente de quietude claustral cede vez a outro, este aspecto de chocalhante debate em hospício de alienados (…) Uma canoa gentílica demanda bolama. Ex-tronco que caiu ante a violência dos golpes de terçado e que milhentas de tasquinhadelas de machete tornou concavo e navegável.”

É uma prosa naturalista, épica, de comunhão lírica, de glorificação pelo korá, tambor, dança frenética, de sentido respeito pelo trabalhador africano que desbravou e dominou a terra. O seu empolgamento precede tudo quanto a guerra veio deixar para trás, só assim se explica como proponha entusiasmado o turismo nas regiões do Corubal, as visitas à lagoa de Cufada ou à mata de Cantanhez.

“Guinéus” foi dado à estampa profusamente ilustrado, tem fotografias do maior interesse: dançarino bijagó antes de iniciar a dança do “peixe-verga”, vemos ninhos de pássaro-tecelão, exóticos penteados balantas, cerimónias islâmicas, pescadores mandingas da ilha de Bolama, cenas de alpendre, entre outras. Para ler, recordar e até comparar com tudo aquilo que nós vivemos, naquele nosso tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8642: Notas de leitura (262): Marcello e Spínola: A Missão do Fim (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8651: Blogpoesia (157): Não sei qual é mais feio: / se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo... (Luís Graça)


Lourinhã, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades > Agosto de 2011 > Pedras do meu caminho...

Foto (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados


Dedicatória:

Em homenagem aos nossos médicos, que passaram pelo TO da Guiné (1961/74), em geral; e ao meu ortopedista, o Dr. Francisco Silva, em particular...  E a cima de tudo, a todos os caminhantes que, como eu, precisam das patas, das duas patas,  a da esquerda e ada direita, para caminhar... e aprender que o caminho se faz... caminhando, como dizia o poeta. (LG)

Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo…


Fui fazer um raio X
à pata, esquerda.
É tão feio o esqueleto, assim descarnado.
Uma merda, dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto, inteiriço,
que seja apenas uma pata,
até mesmo só a pata esquerda,
la gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota
cambada, cardada,
civil e militar.
Tanto a esquerda como a direita, pois claro,
que ambas aprenderam
a andar a toque de caixa...
- Esquerda, direita, esquerda! -
e já levaram muita pisadela nos calos.

- É uma merda, doutor, o esqueleto
visto  ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
eu gosto de te ver, ó esqueleto meu!
 O ortopedista não concorda:
Afinal, é onde ele põe a mão
e ganha o pão nosso de cada dia.
P'ra mim, desculpem-me a franqueza,
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas, medalhados ou não,
é feio o esqueleto, assim radiografado.
Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.

É peremptório o relatório, médico:
Tenho o dedo grande do pé todo torto.
Dois dedos encavalitados.
Um joanete.
Um trambolho.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias da vida,
das pedras das vielas e calçadas,
dos trambolhões da tropa, da Guiné, eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.

Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
- É feia a alma -,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc, curandeiro, balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais de náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo, diz ele,
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…

- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.

Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
Mais lúgubre que a minha alma.
Tem um cancro, generalizado,
local, regional, global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta ao coração,
ao mais fundo do fundo,
do osso até ao tutano.

Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação:
- Em boa verdade,
não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia,
diz-me o cirurgião do mundo…

Explicou-me,
em traços largos,
com um desenho
na irrisória capa de uma revista cor de rosa,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul ou rosa, verde ou vermelho.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso, da pata, do joanete, da alma…

Resta-me,
impávido e sereno,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé, esquerdo.
A partir do dia 1 de Setembro.
- Depois das férias,
vamos começar por tratar desse joanete…

(E eu tenho a secreta esperança,
confesso,
de que,  se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica mais jeitosa…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!)

Luis Graça
Caminhante, entre o Vale de Frades e o Paimogo,
muitas vezes sem rede...

Lourinhã, Agosto de 2011


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Nota do editor:

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