Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de Outubro de 2010 > Posto de sentinela junto ao porto
Foto (e legenda): © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados1. Mensagem do nosso camarada José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 18 de Novembro de 2011:
Meu amigo Carlos
Aqui te envio um texto na sequência de outro que li, ambos sob o tema do título deste.
Um forte abraço para ti
José Brás
TRÊS MILHÕES DE VISITANTES
Cito apenas na parte que me foi dado ver, o desabafo de Armando Fonseca(**), a propósito dos três milhões de visitas ao blogue, "(...) Estou inteiramente de acordo com os comentários do camarigo Manuel Marinho. Eu próprio não enviei o resto da minha história por me parecer que estaria fora de contexto visto que o que tem aparecido ultimamente - e visito o blogue todos os dias - são textos escritos por intelectuais da escrita e não as simples descrições das situações vividas na guerra. Com um abraço (...)".
E é este pensamento, não direi a regra geral porque nunca fui muito de passar rasoira sobre o alqueire e deixar a superfície do milho idealmente plana, nem bago a mais, nem bago a menos em toda a largura dos treze litros, é este pensamento, redigo, que mais vai na alma da maioria dos camaradas perante o prato forte da Tabanca, isto é, o testemunho escrito e fotografado da sua passagem pela Guiné nos anos entre 63 e 74.
Nada tenho contra este pensamento e devo mesmo relembrar que aqui já disse antes da compreensão de um fenómeno que, na diferença de ferramentas, de estilo e de formas que cada um tem para se expressar, pode criar-se uma espécie de inibição em grande parte da camarigagem, levando-os a uma postura que pode apresentar um dos dois aspectos (ou os dois juntos) A contenção ou a reclamação.
Se o segundo caso pode assumir, até, a face de alguma riqueza na troca do correio, e nesse caso, assumido o respeito mútuo, poder recriar e recriar-se nos conteúdos do blogue, o primeiro caso poderá trazer verdadeiro prejuízo aos propósitos e objectivos da sua criação e às funções que, na dinâmica que todos os fenómenos sociais possuem em si mesmos e no contacto com o mundo, este espaço tem vindo a preencher na alma de milhares de cidadãos e na divulgação de verdades que, sem isto, continuariam escamoteadas ao juízo da sociedade mais alargada do País.
Então, quando se juntam os dois casos, ou a contenção exagerada pode dar azo a uma reclamação também exagerada, ou a reclamação pode reforçar e alargar ainda mais a contenção.
Devo dizer que não me parece ser este o caso do camarada Armando Fonseca, pelo menos na parte que me foi dado ler e entender apenas como lamento porque "o que tem aparecido ultimamente - e visito o blogue todos os dias - são textos escritos por intelectuais da escrita e não as simples descrições das situações vividas na guerra".
Mas na verdade já assistimos aqui à expressão de verdadeiras revoltas na explosão de camaradas profundamente agastados contra o espaço ocupado por esses alegados "intelectuais", mas mesmo contra a expressão mais elaborada do relato, do sentimento, da opinião que julgam não corresponderem a verdades verdadeiras mas a outras, produtos de criação fantasiosa de prosápias individuais que, por isso, não deviam ter lugar neste seu espaço.
Não sei, talvez que tenham razão, pelo menos na reclamação sobre o espaço ocupado, perigosamente substituindo o relato raso de coisas que aconteceram e que aqui podem e devem vir assim mesmo, sem mais indagações, bala é bala, granada é granada, pronto... por falas escritas que poderão não ser mais que especulação manienta de quem se julga capaz de descobrir mais sobre quem disparou a bala ou despoletou e atirou a granada. E também sobre quem recebeu a bala no peito, ou se estraçalhou na explosão da granada.
Quem eram ambos de um lado e do outro, e o quem eram deve incluir logo, não apenas a sua fotografia, ainda que emocionada ao lançar a granada ou a retalhar-se na sua explosão, mas também como nasceu, como cresceu, como se fez gente, onde aprendeu que era seu dever atirar balas ou granadas ou delas morrer, onde ganhou ódios e amores e coragens e medos... e causas que valham a sua morte.
Há duas coisas que aqui tenho defendido.
Uma, é que a verdade não é apenas a da fotografia que, bem ou mal tirada, desde logo capta ou esconde a pessoa que tem aquela cara. A verdade nunca é apenas a leitura imediata e visível em dado momento, mesmo que na morte de homem, mas um conjunto de outras verdades e mesmo de algumas mentiras que se somam para nos dar a ver uma superfície apenas nas causas que despoletam.
E é obrigação de quem tem ferramentas para cavar na busca mais aprofundada desse novelo, que busque ou que tente buscar as ligações e os porquês do vigamento do edifício que se vê, ainda que para isso tenha de "inventar" de supor, de recriar os antes, os agoras e os depois, os possíveis seres que justificam possíveis actos, possíveis lugares e tempos, não menos reais do que os que foram vividos em cada segundo do respirar dos personagens.
Noam Chomsky, célebre linguista americano, professor em Harvard e no famoso "Massachusetts Institut of Tecnology", diz em "O Poder Americano" que..."existe uma minoria privilegiada a quem as democracias ocidentais concedem ócios, facilidades e a educação necessária para buscarem a verdade por detrás da camada deformadora da ideologia dominante que cobre a nossa visão da história em curso". "Cabe aos intelectuais dizer a verdade e denunciar as mentiras". Mais à frente questiona-se ele próprio reconhecendo que "Martin Heidegger escreve numa declaração de 1933 em prol de Hitler que "«a verdade constitui a revelação daquilo que torna um povo seguro, lúcido e forte nas acções e no entendimento das coisas»".
Poderá parecer que tais citações nada têm a ver com esta racha entre camaradas que se sentem prejudicados pela escrita mais elaborada sobre a realidade que apreenderam na sua vivência na Guiné, e aqueles que o fazem desse modo. Como dizia o outro, na verdade está tudo ligado.
Agora, naturalmente, quem navega nessa experiência, o faz sempre, ou deve fazer, a partir de realidades vividas, por ele ou por outros que lhas contam, juntando muitas vezes em cada personagem recriada, não apenas aquilo que ela terá sido realmente, mas o pensar de outros, os actos de outros, as ânsias de outros, as sortes e os azares de outros, igualmente vivos ou sugeridos pela capacidade especulativa do criador, mas também não menos possivelmente reais.
E pode ser dessa aproximação da recriação à realidade ou a realidades, que se constrói a qualidade da ficção, estando o criador seguro que, acontecimento relatado terá mesmo acontecido no espaço e no tempo que se contêm no relato, porque as condições da realidade relatada impõem tais resultados.
E quase poderei afirmar que o que aqui têm escrito os acusados de "intelectuais", nem são mentiras e invenções, nem menos ou mais importantes do que o que escrevem os que se queixam e preferem a "simplicidade " rasa do relato hoje, que julgam tão fiel quanto o foi no local e no centro do acontecimento, há quarenta anos.
Aliás, a mentira pode até ser maior no relatório sobre uma emboscada sofrida, do que na ficção que a recriou mais tarde. Todos nós conhecemos casos destes, e, de facto, quem escreve hoje numa perspectiva ficcional, fez as mesmas ou piores picadas do que os que, com a sua simplicidade honesta, mostram fotos com ou sem macacos e dão vazão à sua alegria por poderem aqui estar em convívio, contando as suas "aventuras".
Eu fiz 12 meses de Medjo, Guiledje, Balana, Gadamael Porto e só pisei Bissau para vir uma vez de férias com as mãos queimadas pelos canos de várias G3 que utilizei em Medjo na véspera, e para apanhar o Niassa de volta ao puto.
E o camarada Armando Fonseca, por onde andou?
Bom mesmo, e isso tem que ser entendido assim, é termos um espaço onde, cada um à sua maneira, diga a verdade da sua vida e da dos seus na mata sub-tropical da Guiné, no respeito e conservando a amizade que aqui se cultiva.
E quem diz que a inibição que prende a vontade de falar aos que se julgam menos capazes ou mais verdadeiros, não poderá inibir também os outros, os que poderão sentir-se também "fora do contexto", para usar as palavras do Armando?
Num caso ou no outro, quem perderá sempre é a verdade que o blogue busca em permanência.
E também o abraço, diga-se, para ser verdadeiro.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 13 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9036: (Ex)citações (155): Em louvor de Mário Fitas e da sua Pami Na Dondo: Deus é apenas um horizonte nos nossos esforços a caminho da perfeição (José Brás)
(**) Vd. poste de 17 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9055: O nosso blogue em números (17): A propósito da sondagem dos 3 milhões... Comentários de Armando Fonseca / José Nunes / Manuel Bastos / Rui Silva.... Foto de Guileje, de Abílio Pimentel
Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9058: O nosso blogue em números (18): A propósito dos 3 milhões de visitas... Comentário de Ricardo Figueiredo (ex-Fur Mil, 2ª CART / BART 6523, Cabuca, 1973/74)