quarta-feira, 13 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

1. Em mensagem do dia 10 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a nona "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

9. Saída de Bissau para Bissorã

Bissau, 23/Outubro/65 
Escrevo-te hoje porque, precisamente hoje, vou sair de Bissau. Irei para uma zona do interior, a minha nova e com certeza definitiva residência nesta malfadada Guiné. Vamos lá a ver o que me irá acontecer. Sem dúvida que a vida se vai tornar um bocado mais dura. Mas nem tudo são males. Lá também passarei horas descansadas. Brevemente te darei notícias mas é natural que antes do próximo avião isto não seja possível. Por isso te escrevo agora. É lógico que a correspondência se atrase mais um ou dois dias mas isto não é problema.

O facto mais importante aqui está. Ficarei a residir no “mato”. Mais uma grande experiência de vida. O perigo não é nenhum papão e tudo se há-de passar, minha amada N., da maneira mais agradável. Irei fazer por isso. Tem calma, não te exasperes. Tudo correrá bem. Seria ridículo minimizar o perigo mas o que também é certo é que é preciso ter muito azar para morrer. 

A hora do nosso reencontro há-de chegar. Não percas a esperança porque há razões para a sua existência. Uns vêm, outros regressam. Daqui a poucos dias há-de chegar, mais uma vez, uma carga de homens mas quase uma mesma quantidade regressará à metrópole. Lá para os primeiros dias de Novembro aí estarão e, se fores ao cais, verás que o seu aspecto é bom, convidativo à esperança num bom sucesso também do nosso lado.

Vê lá se procuras ocupar o teu tempo de maneira a não pensares muito na nossa situação. Leva a coisa como o acontecimento mais natural do mundo. Ocupa-te na leitura, no passeio, em qualquer actividade que te distraia. Não quero que a minha menina se enfie num canto a limpar as lágrimas e a transformar esta nossa separação num coro de lamentações.

Estas nada valem. E verás os dias passarem, as semanas correrem e, quando menos dermos por isso, estará esta minha comissão no fim. 

Espero ir-te mandando umas fotografias frequentemente para que talvez sintas a minha presença mais real. Estou bem como poderás ir verificando.

O tempo não é muito. Tenho de partir. Na próxima carta espero dar-te informações mais precisas sobre a minha localização. Agora não posso. 
(…). 

Apaixonadamente, sou o teu M. 
(…) 

Foto 1. Mansoa, 23/10/1965, a CCaç 1419 a caminho de Bissorã: uma breve paragem. 
Em primeiro plano, o fur. milº Manuel Joaquim. 
© Manuel Joaquim 


Bissorã, 31/Out./65 
(… … …) 
(…) como te prometi na última carta, eis-me a dar-te algumas impressões sobre a minha nova localização. A localidade onde estou aquartelado chama-se Bissorã. É uma vilazinha razoável. O mal é estar cercada pelos revoltosos. Situada no meio da selva está, como é lógico, cercada pelos “turras” (como se lhes chama cá) já que a selva é o refúgio deles. Na vila está-se razoavelmente [bem]. O pior é quando se sai. Cheguei cá no dia 23 e já apanhei um grande aperto (*). Para te estar aqui a escrever, tenho de me considerar um indivíduo de sorte. O pior é se ela me não acompanha até ao fim. 

Foto 2. Bissorã, vista aérea do centro da vila
Foto do cap. Carlos Oliveira, retirada com a devida vénia do “website” de Carlos Fortunato, leoesnegros.com.sapo.pt/

Outra coisa que me aconteceu, não perigosa mas bastante aborrecida: À vinda para aqui desapareceu-me aquele meu saco azul-escuro. Com ele foi a carteira com todo o recheio: dinheiro, todas as fotografias, as tuas e as minhas, inclusive uma colecção que cá tinha tirado e que tinha intenções de te ir enviando (já tinha começado), bilhete de identidade, o isqueiro que me ofereceste, roupas, livros, caneta, selos, cartas (por acaso nenhuma tua) e mais uma série de artigos de uso pessoal. Nunca mais o vi e quem sabe lá por onde ele já andará. Apesar de tudo, se os meus azares fossem tão grandes como este, oh felicidade, seria um indivíduo cheio de sorte. 

[No dia 23/10/1965, as condições de passagem do rio Braia não permitiam a passagem de viaturas pelo que se teve de fazer a transferência de carga entre elas, do lado de Mansoa para o de Bissorã e vice-versa. Destacado para fazer segurança ao acto desleixei os meus pertences. “Aquele saco azul” foi um chamariz para um fdp qualquer e o seu roubo causou-me alguns problemas, quer emotivos quer funcionais.]

Foto 3. “O local do crime”: estrada Mansoa-Bissorã, “ponte” de Braia, com o tabuleiro reconstruído em 1966. Ao fundo da foto, nota-se a torre de um fortim. 
 © Henrique Cabral: “Rumo a Fulacunda CC1420 Guiné 65/67” 

Foto 4. Fortim de Braia: construído para defesa da ponte

A situação é péssima. A morte é a nossa parceira do lado. É incrível como às vezes se consegue escapar (*). Tão inverosímil que chegamos a mirarmo-nos, a apalparmo-nos, pois não acreditamos na nossa incolumidade. A sensação que nos envolve ao estarmos num lugar, mudarmo-nos e passados segundos rebentar uma granada no sítio onde estávamos anteriormente, não se pode exprimir. Vermos as balas a furar o terreno junto a nós, fazendo saltar a terra para os olhos e não haver uma que nos acerte faz-nos parecer estar a sonhar. Mas não sonhamos porque de vez em quando lá caem alguns. 
Ficaríamos malucos se não sentíssemos uma acentuada indiferença pelo perigo e uma grande esperança em cada um de nós ser do número dos felizardos, dos que conseguem sair daqui inteirinhos. 
(… … …)

(…). Beijo-te. Com todo o meu amor por ti, minha querida, saudades do M. 

(*) [São referências à primeira operação feita, em Bissorã, pela CCaç.1419, três dias depois da sua chegada. Foi apoiada por um grupo de combate dos “velhinhos” (CArt. 643) de que fazia parte um membro ilustre desta Tabanca Grande, o Rogério Cardoso. Foi nesta acção que ele ficou gravemente ferido, atingido por uma granada de RPG que, milagrosamente, não explodiu mas causou-lhe uma grave fractura exposta do fémur esquerdo.]


Lisboa, 1-Nov. 1965

Foto 5. Fur. mil.º Manuel Joaquim: no centro de Mansoa, a caminho de Bissorã (23/10/65). 
© Manuel Joaquim 

Meu M. (…) adorei (…) esta fotografia que não me canso de admirar. És mesmo tu. É o meu M.! Oh querido, não calculas como fiquei contente. Agradeço-te a lembrança pelo prazer que me dá poder olhar-te e sentir, vamos lá, a tua presença mais real, poder fixar-te com a ternura, o Amor que te dedico. Muito e muito obrigada, queridito. (…). Pareces-me com muito bom aspecto pelo que pude avaliar pela foto. 

(…). Não sei se já recebeste a carta que te enviei 3ª feira mas é provável que isso não tenha acontecido porque já não te encontravas em Bissau. Desta vez recebi duas cartas com intervalo de dois dias apenas. Já começava a ficar atrapalhada. Também não é preciso muito para te atrapalhares, dirás tu. Em parte assim é. (…). 
Só a angustiante situação que nos obrigam a suportar me leva a este comportamento, a agir como se já não acreditasse em ti. Não foi isto que pensaste? Que eu não confio em ti, não acredito nas tuas promessas, em tudo o que me dizes? 
Isso já aconteceu. Agora estou muito acima, sou superior a tudo isso. A autoconfiança que já adquiri solucionou o meu problema, já não admito a hipótese, não penso sequer na possibilidade dum afastamento, no afrouxamento dos teus sentimentos e das nossas relações. Esta ideia parece-me mesmo descabida, como se fosse já impossível a separação entre nós. Mas o certo é que isso me dá uma certa comodidade, uma certa tranquilidade até. 
Só o perigo a que diariamente estás exposto me gera algumas preocupações. Só estarei completamente tranquila, calma, enfim a D. em cheio, quando o teu regresso definitivo for transformado em realidade, quando te vir pisar o solo de Lisboa, (…). 
(… … …) 
Olha querido, enviei-te por um sargento que aí chegou no último contingente a bordo do “Niassa”, uma pequena lembrança. Com certeza ainda a não recebeste. Eu disse-lhe que te encontravas em Bissau mas a verdade, pelo que me disseste nas últimas notícias, quando aí chegou já tu tinhas partido. Não sei se será possível descobrir onde te encontras e enviar para a tua nova morada ou então deverá devolvê-la. 
(… … …) 
Para ti vão as minhas carícias, os meus beijos e abraços, todo o meu Amor por ti. Adoro-te, meu querido. (…). 


Bissorã, 9-Nov. -65 
Recebi ontem a tua carta escrita aí em 1/Nov. Por aqui vês o tempo que a correspondência demora. Escrevi-te uma carta um pouco rígida mas, perante esta tua última carta, estou convencido de que ainda devia ter sido mais acutilante. Porquê? Precisamente porque achei uma diferença nítida entre as duas cartas. Recebes correspondência … escreves cartas razoáveis. Não recebes correspondência, atiras-te com frases disparatadas. Achas bem? Vamos lá a ver se daqui para o futuro nos entendemos. 
(… … …) 
Minha querida, tem paciência. A minha vida aqui não está muito segura mas não percamos a esperança. Um azar tanto acontece aqui como em qualquer outro lado. E eu hei-de regressar. Hei-de voltar. Quanto à encomenda que dizes ter-me mandado, ainda não apareceu. Deste o meu SPM ao tal sargento? Este como se chama e qual é o seu SPM? 
Desculpa escrever-te só este simples aerograma mas estou muito e muito cansado. Cheguei há pouco de uma “operaçãozinha” que me arrasou os nervos e o físico. Isto, com uma boa soneca, passa depressa. 
Apaixonadamente, os beijos e abraços do teu M. 
Saudades
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (8): A falta de notícias na retaguarda

Guiné 63/74 - P11246: E as nossas palmas vão para... (6): Patrício Ribeiro, talvez o português que melhor conhece a Guiné profunda... e que está a fazer lá o milagre da energia solar...



Blogue Novas da Guiné-Bissau > 11 de março de 2013 > Água e eletricidade chegam a aldeias isoladas na Guiné-Bissau (reproduzindo uma peça da Agência Lusa, emitida de Bissau, 10/3/2013, fonte aliás que lamentavelmente não vem citada, como devia, e conforme mandam as boas regras )... 

Este blogue, de "informação, sem fins lucrativos e apartidário" (sic), é mantido por alguém, do sexo masculino,  que vive em Lisboa, é autor também do blogue Braga por um canudo, mas que não dá a cara (o que é pena)... É presumivelmente um antigo combatente da guerra colonial, um antigo cooperante ou  mais provavelmente um guineense da diáspora (a avaliar pelos seus seguidores, cerca de 360)... O blogue Novas da Guiné-Bissau tem um milhão de visualizações de páginas, desde 2009, ano em que foi criado...




Guiné > Bijagós > Ilha de Imbone > Orango > Casa da rádio de comunicação > Postal de boas festas, 2012, da empresa do Patrícío Ribeiro, Impar Lda, líder em instalações fotovoltaicas... "Gente isolada pelo mundo, que nós tentamos aproximar"... Foto: Cortesia de Patrício Ribeiro.


1. Mensagem, com data de ontem,  do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro [, português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bssau desde 1984, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.]

Assunto Novas da Guiné ... e os problemas das minhas costas, por tantas picadas..."São tabancas (pequenas aldeias) como as de Culcunhe ou Unfarim, como Sansabato ou Maque, perto de Bissorã, região de Oio, que estão a beneficiar de um projeto concebido pela organização não governamental ADPP (Ajuda ao Desenvolvimento do Povo para Povo), financiado pela União Europeia e concretizado pela Impar, uma empresa da área da energia." [...]

Vd. o resto aqui, no blogue Novas da Guiné-Bissau
 (ou mais abaixo), 


Patricio Ribeiro

IMPAR Lda

Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau ,

Tel / Fax 00 245 3214385, 6623168, 7202645, Guiné Bissau

Tel / Fax 00 351 218966014 Lisboa

www.imparbissau.com

impar_bissau@hotmail.com


2. Atualizo o que em tempos escrevi sobre o Patrício Ribeiro, rapaz hoje com os seus 65 anos, e que merece as nossas palmas, não só como empresário mas como antigo fuzileiro, homem, português, diplomata económico, cidadão do mundo, pai dos tugas, protetor dos jovens cooperantes, amigo do seu amigo, nosso grã-tabanqueiro e sobretudo grande amigo da Guiné e do seu povo...

Africanista, apanhado do clima ?... Hesitei em chamar-lhe 'africanista'... O termo está conotado com o passado da expansão colonial: o homem, o especialista que 'explora' ou 'estuda' África... Um explorador como Serpa Pinto, mas também um antropólogo, um etnólogo, um especialista em 'estudos africanos' (por exemplo, como o Eduardo Costa Dias, do ISCTE, meu amigo, amigo da Guiné-Bissau, igualmente nosso grã-tabanqueiro...).

Por outro lado, o termo também está conotado com nacionlismo panafricano... Amílcar Cabral e Nelson Mandela, por exemplo, são vistos muitas vezes como 'africanistas', 'panafricanistas', homens que têm ou tinham uma certa ideia de África, pós-colonial, continental, independente, desenvolvida, solidária, plurirracial...

Em contrapartida, 'apanhado do clima' é uma expressão, divertida mas ambígua, do nosso calão de caserna, do tempo da guerra colonial (1963/74)... A ironia é óbvia: O Patrício tem uma larga vivência de África, nasceu em Portugal (, é beirão liitoral, de Águeda) mas foi cedo, com a família, para o Huambo, Angola... E lá casou, com uma portuguesa do Huambo... Tem muitíssimos mais anos de África do que de Portugal: regressou  em finais de 1975 ao Puto, mesmo em cima da declaração da independência de Angola, pelo MPLA, veio  como 'retornado' (um termo que felizmente se ouvia cada vez menos, mas que foi reavivado com a série televisiva 'E Depois do Adeus'...), para, passados menos de 10 anos, em 1984, ter voltado a África, neste caso á Guiné, por razões aparentemente profissionais... (Não acredito no 'apelo misterioso' da África profunda, ou existe mesmo ?...).

E lá está ele, há mais de um quarto de século, não se imaginando já capaz de viver e trabalhar noutro sítio do planeta... mas sobrevivendo a tudo o que mata na Guiné e em África, em geral (a sida, o paludismo, a cólera, as infecções nosocomiais, as canoas inhomincas, as armas, o tráfico de droga, a violência, a droga de vida, os golpes de Estado, a ausência de Estado, as picadas mal alcatroadas, o tempo seco, o tempo das chuvas...).

É certo que o Puto não está longe, e sabe (ou sabia) bem ter uma retaguarda segura, à entrada da velha Europa... Apesar de tudo, Portugal é um país milenar, consistente, amigável, maneirinho, ao alcance da mão e... fiável. (Ou era ?)... Ele, Patrício, vem cá de vez em quando 'carregar baterias', revisitar família e amigos, fazer as suas análises de saúde... É bom ter uma retaguarda segura, é bom ter uma Pátria, ou duas ou três... Tiro-lhe o chapéu pela sua longevidade na Guiné, e para mais num período que foi conturbado e amargo...

Espero que ele um dia ainda nos possa contar como, em 1998, ajudou a salvar não sei quantos portugueses e guineenses, apanhados pela guerra civil que se travou à volta do poilão de Bandim... Mas o mais importante é o trabalho que ele faz hoje, como empresário, levando água, luz, calor, comunicação e sobretudo amizade e esperança a muitos guineenses do interior que vivem isolados do mundo... Um Alfa Bravo, camarada!.. Grande abraço, do tamanho da distância de Lisboa a Bissau. E cuida-me dessas costas!... Que Deus, Alá e os bons irãs te protejam sempre!...LG


3. Reprodução com a devida vénia da reportagem da Lusa, de 20/3/2012 (que foi divulgada em diversos órgãos de comunicação portugueses, como por exemplo RTP ou a Visão):

A 120 quilómetros de Bissau, em aldeias quase inacessíveis, decorre uma revolução silenciosa que está a mudar a vida de 15 mil pessoas. Energia solar leva luz a quem nunca teve, leva água perto a quem a tinha longe. 

São tabancas (pequenas aldeias) como as de Culcunhe ou Unfarim, como Sansabato ou Maque, perto de Bissorã, região de Oio, que estão a beneficiar de um projeto concebido pela organização não governamental ADPP (Ajuda ao Desenvolvimento do Povo para Povo), financiado pela União Europeia e concretizado pela Impar, uma empresa da área da energia.

Uma união de esforços que começou em novembro passado e que em quatro anos vai dar qualidade de vida a 24 aldeias de Oio, iluminando pouco a pouco escolas, centros de saúde e centros comunitários, e trazendo água para consumo e para rega através de furos, bombas e torres com depósitos.

É um pequeno painel solar a mudar a vida de pessoas como nenhuma mudança política em Bissau mudará, dando luz para aulas noturnas, para partos à noite, para bombear água, para ver televisão ou carregar telemóveis (para muitos o principal benefício). É por isso que na tabanca de Sansabato o imã Quimo Safé não se cansa de agradecer. "Ficamos contentes com a vossa presença, os mais velhos viram o que vocês trouxeram e não temos palavras para agradecer". Fala para a ADPP, fala para a Impar. "Os homens e as mulheres da tabanca vão sempre recebê-los de braços abertos. Os homens da tabanca não tinham forças para fazer este furo. Se vissem onde as nossas mulheres iam buscar água antes iam ter pena", diz o imã ao lado da torre de água no centro da aldeia onde já só falta montar os painéis solares que vão servir a bomba.

A mesquita já lá tem um e o benefício é visível mas também audível. "Antes gritávamos e ninguém ouvia, agora com o microfone as pessoas já podem ouvir as rezas". E à entrada da aldeia, junto da escola, Braima Camará, responsável de tabanca, diz que o painel permite ter aulas à noite e acabar com o analfabetismo. Todas as noites 20 mulheres e 10 homens têm aulas, das 20:00 às 23:00. "Estamos muito contentes porque antigamente não tínhamos luz mas neste momento a tabanca está feliz, toda a área, a mesquita, o centro de saúde, a escola, todos têm luz", diz Baima Camará.
A distância entre tabancas não é grande mas demora-se horas a percorrê-la, por caminhos que na época das chuvas são ribeiros, quando o isolamento é maior. Ao lado de Sansabato, na aldeia de Maqué a ADPP (na Guiné-Bissau há 30 anos) e a Impar estão a montar bombas para tirar água e fazer um sistema de rega gota a gota, tudo no âmbito do mesmo projeto, chamado "Clube de Agricultores".

Félix Fresnadillo, responsável pela área de energia solar e água da ADPP, explica à Lusa, no meio da horta, que o projeto compreende a eletrificação de 11 escolas, nove mesquitas e sete centros de saúde, além de 48 fontes com bombas alimentas a energia solar, 24 de água para consumo e outras tantas de água para rega. Paralelamente é ensinado aos agricultores novas técnicas de cultivo e a melhor forma de aproveitar a água. E a ADPP, diz Félix, vai também fazer sete centros de produção, para que alguns alimentos sejam processados (descasque de arroz, óleo de palma e de amendoim) e comercializados.

E Félix lembra ainda outra valência do projeto: "nos centros comunitários, local de encontro para jovens e para reuniões, vamos pôr televisões grandes, para que as pessoas possam ver o que se está a passar no mundo". 

É um novo mundo "servido" por Patrício Ribeiro, um português diretor da Impar que há 25 anos instala painéis fotovoltaicos na Guiné-Bissau, mais de 600 instalações até hoje, em aldeias perdidas no país na maior parte dos casos. Deverá ser quem melhor conhece o interior da Guiné-Bissau, arquipélago dos Bijagós incluído.

Em Cawal, junto de uma escola onde o professor Ângelo Gomes agora dá aulas noturnas a 45 alunos, Patrício Ribeiro frisa à Lusa que nas tabancas não havia nenhuma energia e que agora têm lâmpadas que ficam acesas toda a noite e que as mulheres e meninas podem aprender a ler (porque de dia têm de trabalhar). O pequeno painel não precisa de manutenção e permite três horas de aulas por dia. No caso de Cawal está previsto também montar uma televisão com leitor de CD para cursos de alfabetização, explica.

Boné na cabeça e muitos papeis nas mãos, Patrício Ribeiro percorre tabanca a tabanca por caminhos inexistentes, mede terrenos, dá indicações. "Procuramos sempre comprar materiais fabricados na União Europeia e os fabricantes dão 20 anos de garantia", diz. "A Impar já deu luz a muitos milhares de pessoas, estamos em mais de 100 centros de saúde e hospitais, em sítios onde ninguém chega a não ser as populações", garante.
Nas tabancas de Oio, entre Bissorã e Mansabá, é ele, com Félix Fresnadillo, a face visível de uma revolução que só não é mais silenciosa porque dá luz aos microfones das mesquitas. Quimo Safé reza por eles todos os dias.
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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11176: E as Nossas Palmas Vão Para... (5): Daniel Rodrigues, 25 anos, português, fotojornalista, que ganhou o "óscar" da melhor fotografia, na categoria "Vida Quotidiana", do concurso de 2013 da "Word Press Photo", com um belíssima foto de uma jogatana de futebol entre miúdos de Dulombi, março de 2012 (Luís Dias)


terça-feira, 12 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11245: Convívios (500): Reportagem da reunião da magnífica Tabanca da Linha levado a efeito no passado dia 7 de Março (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 7 de Março de 2013, a propósito do último convívio da magnífica Tabanca da Linha: 


A magnífica Tabanca da Linha

Chovia. E nos intervalos da chuva foram chegando os confraternizantes. A Adega Camponesa está quase elevada à categoria de sede social dos Magníficos veteranos da Guiné, e tem constituído um bom local para os encontros. Pecaminosamente, continua a servir quantidades excessivas, que a capacidade mastigante não tem conseguido consumir na totalidade.

O pessoal entrava e acumulava-se no início da sala em manifestações de quem matava saudades. Aprimorava-se o ambiente. Já se sabia de duas faltas inevitáveis, pois o Briote e a esposa ficaram impedidos por motivo de doença de um familiar; o Miguel e a Giselda também ficaram impedidos, porque a Giselda fez hoje uma cirurgia; o Canhão também teve um problema de saúde; o Tirano também teve um inoportuno impedimento, idem relativamente ao Encarnação e ao Marcelino da Mata. Também o Senhor 2.º Comandante Rogério me deu conta com antecedência, de uma maleita que o apoquenta, e também me apoquenta por saber que se debate porfiadamente, desejando-lhe força anímica para a vencer. Em contrapartida, e sem aviso prévio, tal como do antecedente, compareceu essa legenda sínica que dá pelo diminutivo de Aga. O Senhor Comandante Rosales sorria perante a boa disposição geral, e abeirando-se do amanuense, quis saber se já estavam todos. Ainda não, que havia um ou outro perdidos um pouco antes de Badajoz. Entretanto, o senhor Marcos reclamava para que o pessoal abancasse, pois tinha que entrar em estágio para o jogo da UEFA.

Naquele entretém, já se debatia com inspirada animação, a proposta do Resende para criarmos um blogue catalizador das grandes preocupações e realizações do Senhor Comandante Rosales, bem como a distribuição da restante hierarquia (editor principal e redactor chefe), cargos aparentemente destinados ao Resende e ao Pires, respectivamente, embora não houvesse dificuldade para escolher entre os que se colocavam em bicos de pés. Haverá ainda uma esperada competição para preencher o lugar de fotógrafo-chefe, ou principal, pois tanto o Miguel, como o Humberto ou o Jorge Canhão, sendo elementos experientes e de créditos firmados, devem sempre contar com a concorrência, e hoje conseguimos lobrigar o Senhor 2.º Comandante Mário Fitas a arriscar uns ângulos e outros tantos espontâneos.

Ainda antes de me sentar à mesa tive que fazer um imenso esforço para não punir o setubalense Valério com dois ou três pontapés no cu, em virtude das queixinhas impertinentes que dirigia à minha psicóloga. Levou um, já um bocadinho à traição, mas num instante magnífico e revelador da minha boa forma. Entretanto, chegava o Domingos, que eu tinha despertado do limbo do esquecimento. A Teresa e a Gina tomaram lugar a meio da mesa, quais rainhas veneradas. E o resto da malta foi-se instalando num organizado cerco aos aperitivos e às entradas. O Senhor Comandante sorriu-me enquanto se sentava junto a mim, com o aviso de estar atento aos meus deslizes, o que constituiu um forte argumento persuasivo.

Genuínos senadores, os tertulianos organizaram-se em grupinhos de proximidade, que discutiram diferentes matérias de inegável interesse comum e, também, talvez para o País. O Marques, o Caetano, o sínico, o João Parreira, o Senhor 2.º Comandante, que ocupava uma extremidade usualmente destinada ao pagador, o Carlos Filipe, o Zeca Caetano, o Valério, o António Silva, o Moreira, as senhoras, o amanuense, o Senhor Comandante, que o espiava e controlava, o Pires, e o Carioca que se opunha geograficamente ao Fitas, o Horta, o Domingos, o Manuel Joaquim, o Carlos Silva, o Marques, o Resende e o Palma.

Desta vez, em vis-à-vis calhou-me o Manuel Joaquim, esse grande autor de epístolas e outros géneros da prosa, que concitou o interesse dos mais próximos, pela riqueza descritiva de algumas estórias guineenses, e pela verve descritiva com que as descrevia. Há ali um verdadeiro manancial para encher páginas do blogue. E a propósito, quero destacar uma importante ausência, que, apesar dos anúncios e convites atempados, não deu qualquer satisfação para não comparecer, e privou-nos do ronco de com ele confraternizarmos. Refiro-me ao Luís Graça, que eu sei estava engripado no sábado da manifestação, mas desejo que já se tenha recomposto e alimente com satisfação.

O tempo corria inexoravelmente, pelo que a malta, a dada altura dos acontecimentos, começou a apresentar despedidas, e cada um foi entregar os 15 aéreos da ordem, excepto eu que, tó-tó, paguei a dobrar. Mas ri-me e conversei animadamente, preenchi os espaços estomacais, e levei uns porradões amigos. Que mais se pode pretender em tempos de crise (passado, presente e futuro) e austeridade gaspariana?

Até à próxima tentativa de reportagem.
JMMD

 Em primeiro plano Manuel Joaquim, co-autor das belíssimas "cartas de armor e guerra", A seguir Domingos e mais afastado o Horta.

Duas simpáticas senhoras nesta foto: a Gina (à esquerda), esposa do camarada Fernando Marques e a "psicóloga" do JD 

 Carlos Silva, António Fernando Marques e Luís Moreira

O autor destas fotos, Manuel Resende

Nesta foto: António Graça de Abreu, Carlos Lisboa, João Parreira e Mário Fitas

De pé: Zeca Caetano e o Comandante Jorge Rosales. Sentado, para não tapar as vistas, Hélder Sousa

(Fotos de Manuel Resende)
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Notas do editar:

Vd. poste de 22 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11136: Convívios (493): A magnífica Tabanca da Linha vai reunir no próximo dia 7 de Março em Alcabideche (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11233: Convívios (499): 5º Encontro de Gerações de Lanceiros Policia Militar/Policia do Exército, Portalegre – 20 de Abril de 2013 (Nuno Esteves )

Guiné 63/74 - P11244: Blogpoesia (328): Dos meus poemas de juventude (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso irmão guineense Cherno Baldé, com data de 8 de Março de 2013: 

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Com os mais respeitosos cumprimentos a todos os Editores e Grã-Tabanqueiros da nossa bela e hospitaleira Tabanca Grande, envio algum material tirado do baú do meu tempo de estudante que pomposamente intitulei de poemas de juventude.
Claro que não custa muito adivinhar d´onde vem a inspiração.
Cherno Baldé


DOS POEMAS DE JUVENTUDE DE CHERNO BALDÉ:








Vd. último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11215: Blogpoesia (327): In Memoriam: A professora de Samba Culo, morta em 7/7/1967, de Kalash na mão (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P11243: Do Ninho D'Águia até África (57): Andava desesperado (Tony Borié)





1. Quinquagésimo sétimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 57


Aos vinte e três meses de estadia no aquartelamento em Mansoa, o Cifra andava num desespero quase fora de controle, continuava a fazer as suas tarefas militares, mas o seu tempo livre era passado em actividades que lhe fizessem esquecer um pouco o local onde se encontrava.

O seu grupo de amigos estava nas mesmas condições, andava revoltado, pouco se comia, bebia-se muito, fumavam-se cigarros feitos à mão e  falava-se pouco. Quando falavam, as palavras saíam da boca mal pronunciadas e com alguma agressividade, parecendo mais que discutiam, não tinham cuidado com a sua higiene pessoal, tinham todos um aspecto de militares quase abandonados, o rádio portátil era um seus melhores companheiros, mas também motivo de algumas zangas, pois alguns queriam sossego e outros só para contrariarem colocavam a música, ou notícias, o mais alto possível, aumentando a poluição sonora, já deveras alta no dormitório, estava a ser difícil viver em comunidade, estavam fartos de se verem uns aos outros.

Agora o procedimento era ao contrário, antes, quando os militares de acção, chegavam das patrulhas e operações, o Cifra perguntava como tinha corrido, agora, quando o Cifra entra no dormitório, logo lhe perguntam se tinha recebido alguma mensagem, ou se sabia quando embarcariam de regresso, até já havia boatos de que o Cifra “tinha dito”, ou os radiotelegrafistas diziam que tinham recebido uma mensagem do comando da capital da província, que era enviada ao comando do Agrupamento, com informação a todas as unidades que tinham quase dois anos de estadia e estavam estacionadas na zona do Oio, portanto o Cifra sabia, mas era um “traidor”, pois não dizia nada.


A mais pequena notícia de que “tinham ouvido”, ou o “furriel falou”, ou o Cifra estava sobre influência e disse “isto” ao Trinta e Seis, era logo alterada e já sabiam a data e tudo, alguns corriam logo direitos à zona da sua cama e começavam logo a fazer e refazer os embrulhos, sacos e malas, tudo na ânsia de saírem dali, alguns colocavam-se na posição de joelhos, com as mãos juntas viradas para cima, e numa linguagem que mais parecia um choro, com uma cara transfigurada, mostrando alguma angústia, cantavam:

Avé, Avé, Avé Maria!,
Vou sair daqui,
E Deus me alumia,
Está quase a chegar
O bendito dia,
Vai tudo correr,
Tal como eu queria,
Obrigado Mãe,
Minha Virgem Maria!.

Depois, como não era verdade, voltavam à nostalgia, ao desânimo e atiravam mesmo com os embrulhos, sacos e malas para o chão, dizendo mal dos comandantes, dos tiros, das granadas, das bolanhas, dos calções rotos, do café, do arroz com peixe da bolanha, do calor, do governo que os mandou para ali e gritavam alto:
- Isto é um inferno! Quero ir embora daqui! Filhos da puta!

O Cifra começava a evitar ir para a tabanca, onde tinha algum carinho, pois já sofria a ausência das pessoas, que embora vivendo numa profunda miséria, tinham alegria, tinham muito bons sentimentos, eram sinceras e talvez derivado ao ambiente natural onde viviam, eram puras, e como o Cifra já disse por diversas vezes, eram um pouco parecidas com gazelas, pois só depois de verem os sentimentos de outra pessoa estranha, cheirarem o seu corpo e sentirem o sabor da pele, é que se dedicavam, mas quando isso acontecia, não mais largavam essa pessoa, pois já a consideravam parte da sua família.

O Cifra sofria, andava desesperado, andava confundido, não sabia se estava contente por regressar a Portugal ou triste por abandonar as pessoas que já considerava família.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11221: Do Ninho D'Águia até África (56): ...tudo parecia redondo (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11242: A geografia da guerra ou o nosso calvário, de A a Z (1): Rui Santos, Henrique Cerqueira, João Rebola



Portugal > Terras do Demo > Sernancelhe > Santuário da Lapa > 28/12/2011 > Cruzes do calvário...



Portugal > Terras do Demo > Sernancelhe > Santuário da Lapa > 28/12/2011 > Grafitos de antigos combatentes da Guiné nas paredes do WC... Onde começa e acaba o calvário dos homens que foram a guerra ? 17 foram os naturais de Sernancelhe  que morreram na guerra do ultramar/guerra colonial, seis dos quais no TO da Guiné... Onde terão morrido mais exatamente ?

Fotos: © Luís Graça (2011). Todo os direitos reservados .

1. Amigos e camaradas da Tabanca Grande:

Ao fim de 9 anos a blogar (mais de 11200 postes, 608 membros da Tabanca Grande, 40 mil comentários...) há lugares (ou topónimos) que ainda não constam da nossa lista, na coluna do lado esquerdo do blogue, como "marcadores"... Por exemplo, Capó, na estrada Bachilé-Cacheu, onde morreram 3 camaradas açorianos,  da CCAÇ 2444, em 6 de fevereiro de 1969 (, acabando por serem, confundidos com os desaparecidos no Rio Corunal, em, Cheche, por lapso nosso, já entretanto corrigido)... Capó só há dias entrou para a lista... E o mesmo se passa com Bacar Dado, na estrada Mampatá-Aldeia Formosa... Quem já tinha ouvido falar em Bacar Dado ?

Muitos  outros topónimos com "marcas de guerar", não constam da lista dos nossos  "marcadores"... Ou ainda não foram falados (o que é difícil...) ou foram evocados, "au vol d'oiseau" e esquecidos...

Fazemos  um apelo: Vamos atualizar essa longa lista do nosso calvário  guineense... O calvário de Jesus Cristo teve 14 estações. O nosso não terá tido menos...

Fazemos apelo à vossa memória, consultem as cartas dos subsetores por onde passaram, releiam os vossos apontamentos, enfim, completem a lista, de A a Z,  das nossas 14 estações do calvário... Queremos ter, no nosso blogue, a geografia, mais competa possível, da guerra... Todos os sítios onde penámos, matámos, morremos, ferimos, fomos feridos, sofremos emboscadas, ataques, flagelações... mas também onde apanhámos insolações, ficámos desidratados, fugimos em pânico das abelhas ou das formigas bababagas, enfim, onde dormimos agarrados à G3, ou por onde passámos, em trilhos ou em colunas logísticas, sempre com o credo na boca, com medo das minas A/P; das minas A/C, dos fornilhos, das embocadas.. A geogradia da guerra deve incluir não só as nossas guarnições militares, mas os rios e braços de mar onde houve combates, as bases do IN bombardeadas pela FAP, etc.

A ideia era, para já, publicar (ou ir publicando) a lista de todos esses lugares... Se possível antes do nosso 9º aniversário, que é a 23 de abril de 2013... Um abração. Luís Graça

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Afiá (Corubal)
Afiá (Quebo)
Aldeia Formosa
Amedalai (Xime)
....
Xitole
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2. Publicamos, entretanto, os primeiros contributos que nos chegaram: Rui Santos, Henrique Cerqueira e João Rebola.


Rui Santos (ex-Alf Mil da 4.ª CCAÇ, Bedanda, 1963/65),

9/3/2013

Com possíveis erros de memória, na zona de Catió:


(i) Ganjola (na margem norte do mesmo rio, teve um destacamento,em 1970 já estava abandonado);

(i) Cabedu (chegava-se lá pelo rio Cumbijã, no extremo sul do Cantanhez, teve um destacamento creio que até ao fim da guerra);

(ii) Cufar (uma companhia);

Outros lugares menores na zona de Catió:


(iv) Ilhéu de Infanda (onde mantinhamos uma pequena guarnição, era o "porto" para acesso pelo Cumbijã a Bedanda e Cufar ao norte e Cabedú ao sul) [vd.carta de Bedanda]


(v) Mato Farroba (idem) [dd.carta de Bedanda; não exista na nossa lista]

Na carta militar de Cacine publicada, aparecem quase na margem Cabedú e Ilhéu de Infanda.

Um abraço,
Rui Santos



Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) (Escala de1/50 mil) > Posição relativa de Ilhéu de Infande, Mato Farroba e Cufar.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Henrique Cerqueira (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)

O meu BCAÇ 4610/72 esteve com companhias em lugares a assinalar:

(i) Encheia: 1ª Companhia (foi atingido na cabeça Fur.mil Maia, antigo jogador do Académica de Coimbra, felizmente sobreviveu. O comandante da companhia Capitão mil. morreu de acidente, próximo de Nhacra não me lembro do seu nome nem o nome da Companhia);

(ii) Bissum:  2ª Companhia, Os  Terriveis, a do nosso camarada Manuel Maia, bloguista e poeta da nossa tabanca;

(iii) Biambe:  3ª Companhia (Tá no Papo):  era a minha companhia até eu ir para Bissorã;


(iv) Inquida, destacamento da companhia do Biambe (Comandada pelo Alf Coelho, que saudade deste meu camarada, era de Lisboa); [não constava da nossa lista, vd. carta de Mansoa]

(v) Olossato: Companhia independente sobre o comando da CCS/BCAÇ 4610/72;

Já agora eu não me lembro ao certo dos nomes dos furrieis que morreram de acidente quando iam ás compras a Bissau,  dias antes do embarque para Lisboa. Se não estou errado eram da 2ª companhia.
Resumindo: Biambe, Bissum, Encheia, Inquida, Olossato
.
Por agora é tudo um abraço e bom fim de semana. Henrique Cerqueira

João Manuel Pereira Rebola (ex-Fur Mil da açoriana CCAÇ 2444, Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70)

9/3/2013


Olá,  Luís Graça, boa noite. Acho muito interessante a tua ideia, pois recordar esses topónimos, reaviva o subconsciente e até poderá mexer - quem sabe - com o inconsciente. Penso que os membros da Tabanca Grande irão responder ao teu desafio. E por que não começar já?!


Assim, entre o Cacheu e o Bachile, além de Capó, há os Madeiros [, Mata dos Madeiros], local de emboscadas constantes. Aí, ficou uma Daimler durante vários anos, pois o receio de ter sido posteriormente minada, afastou a possibilidade de recuperação. Dizia-se, se verdade ou não, que o condutor, terminada a emboscada, estava de tal modo agarrado ao volante, que  houve muita dificuldade em retirá-lo..!! [Não consigo localizar o Mato dos Madeiros, topónimo que passamos a registar. LG]

Muito perto do Bachile, um nome tenebroso - Cobiana e não Caboiana, como se dizia. Entre o Bachile e Canchungo, havia um posto de vigia junto à antiga Ponte Alferes Nunes, controlado durante o dia por uma secção e à noite esta era reforçada.

Luís, além de nomes, não sei se as fotos que te envio, que datam de Abril 2011, aquando do meu regresso à Guiné, têm interesse. Tenho mais nomes em mente na área de Bissorã, Biambe, etc. Gostaria que me dissesses se devo ou não continuar.

Um abraço, João Rebola

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MAPAS DA ANTIGA PROVÍNCIA PORTUGUESA DA GUINÉ (NÃO INCLUI BIJAGÓS) (ESCALA: 1/50.000)

Aldeia Formosa (Quebo) / Xitole
Bafatá (1955)
Bambadinca (1955)
Banjara (1956)
Bedanda (1956)
Beli (1959)
Bigene (1953)
Binta (1954)
Bissau (1949)
Bissorã / Mansoa (1954)
Bolama (1957)
Bula (1953)
Buruntuma (1957)
Cabuca (1959)
Cacheu / Sâo Domingos (1953)
Cacine (1960)
Cacoca (1954)
Caiar (Ilha de) (1959)
Canchungo / Teixeira Pinto (1953)
Canquelifá (1957)
Cansissé (1959)
Catió (1956)
Colina do Norte (1956)
Como (Ilha de) / Caiar (Ilha de) (1959)
Contabane (1959)
Contuboel (1956)
Duas Fontes (Bengacia) (1959)
Empada (1955)
Farim (1954)
Fulacunda (1955)
Gabu (Nova Lamego) (1957)
Gadamael / Cacoca (1954)
Galomaro / Duas Fontes (Bengacia) (1959)
Geba / Bambadinca (1955)
Guidaje (1953)
Guileje (1956)
Jumbembem (1954)
Jábia (1959)
Madina do Boé (1958)
Mambonco (1954)
Mansabá / Farim (1954)
Mansambo / Xime (1955)
Mansoa (1954)
Nova Lamego (Gabu) (1957)
Padada (1959)
Paunca (1957)
Pelundo (1953)
Piche (1957)
Pirada (1957)
Província da Guiné (1961) (Escala 1/500 mil)
Quinhamel (1952)
Saltinho / Contabane (1959)
Sedengal (1953)
Sonaco (1957)
Susana (1953)
São Domingos (1953)
São João (1955)
Teixeira Pinto (1953)
Tite (1955)
Varela (1953)
Xime (1955)
Xitole (1955)

Guiné 63/74 - P11241: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (3): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes V/VI): Mampatá, agosto/outubro de 1968




Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento... A unidade de quadrícula anterior terá sido a CCCAÇ 3326 (1971/73, Mampatá e Quinhamel) a que pertenceu o nosso camarada António Amaral Brum, há 36 anos emigrado no Canadá. Em 1968, no último trimestre, esteve aqui destacado o José Teixeira,

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados .




Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCAÇ 2381 (1968/70) > O José Teixeira junto ao obus  14, "apontado para a fronteira".

Foto: © José Teixeira (2005). Todo os direitos reservados .

  

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Farosadjuma > 2011 > > Hoje, um homem de causas...

Foto: © José Teixeira (2011). Todo os direitos reservados .

1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf José Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (*):


Mampatá, 12 de Agosto de 1968

Mais uma vez mudei de sítio. Agora pertenço ao Destacamento de Mampatá, para onde vim ontem de tarde com o meu pelotão. Cerca de 50 tabancas [, moranças,] e alguns abrigos para militares. As camas são colchões pneumáticos colocados no chão dos abrigos. A cozinha e a enfermaria são tipo estrela.

Não sei o tempo que estarei por aqui. Em princípio será por um mês e isto não me desagrada. Pelo menos estamos mais livres do fogo IN pois os abrigos são muito seguros.

Mampatá, 14 de Agosto de 1968

Hoje acordei ao som do morteiro e das costureirinhas. O IN atacou ao amanhecer. Estava a lavar-me quando ouço um rebentamento perto de mim. Dei um salto, entro no abrigo. Aguardei uns minutos e quando acalmou saí para preparar o Posto de Socorros. Felizmente não houve qualquer azar.

Segundo se apurou estavam emboscados no cruzamento à espera da viatura que ia a Aldeia Formosa e no momento de rebentar a emboscada faziam fogo sobre Mampatá para que não fôssemos em socorro dos colegas. Felizmente um africano localizou-os e ao verem-se descobertos atacaram a povoação sem provocar danos.

Mampatá, 19 de Agosto de 1968

Hoje pelas 20 horas, tivemos a segunda visita do IN a Mampatá. Acabava de chegar da Tabanca com o Rodrigues,  de Torres Novas,  quando ouvi a primeira saída. Em cerca de 10 minutos mandou-nos 106 granadas de canhão sem recuo, como confirmámos pelos invólucros que deixaram na mata ao pressentirem a nossa perseguição. Queimaram uma tabanca [, morança].

De Aldeia Formosa as NT mandaram algumas granadas de obus que assustaram o IN. Mampatá defendeu-se com os Morteiros 81 e 60 e com a Breda. Montei rapidamente o Posto de Socorros, mas não chegou a ser necessário.

Mampatá, 23 de Agosto de 1968

Mais uma etapa díficil para a CCAÇ 2381. Quem diria que, após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Chamarra e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.

É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo. Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se, as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.

O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no "outro ", vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora...

Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, manga de feridos e material apreendido.

Hoje escrevi para a Metrópole. As minhas últimas cartas não me agradam. Será que o meu amor está a diminuir ?... ou a ânsia de amar mais, me faz julgar que não consigo dar a entender quanto amo ?

Mampatá, 26 de Agosto de 1968

Estou preocupado. Seguiu hoje nova coluna para Buba e o Sector continua infestado de IN. Antes de ontem atacaram Aldeia Formosa, Gandembel e Nhala. Desta vez em Aldeia Formosa destruiram o morteiro 120. Nem os roncos dos Páras conseguem acalmar a situação, bem pelo contrário parecem enfurecidos.

Em Mampatá tudo está calmo. Os espíritos estão voltados para a estrada de Buba. Os ouvidos estão atentos a qualquer rebentamento... São camaradas que atravessam o perigo. Senti uma enorme alegria aquando do ataque a Chamarra: vi os meus camaradas correrem em socorro dos que estavam em perigo.

Ontem recebi uma carta de um amor em férias. Que bem me fez esta carta... Mostravas preocupação por estar magro, a mim parece-me o contrário, mas o mais importante foi o que escreveste "se precisares de alguma coisa diz, tua mãe ou eu mesmo te mando". Não preciso de nada a não ser voltar, no entanto não calculas quanto fiquei intimamente satisfeito e feliz com a tua atitude.

Parece incrível, desde manhã que há feridos na coluna para Buba, um dos quais sem um pé e só às 17 horas é que o Hélio fez a sua aparição para a evacuação. Não admira que haja mortos na Guiné. Vivem-se horas angustiantes na guerra.

Mampatá, 27 de Agosto de 1968

A coluna para Buba passou a noite em Nhala. De lá foi feita a evacuação do Alzira que ficou sem um pé numa A/P que pisou quando saltou da viatura ao cair debaixo de fogo, numa emboscada. Acabou a guerra para ele.

Manga de fogo durante o dia de ontem. A coluna de Buba foi atacada na bolanha, os páras estacionados em Gandembel andavam a patrulhar a zona e encontraram um caminho, seguiram-no e penetraram sem saber num acampamento IN, ainda desconhecido. Apanhados de surpresa , o IN reagiu. Mesmo assim sofreram 29 mortos. Os Páras tiveram dois feridos.

O IN atacou Aldeia Formosa, Gandembel (grande ataque), Guileje e Buba.

Mampatá, 31 de Agosto de 1968

Acabaram-se as colunas para Buba e Gandembel durante uns meses e ainda bem. Era um bom quebra cabeças, pois sempre que havia colunas havia emboscadas e minas A/P e A/C para nossa diversão.

Na última coluna a Gandembel foram detectadas 57 minas A/P [antipessoal] e alguns fornilhos num pequeno espaço. A coluna teve de regressar, sem atingir o objectivo (levar mantimentos à Companhia estacionada em Gandembel e Ponte Balana), depois de duas tentativas de encontro com os camaradas que em sentido oposto tinham vindo montar a proteção à minha Companhia.

Na primeira tentativa, há a lamentar seis mortos e um desaparecido na Companhia de Gandembel. Na segunda tentativa rebentou uma A/P que feriu um colega meu. Tudo porque havia minas na estrada, fornilhos nas bermas e a floresta estava armadilhada.

Mampatá, 7 de Setembro de 1968

Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não. Tenho de encarar as situações com naturalidade. Confiar. Reagir... reagir com todas as minhas forças.

Mampatá, 11 de Setembro de 1968

Desta vez foi Chamarra a escolhida para fazer a festa. Cerca das 20 horas o bandido abriu fogo com vários canhões e lança-roquetes. Durante uns minutos ouvimos ao longe o ruído característico do rebentamento de granadas. O pelotão da minha Companhia que aí se encontra destacado, comandado pelo Alferes Barbosa,  reagiu bem, pondo-os em debandada. Mesmo assim há a lamentar um soldado ferido e dois mortos civis, uma mulher e uma criança... Tantas vítimas inocentes nesta guerra que não quero fazer!

Mampatá, 15 de Setembro de 1968

Visitei Chamarra. O último ataque foi tremendo. Aproximaram-se do arame farpado para pregar aos meus colegas uma terrível partida, apanhá-los à mão. Felizmente os meus colegas reagiram em força e não permitiram.

Chamarra é o posto mais avançado de ligação com Gandembel, por Ponte Balana, o único caminho que permite chegar a este posto avançado, pois ninguém de bom senso se arrisca a fazer a ligação pelo corredor da morte – Guileje, Mejo e Gandamael Porto. Esse só para o Inimigo e para os Páras ou Comandos, de vez em quando e com muito cuidado, fazer os seus raides de aventura.

Consta que Mampatá vai ser atacado pelo mesmo sistema.

Mampatá, 16 de Setembro de 1968

Ontem Chamarra foi mais uma vez atacado. Desta vez não houve azar. Em Guileje também houve festa dura. A companhia de Páras tem trabalhado bem, no patrulhamento da Zona, mais usada pelos terroristas para introduzirem homens e equipamento, mas mesmo assim....

 Hoje na estrada de Chamarra-Mampatá ia-se dando mais uma catástrofe. O IN estava a montar minas A/C na estrada quando uma patrulha de milícias apareceu e abriu fogo pondo o IN em fuga deixando duas minas de 15 Kg. Todos os dias passa nesta estrada uma viatura com 10 homens a caminho de Aldeia Formosa.

Mampatá, 17 de Setembro de 1968

Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....

O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN. Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo.

Mampatá, 23 de Setembro de 1968

Tudo está calmo, há dias que o IN não ataca. Todos estamos convencidos que o próximo objectivo é Mampatá e com o seu novo sistema de ataque nos vai dar que fazer.

Uma das coisas que me agrada fazer, embora perigosa, é a ronda nocturna pelos postos de sentinela. No princípio detestava, mas agora dá-me prazer. Normalmente passo um quarto de hora em cada posto, a conversar baixinho com o camarada que está de sentinela. Assim, ajudo-o a passar o tempo e a manter-se atento. Esta missão nocturna é distribuída pelo Alferes, pelos Furriéis e por mim.

Ontem aconteceu-me uma cena que dá para rir. Como é hábito, avisei com um pequeno assobio (a senha) o primeiro sentinela que me estava a aproximar. Sentei-me ao lado dele no chão e ficamos a conversar. Não notei que me tinha sentado em cima de um carreiro de formiga preta e quando me levantei senti o corpo todo a ser ferrado. Que dores horríveis pelo corpo todo !

Tirei a roupa toda, arranquei as formigas como pude, coloquei a roupa na ponta da espingarda e continuei a ronda completamente nu. Estava no primeiro posto, faltavam cinco. Os meus camaradas ao verem-me chegar ao posto com o fato que a minha mãe me deu ao nascer gozaram em cheio e durante uns dias não se falou noutra coisa.

A formiga preta faz carreiros de quilómetros à procura das suas presas. Na família desta formiga existem várias funções e tamanhos físicos. Assim as batedeiras são grandes e gordas. Normalmente andam fora da fila a procurar as presas e são as mais agressivas. A fila é composta por duas alas laterais e duas alas interiores, sendo as laterais como que soldados, mais fortes que as que vão no interior, as escravas que transportam o alimento para um esconderijo debaixo da terra

Quando as batedeiras localizam a presa morta ou viva, esta por qualquer razão em estado imobilizado, automaticamente a fila abre-se em duas e começa o envolvimento e a tomada de assalto sem que a vítima dê por nada. Quando esta se mexer sentirá milhares de ferradelas. Os cornos das formigas ficam de tal maneira cravados, que muitos ficam agarrados ao corpo, quando a vítima se tenta libertar. Foi isso que me aconteceu. Dizem que gostam muito de atacar os ‘tomates’ e eu que o diga !

Disse-me a Aliu Djaló que a jiboia depois de asfixiar a presa explora a zona num raio de 20 a 30 metros e se sentir que há formigas, abandona o alimento. Acontece que como fica vários dias a deglutir o animal que caçou, se as formigas forem atraídas pelo sangue da vítima, ou a descobrirem cobrem-na e no momento em que com o estômago cheio tenta abandonar o local, as formigas atacam e ficam com alimentação para vários dias.

São milhões de formigas. Eu vi uma cobra apanhada pela formiga, melhor, vi uma mancha negra do que fora uma cobra.

Mampatá, 25 de Setembro de 1968

Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal.

Um novo ser que ri e chora. Um novo ser que é feliz porque não sente, não houve o troar das armas, não foge para o abrigo aterrorizado, não se deita no chão para fugir às balas assassinas e traiçoeiras. Vai com os outros e se morrer ?... não conhece, não sente, não ama... Ontem fui chamado para assistir a uma mulher que estava a ter uma criança e se sentia muito mal. Assisti-a o melhor que pude. Mãe e filho estão bem.

Na minha ronda de ontem apanhei um susto que no fim deu para rir às gargalhadas. Estava na ponta norte da aldeia, pelas duas da madrugada, quando avisto um clarão na ponta sul. Parecia uma tabanca a arder. Por vezes diminuía de intensidade e não se ouvia qualquer indício de movimento de pessoas. Pensei: é o inimigo que atacou o posto do morteiro, num golpe de mão e apanhou os meus colegas. Vou mandar uma rajada para acordar o pessoal. Depois decidi ir ver o que se passava atravessando a aldeia com todo o cuidado por entre as tabancas e fui dar com os meus colegas todos nus a tirar palha das tabancas, incendiá-la e queimar milhares de formigas que aproveitando-se do seu sono os visitaram e quando um deles se mexeu foi uma autêntica catástrofe, ao sentir dezenas de corninhos a picarem-lhe o corpo todo. O vizinho acordou com o grito que o desgraçado deu e sentiu o mesmo. O chão era um tapete negro, pelo que quando puseram os pés no chão tiveram outra surpresa.. Então começou a luta entre o soldado Português e a formiga preta da Guiné. Houve milhares de mortes por parte do inimigo, um grande susto que eu apanhei e por pouco não pus a Tabanca toda em alvoroço às duas da manhã.

Mampatá, 27 de Setembro de 1968

Há alguns dias que a guerra parece ter parado. As povoações deixaram de ser atacadas. As colunas fazem-se sem incidentes, só as minas continuam. Desta vez foi um alferes em Gandembel que pisou uma bailarina que o cortou pela cintura. Para ele como para tantos outros acabou a guerra...

Os dias sucedem-se no seu marchar monótono, uns mais fáceis de passar, outros mais difíceis, mas a realidade é que eles vão passando e com eles vai o sofrimento de quem se vê longe dos seus e anseia que chegue o último dia, o dia em que de novo se aproxima dos seus entes queridos, os abraça e se fica com eles, jurando a si mesmo, nunca mais se afastar.

Porquê este desejo enorme que o tempo passe se com o seu andar nos torna mais velhos ? A felicidade só é possível onde haja amor, onde haja paz. Num ambiente de guerra onde somos uns estranhos, numa terra que não é nossa e que desconhecemos, onde nos consideram e respeitam porque precisam de nós, porque lhes tratamos as feridas e matamos a fome e sobretudo porque temos a força das armas, neste ambiente de desamor, onde muitas vezes impera o ódio e o terror, não pode haver felicidade e o que é a vida sem uma réstia de felicidade ?

Que vale a vida se não vemos o "outro" ou passamos por ele e porque as circunstâncias o exige, fingimos não o ver ?... Vivemos na esperança que o tempo, uns escassos meses da nossa vida, passe depressa para uma liberdade duradoira e uma paz excelente...

Apanhei mais um susto. Na Guiné há noites que mais parecem dia, tal é a luz do luar. Quantas cartas eu escrevi de noite enquanto fazia horas para iniciar a minha ronda. Noutras ocasiões a escuridão é tão profunda que não se vê um palmo à frente do nariz. Numa dessas noites ia eu de um posto de sentinela para outro, às apalpadelas e por vezes contra as palhotas, quando sinto que bati em algo que se mexeu. Tive um pressentimento e gritei:
- Tem calma pessoal fricano, é fermero (enfermeiro) qui na vai !- Ouço a voz do Suleimane (#):
- Tu na tem sorte, djubi (estás com sorte, olha). - Mostrou-me a catana que tinha na mão. Disse-lhe eu:
- Sorte na tem tu!- e mostro-lhe o dedo no gatilho da G 3, pronta a disparar. Demos um abraço e ficamo-nos a rir. Tinha vindo fora da tabanca urinar, mas como estava muito escuro houve um choque que podia dar mau resultado.

Mampatá, 21 de Outubro de 1968

Recomeçaram os ataques a Gandembel. Há algum tempo que paira no ar uma atmosfera tensa.. A dúvida e a preocupação vê-se em todos os rostos. Podiam começar em qualquer lugar.

Ontem, em Bacardado, pequeno povoação que só tem um pequeno grupo de milícias com mausers, a dois quilómetros de Mampatá, junto à estrada onde passamos todos os dias. O terrorista apareceu de noite e queimou toda a povoação e feriu alguns nativos. A pouca população juntou-se e defendeu-se bem, pondo o bandido em fuga. Apenas ficaram de pé três palhotas. Animais, dinheiro e haveres, foi tudo queimado.

Mampatá, 23 de Outubro de 1968

Passei em Bacardado. Triste abandono, palhotas queimadas, animais mortos, nem uma viva alma, só os abutres, medonhos, anunciantes da morte e da desolação, procurando os restos de carne para com avidez saciarem a fome e um cheiro nauseabundo e pestilento...(##)

A estrada está vazia. O medo fez a população abandonar o que porventura lhes restava e vieram acolher-se a Mampatá. Deixou de haver movimento humano na estrada. Quando passávamos de viatura, as crianças, nuas e sujas de lama, mas com a alegria no rosto acorriam a dizer adeus e a desejar bom biaje. Agora vejo-as todos os dias à minha frente esfomeadas, a mendigar migalhas para matarem a fome.

O vazio da estrada transmitiu-se à alma. Também ela sofre. O coração chora tantos inocentes que procuravam viver a sua vida em paz, só queriam uma bolanha para trabalharem a terra e tirarem o seu sustento. De um momento para outro viram surgir junto de si, um inimigo traiçoeiro que, escondido no alto capim, esperou que a noite viesse, como uma fera que espera a sua presa , para protegido pela escuridão, incendiar, ferir, matar, arrasar tudo - se meia dúzia de valentes não lho impedissem - e depois fugir cobardemente à procura de protecção para lá da fronteira.

Porquê atacar e matar os seus irmãos de raça ? Não sei .


Guiné > Região de Tombali > Carta de Xitole (1955) (Escala de 1/50 mil) > Posição relativa de Mampatá, Bacar Dado, Afiá, Quebo e Chamarra.

Explicação dada hoje pelo Zé Teixeira sobre Bacar Dado: "A tabanca de Bacar Dado foi incendiada durante a noite. A sua defesa estava entregue a três homens, creio que ligados ao Gr Comb de milícias de Mampatá Forreá. Tinham como arma de defesa a velha mauser, das mais antigas que se possa imaginar. A luta foi curta, pois a população abandonou o local. No dia seguinte de manhã apercebemos-nos de um movimento anormal. Era parte da população que se refugiou nesta tabanca. Sei que de Aldeia Formosa vieram dois Gr Comb bater a zona e encontrou a tabanca queimada. O médico que estava em Aldeia Formosa acompanhou a força e comentou comigo que houve feridos no PAICG por indícios no terreno. Fotografias, só as que retenho na mente. Antes do ataque, as crianças que corriam atrás do "boguinhas" e as pessoas às portas das moranças a dizer-nos adeus. Depois, o silêncio, os esqueletos das moranças e das árvores carbonizadas e o cheiro a queimado como escrevi no Diário".

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Mampatá, 29 de Outubro de 1968

Quase seis meses se passaram, já, desde que deixei a Metrópole. Parece que estou a ver à minha frente o cais de embarque e milhares de pessoas que com as lágrimas nos olhos e lenços a esvoaçar,  diziam adeus aos jovens familiares que se lentamente se afastavam com destino à Guiné.

Este tempo, os primeiros meses da guerra, sempre o mais difícil, tem-me custado imenso a passar. Ambientes diferentes, um clima doentio que me marcará para sempre, a guerra com todos os seus perigos. Até a própria natureza parece diferente. Tudo isto são factores, que a par das saudades da família que ficou preocupada, da namorada que lá longe sofre na incerteza, influem no meu estado de espírito.

Já corri muitos perigos. Balas e estilhaços que mãos criminosas, inconscientes ou talvez conscientes do direito de terem a sua Pátria livre, lançaram sobre mim. Já percorri muitos quilómetros, conheci terras, povos e culturas, paisagens maravilhosas. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Guiné, a forma natural como os seus povos vivem, a fraternidade que comungam entre si, a sua forma simples de Ser, em que o Ter não é importante, mas o viver cada dia como que o seguinte não existisse.

A família do sargenti di milícia Hamadu estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos.

A refeição animada com a conversa sobre a forma de viver em Lisboa, quando chega um estranho elemento, carregado de panos e bujigangas, era um gila (contrabandista oriundo da Guiné Conacri). Começou o diálogo em Mandiga:
- Na pinda . .. Jame tum … - . O homem sentou-se e começou a comer connosco. O ditado Português diz “para mais um chega sempre”, agora para mais dois… mas chegou.

Após ter comido connosco a pouca vianda que havia tentou vender os panos que trazia, depois foi-se embora, com muitas saudações e com um Djarama nani (muito obrigado) no final
Quem é? - perguntei.
- Ká sibi - É Gila vem de Conacri, tinha fome. Quando pessoal tem fome …

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Notas de JT:

(#) Tive o prazer de reencontrar o Suleimane em Abril de 2005 no Saltinho. Estava o mesmo, parece que os anos nem passaram por ele.

(##) Em Abril de 2005 visitei Bacardado [, ou Bacar Dado] e como fiquei feliz ao verificar que a vida logo depois do fim da guerra recomeçou e hoje liga com Áfia e Mampatá Forreá  fazendo como que uma única aldeia!

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Nota do editor: