Amigo e Camarada Carlos Vinhal.
Patrão fora trabalhos dobrados.
Deixa-o lá, não lhe ligues às provocações que escreve nas finas areias da Ilha de Luanda, que lhe há de perdoar a Nossa Senhora do Cabo por isso, e entrega-te de alma e coração (um pouco de graxa não faz mal a ninguém) a este meu 11º capitulo da saga "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista", que te faço chegar em anexo.
Um abraço a ti e a todos os camaradas, incluindo o tal, o outro, se é que o "acesso à rede sem fios" ainda lhe permite ler o que vamos escrevendo por cá.
Armando Pires
FURRIEL ENFERMEIRO, RIBATEJANO E FADISTA
11- A decapitação do comando
Aquelas primeiras horas em Bissorã não foram fáceis.
Desde logo, como já escrevi, o não me sentir dentro de um quartel.
Era assim a modos como que um exército que tivesse ocupado uma cidade e “vamos lá instalar-nos”.
Não quero com isto dizer que fossem más aquelas acomodações. Antes pelo contrário. Mas num quartel está ali tudo próximo, estamos ali todos juntos, tipo ó militar chegue aqui, e em Bissorã não, era mais ó furriel dê um salto à enfermaria e lá ia eu, no jeep, rua acima. E depois, o que também me fez confusão, abrigos "cá tem".
Então, e se houver um ataque? “Pois, não sabemos, ainda não aconteceu. Temos andado a perguntar aos velhadas que se riem, apontam para umas casas particulares e dizem, olha ali aquele tem um abrigo no quintal, vê se te fazes amigo do gajo, mas quando a gente lhes pergunta, e nós, dizem-te que experimentes debaixo da cama, pode ser que o colchão aguente”.
Confesso que não achei graça à narrativa mas os seis meses que já levava de Guiné eram suficientes para encarar aquilo com um logo se vê.
Em qualquer dos casos não deixava de me interrogar:
- Por que raio viemos nós aqui parar?
A interrogação ganhava cada vez mais sentido, não tanto pelo que via mas mais pelo que sentia no ar, sobretudo pelas diferenças, que raios me partam se eu não notava nas caras e na voz dos homens de galões com quem era hábito eu falar.
- Ó alferes, afinal o que se passa aqui?
O alferes era o João Vinagre, do Reconhecimento e Informações, ribatejano como eu mas de Coruche, homem abençoado pelas águas do Sorraia, de voz modulada pela tão próxima planície alentejana, e confiável. Um homem confiável.
E à pergunta que lhe fiz o João Vinagre contou-me que em Julho (1969) o General Spinola estivera em Bula numa visita de inspecção ao sector e não gostara nada do que vira. A primeira parte era do meu conhecimento porque eu estava em Bula quando a visita ocorreu. O resultado é que estava a ser, para mim, uma novidade.
Abro aqui um parêntesis para albergar o longo salto que dei no tempo, e contar que na consulta que fiz à história do meu Batalhão, disponível no Arquivo Militar, li o relatório elaborado pela equipa de oficiais superiores que acompanhou Spinola na tal visita a Bula, e o mínimo que posso dizer é que ele, o relatório, onde se falava de ineficácia operacional e incapacidade para localizar nos mapas as áreas de influência do IN, era arrasador para o comando do batalhão, fechando eu com isto o parêntesis que abri.
Portanto, regresso ao ano de 69, mês de Julho, recordando que por aquela altura tiveram inicio os trabalhos de construção da estratégica estrada de S. Vicente. A capinagem levava grande avanço e não tardaria a entrada em acção dos homens da Engenharia.
Bula - 1969 – Abertura e capinagem da estrada de S. Vicente
Não sei, e isto sou eu a congeminar face ao li, se Spinola já tinha ou não em mente colocar em Bula pessoal da sua confiança. É sabido da estima e apreço que o General tinha pela generalidade das tropas, mas também se sabe, e ele nunca o escondeu, da sua preferência pelas botas de montar com esporas.
O certo é que em Agosto, estava eu de férias em Portugal, entrou pela porta de armas do quartel de Bula o BCAV 2868, e pela mesma porta saiu o BCAÇ 2861, com destino a Bissorã.
- Ó Alferes, e onde pára o major Candeias? – perguntei eu ao Vinagre.
- Nem veio connosco. Fez as malas e dois dias depois foi logo para Bissau.
- Então, e quem é o novo major de operações.
- É o capitão Alcino. Está na calha para ser promovido a major e até já está a exercer as funções
- E o nosso comandante?
- Por enquanto está por cá, mas a situação dele está muito difícil.
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- Furriel Pires, o doutor pede para lá ir acima, à casa dos oficiais.
- O que é que se passa?
- Não sei, saiu do posto de enfermagem, entrou no jeep e pediu-me para o vir chamar.
O recado assim trazido pelo Machado, o meu 1º cabo auxiliar de enfermagem, não augurava nada de bom. Ainda por cima porque a cara dele não deixava transparecer coisa alguma e eu gabava-me de lhe ler na cara como num livro aberto.
Da minha casa à dos oficiais eram dois passos. Subi as escadas que levavam ao primeiro andar, pedi licença e entrei na grande sala de estar onde apenas vi o nosso comandante de batalhão, o Ten Cor César Cardoso da Silva, e o meu médico, o alferes miliciano José Manuel Oliveira.
- Ó Pires, trata da papelada porque o nosso comandante tem de ir para o hospital em Bissau.
- Então doutor, posso saber o que tem o nosso comandante?
- Ó pá, aquelas cólicas renais que o nosso comandante tem tido agravaram-se, deve haver aqui pedras a soltarem-se do rim, e eu acho melhor o comandante ir já para o hospital.
- E a medicação, doutor, é preciso fazer alguma coisa?
- Não pá, isso eu já fiz.
Pedi licença para me retirar, dei meia volta, subi a rua em direcção ao posto de enfermagem, sentei-me à secretária a preencher o relatório de evacuação, e enquanto escrevia quis saber do Machado uma coisa que me estava ali a bailar dentro da cabeça.
- Ó Machado, o nosso comandante levou algum Buscopan?
- Que eu lhe desse, não.
Na manhã seguinte, um DO levou o comandante para Bissau.
A notícia correu o quartel e causou sobressaltos.
O Ten Cor César Cardoso da Silva era um homem por quem todos os militares tinham enorme estima. E respeito. E consideração.
Não sei, nem quero, mesmo todos estes anos passados, fazer uma avaliação da sua aptidão militar.
Interessa-me apenas dizer que era um homem de grande nobreza, de trato elegante, a quem nunca ninguém ouviu erguer a voz, de quem nunca ninguém sentiu o peso do RDM.
Nem mesmo naquela noite, ainda em Bula, quando ao passar ronda encontrei a dormir, a sono solto, os dois homens que estavam de serviço no posto de vigilância da sua casa, que até ficava fora do quartel. “Ora vamos lá engatar estes marmelos” – pensei eu.
Primeiro levei-lhes as armas e depois acordei-os. Foi até ao alvorecer sempre a atormentá-los. Entreguei-lhes as armas “e vão com sorte”, adverti-os. O pior é que história voou mais rápido que os mosquitos, chegou aos ouvidos do comandante que me chamou e disse:
- Não acha que já é sofrimento suficiente o estar aqui? Não tem outra forma de chamar a atenção dos seus homens?
Ou ainda daquela vez, lá em Chaves, quando formávamos batalhão, numa bravata com os furriéis que partilhavam quarto comigo, lá na Rua do Poço, decidi, vestido com pijama e chinelos de quarto nos pés, roupão por cima com lenço de cachené, traçado à fadista, a adornar o pescoço, ir tomar chá com torradas ao café Aurora, ponto de encontro das elites flavienses, logo também dos senhores oficiais, entre os quais se encontrava o nosso comandante, que “evitou” ver-me, mas que no quartel me chamou pela manhã cedinho ao seu gabinete.
- Ouve lá, filho, tu andas bem da cabeça?
- Meu comandante…
- Tu não sabes que aquele é o café que eu frequento?
- Sei…
- Então se sabes, tu tens muita graça vestido daquela maneira, mas para a próxima não vás ao Aurora. Podem pensar que tu estás a provocar o teu comandante e isso é muito feio.
Convivemos com o Ten Cor César Cardoso da Silva não mais que nove meses. Três em Chaves e Santa Margarida, a formar batalhão, e seis na Guiné. Mas foi sempre “o nosso” comandante. Que convidávamos para todos os encontros de confraternização da nossa companhia. Não esteve em todos, porque nem sempre a saúde lhe permiti, mas sobretudo porque recusava estar onde o General Spinola pudesse estar. Soubemo-lo quando em 1994 o convidámos para estar presente nas comemorações dos 25 anos da nossa partida para a Guiné. O Encontro teve lugar em Chaves e ocorreu no ainda Batalhão de Caçadores 10. Ali pernoitámos, ali almoçámos, e ali a data ficou gravada numa placa que “o nosso” comandante descerrou na Sala de Armas do quartel.
Em Maio de 2005, na Confraternização realizada em Viseu, recebemos e foi lida na abertura do encontro, uma carta que nos era dirigida pelo seu filho Raul Silva.
“É com infinita tristeza que participo a V. Exas. o falecimento do meu pai, ocorrido no passado dia 5 de Abril deste ano. Faço-o com a convicção de que muito lhe agradaria estar presente nesse convívio, revendo aqueles que o acompanharam nos que forem os tempos mais difíceis, porém inolvidáveis, da sua vida de militar…”
Seguiu-se um emocionado minuto de silêncio.
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O Ten Cor César Cardoso da Silva depois de ter chegado ao HM 241, foi evacuado para Lisboa. Após ter tido alta hospitalar regressou à Guiné e foi colocado como juiz, ironia maior, no Tribunal Militar de Bissau, onde terminou a comissão.
Nunca falei com o doutor Oliveira, nem nunca me atreveria a falar, sobre a evacuação do nosso comandante. Mas não me sai da cabeça que aquela deve ter sido uma evacuação muito providencial.
Chaves, Fevereiro de 1994. Na Sala de Armas do BC 10, o Coronel César Cardoso da Silva a descerrar a placa comemorativa dos 25 anos da partida do BCAÇ 2861 para a Guiné.
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Nota do editor
Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12023: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (10): Alô Bissorã, cheguei!!!