Companheiros e Camaradas à Volta da Mesa
Numa Tabanca em Medas, Gondomar, com os irmãos Carvalhos, Manuel e António e outros camaradas, Joaquim Peixoto, o Fernando Súcio, o Jorge Peixoto, o Xico Allen o Cancela, outro camarada e mais dois bons amigos. Porque uma tabanca surge quando dois camaradas da Guiné se encontram e começam a falar e a imaginação se activa e começa a mostrar esse filme a preto e branco, antigo mas sempre presente. Para além dos barracões onde dormíamos, as arrecadações, as messes e refeitórios, os canhões, as valas e abrigos, perpassam também na memória essas habitações primitivas, cobertas de capim, os homens grandes com as suas túnicas talares, as mulheres com panos parecidos com saias e as bajudas de mama firme a mostrá-las naturalmente, sem pudor.
Os melhores companheiros de uma boa mesa são sem dúvida todos os convivas que se reúnem à sua volta, mas para criar um clima aprazível e descontraído contribuem muito os pratos com boas iguarias acompanhados de bons vinhos que relaxem a mente e alarguem o campo de visão do espírito.
A posta à mirandesa não é um bife mas sim dum naco de vitela espesso que pelo seu tamanho corresponde quase a três bifes. Deve ser posto a grelhar em lume forte, com boas brasas e nesse momento temperado com sal grosso, virado e salgado do outro lado e posto de novo a grelhar. No calor das brasas, deve estar apenas o tempo suficiente para queimar um pouco o seu exterior, aquecer toda a carne e conservar muito do sumo próprio da carne no seu interior. Para tempero algum azeite logo que sai do lume e alho para quem apreciar.
Os caixeiros-viajantes grandes faladores por índole ou dever de ofício encarregaram-se de fazer a propaganda da posta à mirandesa, quando a conheceram, na Gabriela, em Sendim. Conheci a casa de pasto da Gabriela ainda adolescente, levado pelo meu pai, já não me recordo a que propósito andava com ele por terras de Miranda, a passear não de certeza. Ficava no 1.º andar de uma casa, numa sala pequena, com duas ou três mesas, e não teria mais do que 12 lugares sentados. A velha Gabriela era uma mulher despachada e desassombrada, com língua afiada e vernácula tanto no falar mirandês como no "português fidalgo". Mulher de barba rija, mesmo no sentido literal da palavra. Quando os caixeiros-viajantes fizeram a divulgação da posta à mirandesa por todo o país nas décadas de cinquenta e sessenta, já os lavradores a comiam há muitas décadas, nas tascas de lona montadas, por taberneiros, nas feiras de Mogadouro, Vimioso e Miranda do Douro. Nesses tempos a posta à mirandesa era proveniente da melhor carne, das vitelas de raça mirandesa, aliás a única raça bovina existente nesses concelhos, alimentada em lameiros de bons pastos e com vegetais e cereais que os lavradores produziam nas hortas e campos. Essas vitelas para além do leite das mães, comiam da melhor alimentação vegetariana para animais dessa espécie.
Porque à boa maneira dos camponeses, (camponeses de Medas e de Brunhoso), a amizade se cimenta na partilha dos bens que a terra nos dá, no dia 26 de Novembro juntámo-nos nove camaradas mais dois amigos numa tabanca improvisada nuns anexos da casa do Carvalho de Mampatá com ele e com o irmão Manuel, em Medas, Gondomar, num grande almoço para saborear umas boas postas de vitela compradas em Mogadouro, com bom vinho do Douro e pão trigo de origem transmontana. As postas bem assadas pelo Xico Allen estavam tenras, saborosas, suculentas, o vinho maduro tinto da produção dum grande lavrador e amigo de Mesão Frio, terra transmontana, já perto do Porto, ajudava ainda a melhorar a qualidade e o sabor da carne. Num dia agradável de algum sol e temperatura amena, passamos uma tarde que não se esquece, como cada um não esquece as farras que fazíamos na Guiné, com os pobres produtos que conseguíamos da manutenção militar ou outros produtos locais que algum camarada mais inventivo conseguia arranjar.
Muito obrigado aos irmãos Manuel e António Carvalho pela simpatia que tiveram com todos e pelo trabalho sobretudo do Carvalho de Mampatá, sempre em acção na preparação de algumas entradas e a cozinhar as couves e batatas à lareira, em grandes panelas de ferro como se fazia antigamente. Até pelo sabor histórico e local da grande fogueira da lareira e das panelas, foi um dia memorável. Nestas trocas de bons sabores culinários já noutros anos tive também oportunidade de saborear juntamente com outros camaradas, lampreias muito bem confeccionadas pelo Manuel, outro grande cozinheiro, pescadas no rio Douro, não muito longe das casas deles.
************
Uma navalha do nordeste transmontano, fabricada artesanalmente pelos irmãos Pires, ferreiros de Palaçoulo
Há longos anos, talvez séculos, as navalhas de bolso e as facas de cozinha eram fabricadas nas forjas dos ferreiros, em muitas aldeias, mas sobretudo na aldeia de Palaçoulo que hoje tem mais de uma dezena de fábricas artesanais e duas grandes fábricas industriais, Martins e MAM, que vendem para todo o país e para o estrangeiro.
Facas como esta ou semelhantes, acompanhavam sempre os lavradores e outros trabalhadores da terra, dessa região. Com elas comiam as postas nas tascas das feiras, muitas vezes à mão, sobre grandes fatias de trigo ou centeio. Os corticeiros no Verão ou os azeitoneiros no inverno, como outros trabalhadores sazonais, que muitas vezes acompanhei ao longo da vida, à hora da merenda sacavam da navalha, uma fiel companheira, para comerem as côdeas de centeio ou trigo, o presunto, a chouriça, o toucinho ou outras carnes. Quando jovem lembro-me bem dessas navalhas simples, geralmente com cabos de freixo, já escuros pela idade e com as lâminas muitas vezes já meio gastas pelo uso e pela necessidade de serem afiadas. Era um tempo de contar os tostões e de conservar todos os objectos até ao fim da sua vida útil.
Hoje já com outra folga financeira e outros hábitos, os lavradores e filhos de lavradores da minha idade, educados na tradição e fetichismo das navalhas têm cada um 10, 20, 30 ou mais navalhas com diferentes feitios e qualidades de lâminas e com cabos de diferentes madeiras ou outros materiais: freixo, carrasco, buxo, esteva, oliveira, chifre, marfim etc. Alguns coleccionam carros, armas, relógios, gravatas, óculos, etc., nós os do Nordeste Transmontano, criados sem outros brinquedos para lá do pião e da roda de ferro, coleccionamos navalhas, sem intenções de ataque ou defesa, simplesmente porque nos habituámos a ver essas ferramentas sempre úteis nas mãos dos nossos mais velhos, desejosos de possuí-las, mas que eles só permitiam que usássemos a partir na adolescência.
Já os naturais do Noroeste Transmontano, sobretudo os de Boticas e Montalegre, sem as mesmas coleccionam armas de fogo, sem querer, neste momento, especular sobre o assunto, pois confesso que desconheço a origem dessa tradição.
O Noroeste, e o Nordeste transmontano são o verso e reverso da página do mesmo livro com algumas diferenças que as montanhas por vezes não deixavam fazer uma boa leitura. Nos tempos da minha meninice e adolescência quando as tradições ainda se mantinham iguais desde há séculos, a convivência entre as aldeias não era superior a um raio de 100 quilómetros que era aquilo que as mulas dos tendeiros, dos peleiros, dos albardeiros, dos latoeiros, dos cesteiros e de outros negociantes e artistas podiam percorrer, para não ficarem demasiado tempo fora das suas terras.
Um abraço.
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 5 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15447: Convívios (721): XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015: Os "piras" (Manuel Resende)