Foto e texto: © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]
No tempo em que havia um santo para cada estação,
do são Sebastião ao são João… e os soldados partiam para a Índia
por Luís Graça
Domingo à tarde…
Sempre detestaste os domingos à tarde:
ou chovia ou fazia vento
e um cão uivava
na vinha vindimada pelo Senhor,
sobretudo nada acontecia,
de assinalável,
no domingo à tarde,
e até o tempo parava
no relógio da torre da igreja da tua aldeia.
Mesmo que a vida tivesse um sentido,
e tu escutasses a boa nova do padre Escudeiro,
no largo do convento,
às vezes soalheiro,
a vida ia no sentido inexorável
dos ponteiros do relógio,
dextrorsum,
aprenderás mais tarde, na escola,
ou, por outras palavras,
do berço à cova,
donde ninguém escapava,
os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte.
E quem acabava, sua cova tapava.
Mentes: pelo menos, havia a bola,
as pequenas alegrias da bola, de trapos,
as paixões da bola,
os cromos do Sporting e do Benfica, e a escola,
(não, nesse tempo não se dizia escolinha!),
o bibe azul às riscas,
mais a sacola
onde levavas o caderno, de caligrafia,
a tabuada, a caneta de aparo,
o pau de giz, a ardósia,
o pão seco com marmelada,
ou com toucinho fresco, ou salgado,
que era o presunto dos pobres,
e o livro de leitura da 3ª classe
com os meninos, na capa,
da Mocidade Portuguesa,
cantando e rindo,
e, como tu, às vezes,
chorando, suspirando e sonhando.
Havia o jogo dos cinco cantinhos,
e o da cabra-cega,
mais o berlinde,
o arco e o balão,
o abafa, as caricas, o pião,
a alegria (e às vezes o medo)
da hora do recreio.
Foi lá que aprendeste
que a vida tem horas
e dias e semanas e anos (…)
E, com sorte,
haveria o bife ao domingo,
o polvo na maré-baixa,
o bacalhau com grão-de-bico à sexta-feira,
no tempo da quaresma,
se a gente lá chegasse,
ao domingo,
à maré-baixa,
à quaresma. (…)
Ah!, e as feiras!,
não te esqueças de referir as feiras,
havia as feiras e os mercados,
no Rossio, junto ao rio,
a merda dos bois e das vacas no terreiro,
e os pobres dos ciganos
sem eira bem beira,
de que tinhas medo que te pelavas,
mais as labaredas do inferno,
as fogueiras de são João,
a queima das alcachofras,
um tostãozinho para os santos populares,
as bichas de rabear,
o calvário e as suas treze estações,
a rua da Misericórdia,
a rua Grande,
a rua do Castelo,
havia três ruas, não mais, na tua aldeia,
e chegavam…
Ah!, havia ainda a banda filarmónica,
o ti-nó-ni dos carros dos bombeiros,
a sirene do quartel dos bombeiros
que marcava as doze horas de domingo.
E o sino da igreja da tua aldeia
que tocava a finados
quando morria algum cristão.
E o são Sebastião, no inverno,
em janeiro no frio de rachar,
havia santos para cada estação,
o são João, no verão,
no 24 de junho,
o dia em que os camponeses da tua aldeia
iam à praia molhar os tornozelos,
os homens, de ceroulas arregaçadas,
as calças de cotim, remendadas,
os mais velhos de barrete preto,
e elas, de saias compridas, de flanela,
que não podiam mostrar a barriga da perna,
os matulões pegando nos putos a berrar e a espernear
e batizando-os na água salgada,
do grande oceano,
para que as carnes enrijassem,
e os meninos medrassem,
e lá voltassem pró ano,
todos os anos até ao dia das sortes,
e fossem grandes homens,
fortes e valentes,
marinheiros, aventureiros,
soldados façanhudos
ou simples cavadores de enxada,
como os seus pais e os seus avós o tinham sido,
que os bisavós e os tetravós,
esses, já ninguém sabia quem eram,
nem de onde teriam vindo,
nem se chorava por eles,
porque na época do trinta e um,
poucos moços, velhos nenhum.
Ah, os camponeses e os seus burros
que ainda não estavam em extinção,
nem uns nem outros,
iam aos magotes
até à praia da Areia Branca,
no feriado do são João,
entre brincadeiras e dichotes,
levavam a trouxa e a merenda,
os tremoços e as pevides,
as peras, as ameixas e os abrunhos,
os melões e as melancias,
o pão de trigo do moleiro cozido em forno a lenha,
a broa de milho com sardinha,
as azeitonas mal curadas,
bebiam vinho pelo garrafão de palha,
comiam o arroz de cabidela,
de galo ou de coelho,
misturado com a areia e o vento e as lágrimas de sal,
e as saudades dos mortos
e dos perdidos pelos mares
e pelos quintos do inferno do império...
Comiam o arroz, escuro, de cabidela,
em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores,
e usavam canivetes multiusos
que tanto serviam para limpar a cera dos ouvidos
ou o lixo das unhas,
como para cortar grandes nacos de pão,
ou apanhar lapas e ouriços do mar...
Sangravam de saúde,
pelo são João,
os camponeses da tua aldeia,
muita saúde, pouca vida,
que Deus não dava tudo,
no tempo em que beber vinho
era dar de comer a um milhão de portugueses. (…)
Na Praia da Areia Branca, pelo são João, lembras-te?,
o teu querido ti Silvano,
carpinteiro e cavaleiro,
utilizando-te como escudo
em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de junho
(ou terá sido no dia de são Bartolomeu,
a 24 de agosto?)
de mil novecentos cinquenta e tal,
que passaste a ter medo do mar
e prometeste a ti mesmo
(vã promessa de menino!)
nunca vir a ser marinheiro,
que na água de mares,
não procures cabelos para te agarrares.
Havia ainda a festa de são Sebastião,
Sabastião, dizia o povo, come tudo, come tudo,
o pobre de Cristo,
coitadinho do soldadinho,
do tamanho de um menino,
com ar de quem não tinha nenhum jeitinho para santo,
nem muito menos para herói e mártir,
o corpo trespassado pelas setas dos maus,
havia os carros de pão,
as promessas, os leilões, as rezas,
os exorcismos, os amuletos,
os unguentos, as benzeduras da ti’ Adelina,
(tua vizinha da rua do Clube,
que irá morrer nas Américas)
contra o mau olhado,
as bruxas, os losibomens, o diabo,
cruzes, canhoto!,
o sarampo, o sarampelo, a varíola, a varicela,
a cólera, a raiva,
a peste, a fome, a guerra,
e o bispo da nossa terra, libera nos, Domine,
a tuberculose, o tifo, a rubéola,
a febre amarela, a tosse convulsa, a diferia,
a disenteria, as sezões, e os males de amores,
e ainda estava para vir o ébola, a sida, o dengue
e os quatro cavaleiros do apocalipse. (...)
Havia, por fim, os soldados que partiam para a Índia,
e as mães da rua do Castelo
comprida, do cemitério ao largo das Aravessas,
que, desgrenhadas, rasgando saias e arrancando cabelos,
gritavam
para que a Virgem Maria velasse por eles,
os seus meninos,
e os trouxesse de volta, sãos e salvos,
no veleiro de torna-viagem. (...)
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Excertos:
In: Luís Graça - Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde, 2005, c. 50 pp. (inédito)
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Nota do editor:
Último poste da série > 6 de abril de 2018 >
Guiné 61/74 - P18491: Manuscrito(s) (Luís Graça) (141): Soneto para ti, Joana, ao km 40 da tua autoestrada da vida