1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2019:
Queridos amigos,
Consta que esta peça literária de Mário Cláudio terá dado polvorosa uns tempos atrás. Acontece que em todas as guerras há manifestações de horror, de práticas homicidas e até da sua exibição, servem para intimidar, de forma exemplar, outros desafiantes, revelam igualmente exibicionismo de quem entendeu que a crueldade ilimitada deve aparecer em ecrã gigante. É pesadelo universal, com mentiras de todas as espécies, basta pensar no genocídio arménio, negado pela Turquia, ou nos crimes japoneses, para os quais ainda não se pediu perdão.
O que Mário Cláudio revela aqui é a duplicidade de certo heroísmo, que é galardoado e posto em paralelo com aquele heroísmo de quem deu o peito às balas ou transportou, com destemor, um camarada ferido, no aceso de uma emboscada. O que aqui também se esconjura, estou em crer, é premiar o homicídio como se de heroísmo se tratasse. Impossível reabilitar, na sua plenitude, o heroísmo praticado nas nossas últimas guerras em África, sem trazer à colação os quadros de horror, que os houve.
O que me é dado ler, na documentação que consulto, do que se viveu a partir do segundo semestre de 1962, na Guiné, as monstruosidades praticadas de parte a parte precisam de ser reparadas, mostradas em ambas as histórias nacionais, para que haja entendimento que propicie a reconciliação e a retoma fraterna, sem cadáveres no armário, entre dois povos que se devem reconciliar falando a verdade e perdoarem-se.
Um abraço do
Mário
Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária:
Um notável escritor que é nosso camarada da Guiné (4)
Beja Santos
“O Prazer da Leitura”, foi editado em 2008 pela Teorema e pela FNAC, uma obra coletiva, além de Mário Cláudio participaram Francisco José Viegas, João Aguiar, Lídia Jorge, Luísa Costa Gomes, Manuel Jorge Marmelo, Maria Teresa Horta, Filipa Melo, Nuno Júdice e Rui Zink.
Pelo que me é dado saber, foi a primeira digressão de Mário Cláudio pelos teatros da guerra, escolheu o território do horror, da truculência, do poder arbitrário de despedaçar vidas. Não é terreno virgem. Para quem viu o filme
“Apocalypse Now”, realizado por Francis Ford Coppola, nele surge um herói sanguinário, de que as Forças Armadas norte-americanas se querem libertar, magistralmente desempenhado por Marlon Brando. Acontece que a trama da história tem por detrás uma obra-prima de Joseph Conrad,
“O Coração das Trevas”.
Mário Cláudio não escolhe a Guiné, fala em embondeiros, a Guiné tem algo de similar, são os poilões. O seu conto intitula-se
“Para o Livro de Ouro do Capitão Garcez”, é um jogo entre o lugar e o tempo, um jogo entre o surreal, pois o escritor apresenta uma grande bandeja de cabeça de guerrilheiros ao Capitão Garcez, salta-se desse lugar para a visita a um bancário aposentado, ele conversa com o escritor, irá falar do Capitão Garcez, mostra-lhe lembranças, estão numa caixa de cartão, são fotografias de várias dimensões, o Capitão Garcez é facilmente identificável pelas orelhas de abano, de calções de caqui, entre dois camaradas. Garcez e o entrevistado estão na mesma fotografia. Garcez teve a projeção de um herói, as suas façanhas terão sido descritas em muitos aerogramas, seguramente que muitos desapareceram, é bem difusa a recordação deste herói tenebroso.
E Mário Cláudio escreve:
“Continuo a observar a foto dos idos da campanha, não tanto porque dela espere obter mais do que aquilo que deduzi já, o apagado fácies do Capitão Garcez, alferes na altura, debaixo do cabelo liso e ruço claro, e na palidez que o distingue dos companheiros. Vou meditando no que o meu informador depreende do jogo fisionómico que lhe proponho, tão relevante para ele como o dele para mim, e de idêntica forma à mercê de suspeitas e traições. Apercebe-se da curiosidade com que lhe persigo o desvio da vista, e da minúcia com que lhe inventario os bibelots expostos na biblioteca, babushkas alinhadas em progressão aritmética, e miniaturas de teares e caldeiras, óbvios momentos das peregrinações a Leste, promovidas pelo partido da esquerda bem-comportada de que foi militante. E não deixará de reparar ainda no modo como lhe expio o gesto de selecção dos clichês da caixinha (…). Desde a escuridão para além da vidraça, e o clarão da lâmpada denuncia com acrescida clareza quanto guardamos, ele e eu, nas algibeiras mais secretas das intenções que nos movem”.
E o texto continua:
“A peça televisiva, sobrevivente num preto e branco que as décadas foram zurzindo, oferece a deslocação lenta, um pouco rígida, do Capitão Garcez, subindo os degraus da tribuna no Terreiro do Paço, erguida para as comemorações do 10 de Junho. Transporta o rosto anódino de sempre, indeciso entre a melancolia e a austeridade, o que redunda na absoluta ausência de emoções. Avança para o Presidente do Conselho que lhe impõe a Torre e Espada, e que o abraça com a finura sinuosa de quem restringiu a paixão a um cálice, um cálice apenas, de porto tawny”.
Quem foi entrevistar é o autor e o que ele regista daqueles clichês é a dor de quem perdeu gente amada, é um espetáculo de sangue que se derramou com muita gente degolada e muitos corpos estraçalhados. No jogo do tempo e do lugar, o Capitão Garcez presta a justificação de que os atos praticados decorriam da guerra, se acaso celebrou a morte, não tem contas a prestar nem ao autor nem a qualquer cobardolas de merda. Prossegue esta marcha labiríntica entre o lugar e o tempo, alguém que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas mandou ao autor uma mensagem sobre o mito, ele era detestado, toda a gente fugia a confraternizar com aquele militar de gestos homicidas, as imagens que ficaram das cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, eram um aviso de solene advertência aos rebeldes de que não eram menos mortais do que aqueles que os combatiam.
O autor está agora no seu espaço, escrevinha, enfrentou o rosto do Capitão Garcez, apresenta-se restituído à amenidade do seu lugar, e disso nos dá conta:
“Junto a mim pousa a grande jarra de gerberas, arauta da Primavera que desponta, a projetar aquele macerado amarelo, tão caraterístico dos que retornam dos trópicos. A verdade é que, há muito, muito tempo, me não assalta o organismo de pretérito miliciano essa coloração dos surtos palúdicos, precipitando-me em convulsos pesadelos, atrelados a outros experimentados já. Serenamente afastaram-se de mim aqueles transes inexplicáveis, vividos por um soldado sonâmbulo que devagar conduz o Unimog através da povoação em labaredas, cruzada pelo balido das cabras espavoridas, e pelo guincho das fêmeas e crianças que ardem numa habitação esbarrondada. Apagado pela ventania que espanta o incêndio, o rosto do Capitão cristaliza em mim numa neutralidade de cera, de órbitas vazadas, tão frágil e tão efémero como a paisagem que o circunda”.
E neste jogo entre o real e o surreal, tudo culmina com o desaparecimento do vetusto Capitão Garcez,
“levanta-se da poltrona, e as imensas asas negras, rompendo-lhe das espáduas, batem numa vibração, desplumam-se na treva, e desfazem-se em pó”.
A literatura tem fartas apresentações do horror que a guerra permite, há a sua banalidade, como Curzio Malaparte descreve na sua obra-prima,
“Kaputt”, caso de um passeio noturno de Hans Frank, o Governador da Polónia nomeado por Hitler, num passeio a um gueto, a comitiva anda divertida com os tiros dados às crianças pelas forças de vigilância. E há a investigação histórica, como é o caso de
“O massacre português de Wiriamu: Moçambique, 1972”, de Mustafah Dhada, acaba-se com a mentira montada no final do Estado Novo de que nada tinha acontecido, ouve-se o depoimento compungido de um antigo oficial dos Comandos que descreve o morticínio.
Não vale a pena os escrivães da puridade virem bater com a mão no peito, encolerizados por se desvelarem horrores da guerra, que os houve, do mesmo modo que houve atos de bravura daqueles que combateram heroicamente, e que tiveram de matar sem praticar o horror e muito menos de o exibir, como comprovam muitas fotografias que para aí circulam.
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Nota do editor
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