O músico, saxofonista, compositor e letrista, o lourinhanense Diogo Picão |
Muitos de nós gostariam de ver os nossos filhos e sobrinhos escreverem textos com a qualidade e sobretudo a sensibilidade, a ternura e a empatia deste texto.
Claro que não é um jovem qualquer. É um talentoso e promissor músico, saxofonista, compositor e letrista, o lourinhanse Diogo Picão, que lançou, em 2018, o seu álbum de estreia, "Cidade de Saloia".
Trocou há anos a Lourinhã pela cidade grande e pelo mundo, mas não esquece as suas raízes telúricas e afetivas. Um grande poeta, músico, cantor, saxofonista. É autor de bem humoradas letras, ora irónicas, ora divertidas, ora sarcásticas. Vivendo apenas da música, foi, entretanto, um dos milhares de artistas que foram apanhados, sem rede, pela crise provocada pela pandemia de Covid-19, com concertos e outros eventos desmarcados...
Capa do primeior álbum do Diogo Picão, "Cidade saloia" (2018) |
Tem dois tios que foram à guerra do ultramar ou guerra colonial, há muito esquecida (, ou cuja memória é hoje recalcada pelos portugueses...): um, tio materno, foi alferes paraquedista, em Angola (BCP 21, 1970/72), o outro, tio paterno, foi "infante", furriel miliciano de infantariam no leste da Guiné, numa altura em que o leste esteve a ferro e fogo, em especial a zona fronteiriça em 1973/74 (CCAÇ 3545 / BCC 3883, Canquelifá, 1972/74).
O primeiro, Jaime Bonifácio Marques da Silva, fala da guerra, e é membro da nossa Tabanca Grande, o outro nunca fala da guerra, nem quer que lhe falem da guerra.
O Diogo merece a nossa atenção, apreço e aplauso... Vejam só este precioso pedaço de prosa: "Com ele [, o meu tio,] percebi desde criança que as guerras não são como nos filmes, mesmo que sejam realistas e bem-feitos, com fotografia impecável e correção de cor. Na guerra real ao que parece as pessoas vão morrendo devagar, repetidamente e durante muito tempo."
2. Blogue do Diogo Picão > julho 30, 2020 > A guerra do meu tio (**)
O meu tio fala muito da guerra. Especialmente às refeições, mas qualquer hora é apropriada.
O primo Arsénio é a pessoa que mais demora a morrer. Morreu muito novo mas de alguma maneira estranha para mim ele continua vivo. Vai morrendo pouco a pouco e nunca deixa de estar presente nas ocasiões especiais da família. Sempre se sentou à mesa nos natais, nas sardinhadas de Verão, nas festas de aniversário, tanto dos adultos como da criançada que hoje já foi substituída pela nova geração.
Os combatentes que pisam o terreno são sempre carne para canhão, mesmo aqueles que concordam com a guerra em que foram alistados. As decisões são a maior parte delas assinadas em secretárias sem lama, em salas com retratos pomposos e imaculados e com palavras que os soldados não usam no quotidiano. E quando as altas patentes se reformam, e as ideias que defendiam ficam velhas, e às vezes vergonhosas, os soldados continuam a acordar à noite emboscados por um pesadelo sem pernas.
O meu tio fala muito da guerra. Ainda bem, fico mais tranquilo. Imaginem quem guardou aquelas explosões e aquele mato, aquelas entranhas todas dentro do peito. O meu outro tio nunca me falou da guerra mas sei que alguma coisa também morre dentro dele todas as noites.
[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor de Piche > Canquelifá > CCAÇ 3545 (Canquelifá e Piche, 1972/74) > c. 18-31 de Março de 1974 > A paisagem desoladora da tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas... Foto, de autor desconhecido, do álbum do Jacinto Cristina (Sold At Inf, CCAÇ 3546, 1972/74)
Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(*) Vd. postes de:
5 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20124: Os nossos seres, saberes e lazeres (352): A festa da Atalaia, Lourinhã: oito dias pantagruélicos porque aqui o marisco é rei... Na festa da Atalaia, alarga-se o cinto e aperta-se a saia... (Luís Graça)
(**) Último poste da série > 9 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21058: Blogues da nossa blogosfera (132): A Tabanca do Centro publica uma preciosa carta do Joaquim Pinto Carvalho, ex-alf mil da CCAÇ 6 (Bedanda, 1972/73), sobre o resgaste do ten pilav Miguel Pessoa, em 26 de março de 1973, por um grupo de tropas paraquedistas da CCP 123 / BCP 12 e pelo grupo do Marcelino da Mata
O Diogo merece a nossa atenção, apreço e aplauso... Vejam só este precioso pedaço de prosa: "Com ele [, o meu tio,] percebi desde criança que as guerras não são como nos filmes, mesmo que sejam realistas e bem-feitos, com fotografia impecável e correção de cor. Na guerra real ao que parece as pessoas vão morrendo devagar, repetidamente e durante muito tempo."
2. Blogue do Diogo Picão > julho 30, 2020 > A guerra do meu tio (**)
O meu tio fala muito da guerra. Especialmente às refeições, mas qualquer hora é apropriada.
Com ele percebi desde criança que as guerras não são como nos filmes, mesmo que sejam realistas e bem-feitos, com fotografia impecável e correção de cor.
Na guerra real ao que parece as pessoas vão morrendo devagar, repetidamente e durante muito tempo. A mina que pisaram é a mesma mas morrem primeiro durante as entradas, às vezes ainda estão vivas durante o prato principal, para logo a seguir, na sobremesa, morrerem outra vez. Noutras alturas deixam de respirar nos pesadelos repetidos.
Ao que parece a guerra não é uma coisa que acabe para quem lá esteve, a guerra é mais um estado de espírito, uma memória, quase um membro a mais no corpo, um terceiro braço cheio de cortes e nódoas negras no qual se vai trocando o penso todos os dias do resto da vida.
Todos sabemos como são as ideias, elas vão trotando de um lado para o outro do cérebro e é como se estivessem todas ligadas e fossem muito íntimas umas das outras, quase amantes, mesmo quando nunca se conheceram.
Qualquer assunto leva o meu tio a falar sobre a guerra: se alguém foi à casa de banho durante a refeição talvez se lembre daquele soldado que foi verter águas sem pedir autorização e acompanhamento armado, e acabou emboscado com um tiro certeiro; se alguém enche o copo de vinho recorda-se do quanto se bebia depois das operações no mato para que os tiros deixassem de soar na cabeça por umas horas; se alguém pisa num pedaço de queijo que caiu da mesa, ele lembra-se invariavelmente do Arsénio, o primo que pisou uma mina [, em Angola,] e se esvaiu em sangue antes do helicóptero chegar.
O primo Arsénio é a pessoa que mais demora a morrer. Morreu muito novo mas de alguma maneira estranha para mim ele continua vivo. Vai morrendo pouco a pouco e nunca deixa de estar presente nas ocasiões especiais da família. Sempre se sentou à mesa nos natais, nas sardinhadas de Verão, nas festas de aniversário, tanto dos adultos como da criançada que hoje já foi substituída pela nova geração.
Eu nunca o vi presencialmente, a guerra foi antes de eu me lembrar da vida, mas o primo Arsénio para mim tem vinte e poucos anos, é magro e alto como o meu tio, não fala muito mas acena com a cabeça em concordância enquanto ouve as histórias de guerra, come de forma frugal, e falta-lhe alguma parte do corpo que nunca consigo ver qual é. Acredito que uma perna mas a imagem é um pouco baça e às vezes vejo-o a caminhar, então não sei bem.
Também todos sabemos que as memórias são tramadas, se com os vivos de carne e osso já é difícil não os pintar de tantas cores que eles nunca vestiram, quanto mais com os mortos, ou com aqueles que estão sempre a morrer.
A mãe do primo Arsénio, a minha tia-avó Felicidade, nunca me falou dele. Não sei como ele era para ela mas deduzo que o mesmo que muitos filhos para muitas mães: um pedaço grande de tudo. E nesta morte continuada para mim há um facto: os helicópteros atrasam-se sempre. Seja nos incêndios ou a ir buscar o primo Arsénio, nunca estão onde são precisos na hora certa. A tecnologia ainda está obsoleta, os helicópteros chegam sempre quando as chamas já lavram desenfreadas e o primo Arsénio já se esvaiu em sangue.
Outra coisa que creio ter aprendido ao longo dos anos, a ouvir o meu tio sobre tiros, homens fardados e madrinhas de guerra, é que o bem e o mal são conceitos muito vagos. Devemos perdoar quem matou? Devemos respeitar quem morreu? E se quem matou também morreu? E se quem morreu também matou?
Uma guerra parece ser sempre a derrota do diálogo e a vitória da força bruta aliada a interesses mais refinados. E mesmo que historicamente se acredite que uns estão do lado errado e outros do lado certo, se é que alguma vez isso existiu, os soldados de todos os lados estiveram lá a dar o peito às balas e alguns a encherem-se delas.
Muitos contrariados, muitos obrigados, muitos encharcados em propaganda, muitos com fantasias nacionalistas, alguns com sede de sangue. É sempre mais fácil julgar de fora quando tudo já passou e estamos a assistir guerras no conforto do sofá em que os bons e os maus vestem fardas diferentes.
Os combatentes que pisam o terreno são sempre carne para canhão, mesmo aqueles que concordam com a guerra em que foram alistados. As decisões são a maior parte delas assinadas em secretárias sem lama, em salas com retratos pomposos e imaculados e com palavras que os soldados não usam no quotidiano. E quando as altas patentes se reformam, e as ideias que defendiam ficam velhas, e às vezes vergonhosas, os soldados continuam a acordar à noite emboscados por um pesadelo sem pernas.
E por mais que se fale, que se cale, que se beba, que se durma, aqueles que não conseguiram proteger ou que tiveram de matar continuam a morrer. E estão todos reunidos na memória. Inimigos e amigos vivem juntos depois de fecharem os olhos.
O meu tio fala muito da guerra. Ainda bem, fico mais tranquilo. Imaginem quem guardou aquelas explosões e aquele mato, aquelas entranhas todas dentro do peito. O meu outro tio nunca me falou da guerra mas sei que alguma coisa também morre dentro dele todas as noites.
[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor de Piche > Canquelifá > CCAÇ 3545 (Canquelifá e Piche, 1972/74) > c. 18-31 de Março de 1974 > A paisagem desoladora da tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas... Foto, de autor desconhecido, do álbum do Jacinto Cristina (Sold At Inf, CCAÇ 3546, 1972/74)
Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
_____________
Notas do editor:
28 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18366: Agenda cultural (631): Lisboa, Bairro Alto, Teatro do Bairro, hoje, 28, às 21h30: Lançamento do álbum de estreia do músico e compositor lourinhanhense Diogo Picão, "Cidade Saloia"
5 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20124: Os nossos seres, saberes e lazeres (352): A festa da Atalaia, Lourinhã: oito dias pantagruélicos porque aqui o marisco é rei... Na festa da Atalaia, alarga-se o cinto e aperta-se a saia... (Luís Graça)
(**) Último poste da série > 9 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21058: Blogues da nossa blogosfera (132): A Tabanca do Centro publica uma preciosa carta do Joaquim Pinto Carvalho, ex-alf mil da CCAÇ 6 (Bedanda, 1972/73), sobre o resgaste do ten pilav Miguel Pessoa, em 26 de março de 1973, por um grupo de tropas paraquedistas da CCP 123 / BCP 12 e pelo grupo do Marcelino da Mata