domingo, 26 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25564: In Memoriam (503): Lino Bicari (1935-2024) foi a sepultar ontem, no Alvito, Alentejo... "Senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné, e desejo-lhe o descanso eterno" (Arsénio Puim, ex-alf grad capelão, BART 2917, Bambadinca, mai 70/mai71)


Recorte do jornal "Público", de  24 de setembro de 1990... Do Lino Bicari, depois de o entrevistar em Lisboa (onde se fixou em 1990, para uma "última missão"),  disse o jornalista João Paulo Guerra: (...) "Não é um homem desiludido, mas um homem amargo que hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)


1, Mensagem do Arsénio Puim:

Lino e Arsénio, em maio de 2019,  na ilha de
São Miguel, Açores. Um reencontro ao fim de 48 anos.
Conheceram-se em Bafatá, em 1971.
Foto (e legenda): © Arsénio Puim  (2019).
Todos os direitos reservados.
 [Edição e legendagem complementar:
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Data - sábado, 25/05/2024, 22:46 
Assunto - Lino Bicari

Caro amigo Luís

Primeiramente, dou-te a saber - talvez já saibas - que o Lino Bicari faleceu, como já se esperava. Sepultou-se ontem em Alvito, onde tinha residência.

Falei com a Fernanda acerca 
do texto publicado no blogue (*), prontificando-me para lho enviar por email. Ela disse-me que podia ter acesso ao mesmo indo diretamente ao blogue. Missão cumprida, portanto.

Posso também dizer-te que o jornalista  
António Marujo está a preparar 
uma reportagem sobre  o Lino, a publicar muito em breve.

Digo-te que senti a partida deste bom amigo, que encontrei na Guiné. 
E desejo-lhe o descanso eterno. (**)

Um grande abraço. Arsénio Puim

2. O jornalista António Marujo, no jornal diário digital "7Margens" já  deu  a notícia da morte do amigo do Arsénio Puim, nestes termos:

Missionário e médico da guerrilha, padre e professor

António Marujo | 25 Mai 2024


(...) O antigo missionário italiano e depois militante do PAIGC, na Guiné-Bissau, Lino Bicari, morreu na última quinta-feira no Alvito (Alentejo), onde residia desde 1990. Era “um homem bom, simples, de altos ideais humanos e com um currículo rico, corajoso e autêntico”, diz dele o amigo Arsénio Puim, também antigo padre, que o conheceu na Guiné quando foi capelão militar em Bambadinca, no início da década de 1970. Tinha 88 anos.(...)


3. Descobrimos este amigo do nosso Arsénio Puim só em 2018, numa pesquisa pela Net (**). Nunca o conhecemos pessoalmente. Falámos uma vez ao telefone, trocámos alguns mails por causa dos nossos capelães, expulsos do CTIG, o Mário de Oliveira e o Arsénio Puim (de quem ele ficou amigo, na Guiné; nunca conheceu o Mário de Oliveira) .  

Nascido em 1935, na Sicília, viveu  23 anos na Guiné, primeiro, como missionário católico (1967-71)  e depois, mais tarde, a partir de 1973, como militante do PAIGC: era  o único estrangeiro que tinha o estatuto de "combatente da liberdade da Pátria" (sic), mas nunca pegou em armas. Serviu o PAIGC e a Guiné-Bissau nas áreas onde se sentia competente e útil: a educação e a saúde. Radicou-se em Lisboa em 1990. Tinha como "última missão" criar uma espécie de "Casa do Estudante" pós-colonial...

O jornalista João Paulo Guerra fez, na altura, uma nota biográfica deste homem: 

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

"Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) "Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

O Lino Bicari e a Maria Fernanda Dâmaso traduziram do italiano o livro do Salvatore Cammilleri, "A identidade cultural dos balantas" (***). 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25548: Banco do Afeto contra a Solidão (29): Hospitalizado em Beja, o luso-italiano Lino Bicari, de 88 anos, antigo missionário do PIME (Bafatá, 1967-1971), professor do nosso Cherno Baldé, grande amigo e companheiro do nosso capelão Arsénio Puim

(**) Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25424: In Memoriam (503): Agradecimento a René Pélissier (1935-2024) que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador (Mário Beja Santos)

(***) Vd. poste de 19 de outubro de 2018 > 
19 DE OUTUBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P25563: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (19): "O MINITITANIC"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


O MINITITANIC

Quem por ali passe nem repara no MINITITANIC, nem se apercebe da vida que ele foi. Um pequeno barco de quatro ou cinco metros, já gasto, assente na margem lodosa do rio, a um canto de um apodrecido cais, preso não se sabe onde nem a quê, por uma longa corda cheia de nós e de tempo. Um barco sem fé nem esperança, isolado do mundo, afastado de todos os seus irmãos, ancorado na memória, agarrado ao lado esquecido da vida. Há muito parado e imóvel, apenas baloiça levemente à flor da água quando a maré lhe entra sorrateiramente por baixo, afagando o casco de cores já mortas, num beijo de saudade como que a dizer: “Anda, desprende-te, vem comigo até ao infinito.” Um barco muito triste, quando a maré se vai e o deixa de novo pousado na areia negra e suja.

Para quem passa e nele encontra os olhos, o MINITITANIC parece não ser de ninguém, mas tem por dono um velhote de oitenta anos que por ali anda sonhando, desde que se levanta até que se deita, no fim de uma vida passada no mar. Há muito que o vejo por ali, sempre enredado naquele barco. Perdidas as forças, há anos que não vai à pesca, mas todos os dias ali vem, olhando enternecido e cheio de amor para o seu barquinho, companheiro de tantos desafios e angústias, afagando-o, limpando-o das cagadelas das gaivotas, retirando com um balde a água empoçada da chuva, fazendo aqui e ali pequenos arranjos e reparações, e nele dormindo até o pôr do sol, ou mesmo durante a noite, em tempo de verão, embalado certamente pelo longo sonho de que um dia, em maré bem cheia, ele o levará, uma vez mais, bem longe, para onde sempre viveu e onde vive, no misterioso silêncio do fundo do mar, o seu pai, o GRANDE TITANIC.

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Nota do editor

Último post da série de 19 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25540: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (18): "Mas a senhora, quem é?"

Guiné 61/74 - P25562: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte IV: um encontro, privado, com Ramos Horta, colega de escola do Gaspar Sobral


 Retrato oficial do atual presidente da República Democrática de Timor Leste, José Ramos-Horta (n. 1949): Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia...)

Tem uma págna oficial na Net, em inglês: https://ramoshorta.com/ (Presidente de Timor Leste, Prémio Nobel da Paz em 1996, Construtor da Democracia). Foi também diplomata: conhece a Guiné-Bissau (ver aqui a entrevista que deu à Rádio ONU, quando deixou o cargo de enviado especial do secretário-geral da ONU na Guiné-Bissau em 29 de junho de 2014: parte I e parte II)



1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (de 5 de maio a 7 de julho de 2016) (*).


O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural da Malcata,  Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em li ha reta). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.

A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018, a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo).

A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, foi exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal. Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. Acompanhamos também o dia a dia desta família, que vive no bairro Ailoc Laran, e que durante a ocupação da indonésia viu a sua casa incendiada, tendo-se refugiado nas montanhas como tantos outros timorenses.

Dessas crónicas de 2016, sob a forma de diário, decidimos publicar uma boa parte dos apontamentos, dado o interesse documental que nos parece ter para os nossos leitores que, tal como nós, ainda sabem pouco da história, da geografia, da cultura  e dos usos e costumes  dos nossos amigos e irmãos timorenses. Para além da grande generosidade humana e do talento literário do autor, são crónicas com "cor, sabor e humor", que acrescentam algo mais sobre a sociedade timorense de ontem e de hoje, incluindo pequenas histórias de vida.


Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte IV:   um encontro, privado,  com Ramos-Orta  

por Rui Chamusco (*)



Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra.
Foto: LG (2017).

(Continuação)



1 de junho de 2016, quarta feira– Dia Mundial da Criança

Quase não me dava conta da efeméride, caso não fosse a Adobe (sobrinha do Gaspar, filha do Estáquio e da Aurora) a lembrar-me quando chegou da escola.

Com tantas crianças à minha volta, imediatamente dou comigo a pensar nas crianças de todo o mundo e particularmente destas crianças que tanto necessitam do nosso apoio para poderem crescer em estatura, sabedoria e graça.

Penso também nas crianças de todo o mundo, particularmente nos países super desenvolvidos, que apesar de terem tudo o que 
precisam, vivem infelizes e sempre a exigirem 
coisas demais. Nada as satisfaz, e por isso 
são birrentas, agressivas, mandonas, difíceis 
de contentar e de educar. (...)

2 de junho de 2016, quinta feira – Contagem decrescente

Daqui a um mês será o regresso a Portugal. Os dias vão passando e a nossa missão vai sendo cumprida. Da minha parte está quase tudo resolvido. Por isso posso partir em paz. Da parte do Gaspar muito falta ainda fazer: entrevistas, contatos, mais isto, mais aquilo. (...)

Quanto a mim, gostava de ir visitar o meu primo Quim, que está na Austrália, mas as complicações de viagens estão a desmotivar-me. Tenho de admitir que os preços dos voos são um exagero, propriedade de gente rica. Neste momento em que precisamos do dinheiro como de pão para a boca, devido aos projetos em curso, não me sinto à vontade para gastar tantos dólares em viagens. Será mais prático e económico viajar diretamente de Lisboa para Melbourne que de Dili para Melbourne. A não ser que mude alguma coisa bem me parece que a visita ao Quim ficará para outra vez.

Entretanto, vamos andando na implantação da escola e no programa de apadrinhamento que são neste momento ações mais importantes. Desculpa, Quim!...

Dia 3 de junho de 2016, sexta feira - Preparando a viagem de regresso

Até parece que estou com pressa. Estes sentimentos contraditórios de querer estar aonde não estamos corroem o corpo e a mente. Será a saudade, sentimento tão português?... Mas não. Como cantava António Variações, “ eu só quero estar… aonde eu estou.” Ou então como diz o povo: “Quem está mal que se mude”.

Então porquê todo este frenesim com a viagem de regresso? Ora o nosso amigo Gaspar decidiu alterar os seus planos. Tem a viagem de regresso marcada para fins de setembro e agora quer antecipá-la para princípios de julho, aquando da minha marcação. E vai daí “telefona à tua sobrinha para proceder à alteração”. Azar! Não há disponibilidade para o mesmo voo nem para o mesmo dia. De modo que os amigos terão que viajar separados, a não ser que algo aconteça em contrário.

5 de junho de 2016, domingo - Esta salutar promiscuidade

Quem pensar que já viu tudo no caminho do progresso e que voltar às origens é um atraso está completamente enganado. Aqui, em Ailok Laran, tudo é diferente. A natureza é maestra e tudo dirige em harmonia perfeita, com acordes dissonantes às vezes, num entendimento permanente entre pessoas, animais, aves, plantas, etc…

Todos são livres de circularem por onde lhes apetecer. A privacidade não é coisa que se preze. Portanto não é de estranhar que galinhas, pardais, lagartixas (teque-teque) ou outros seres em liberdade te visitem em qualquer parte onde estiveres, e livremente te saúdem (outros dirão, incomodem) sem qualquer protocolo. O acesso aos espaços é comum, as crianças em grande número, como pardais à solta, são presença constante, o encontro com familiares e vizinhos é natural. Quem chega é da casa, e é convidado natural para participar na ação presente: conversar, cantar, comer…e outras.

Para o conceito de um europeu evoluído é difícil entender e conviver com a falta de comodidades e as privações deste povo. Mas há valores humanos que esta gente ainda tem que superam todas as carências. Tanto me dá que digam que é uma sociedade que reporta aos anos cinquenta como que rejeitem a lição que este povo nos presenteia. A verdade é que os seus valores são intemporais, ficam bem em qualquer sociedade humana a caminho do desenvolvimento…

Crenças e rituais

Da repente, enquanto estávamos a jantar, mais ou menos pelas 20h30, começou a ouvir-se um toque contínuo de metal que mais parecia uma jante de um carro ou um prato imitando um gongo. Claro que o meu ouvido absoluto captou logo essas ondas sonoras e, perante a pergunta o que é isto, veio de imediato a resposta do Eustáquio: 

"Esta noite com a lua em quarto crescente está a decorrer um eclipse parcial. Quando algo de estranho acontece ()tremor de terra, eclipse ou outros fenómenos naturais) é de tradição tocar, fazer barulho com estes objetos sonoros para avisar Deus de que ainda há homens, gente, cá em baixo, em Timor."

Quem puder entender que entenda!...

O Gaspar com a corda toda

Já não é a primeira vez que me refiro ao Gaspar como pessoa eloquente que usa e abusa da palavra sempre que a oportunidade lhe surja. Com ou não sentido, ele diz que a bandeira de Timor entre os símbolos que ostenta (martelo, arma,….) tem também uma caneta.

Portanto sente-se legitimado para utilizar a palavra escrita e oral como meio de combate e luta pelo seu povo. Até aqui tudo bem. O problema é que quando ele liga o motor, nunca mais se cala. Fala, fala, fala que se farta, com registo de voz grave, incomodativo para quem não quer ouvir mais ou pretende descansar. As suas pilhas “duracel” são de uma validade interminável. (...)

Esta é uma descrição de um amigo e companheiro que, mais que uma ofensa, é um ato de carinho e de estima. Longe de mim denegrir ou difamar seja quem for, muito menos o Gaspar que é uma pessoa muito culta e com um gabarito moral intocável. Umas pancadinhas em tempo certo só fazem bem.

8 de junho de 2016, quarta feira - Emoções fortes


A tarde de hoje foi carregada de fortes emoções. O Museu da Resistência em Dili foi a primeira visita. Inaugurado em 2012, é uma visita obrigatória para quem queira inteirar-se e compreender a história recente deste povo.

Desde a ocupação indonésia em 1975, muito sofreu esta gente. O suporte multimédia do tempo da guerrilha mostra-nos em pormenor as lutas, os ataque, os mortos, os feridos, os suores e os cansaços de um punhado de heróis que, a troco de uma nação independente, arriscaram ou deram as suas vidas abnegadamente. Dizem que em todo este processo de independência morreram mais de 200 mil pessoas.

Neste ambiente carregado de emoções, um episódio para quebrar a “rigidez” de um museu: no átrio, um bando de crianças rodeavam um segurança que, num gesto altruísta, ajudava os pequenos a varejar com um cana os tamarinhos (frutos) da grande árvore que ali mora. Coisas de Timor: o grande e o pequeno, a criança e o adulto, o forte e o fraco, o simples e o complexo… uma amálgama de atitudes e de sentimentos que coexistem em perpétuo devir ou movimento. E assim se vai edificando a nação.

Visita à igreja de Motael

Já por diversas vezes me perguntaram se já tinha visitado a igreja de Motael. Para além de ser um lugar lindíssimo no seguimento da baía de Dili, só hoje me dei conta do valor simbólico que este templo representa no processo da resistência e da independência.

Foi aqui que o jovem Sebastião Gomes foi fuzilado pela tropa indonésia, quando, fugindo da perseguição, tentava esconder-se junto ao altar lateral direito. Confesso que senti uma forte emoção, quase chorei, ao pisar o mesmo chão. O Sebastião foi sepultado no cemitério de Santa Cruz e, uma semana depois, foi organizada uma marcha (manifestação) com deposição de flores na campa do jovem abatido.

O pior estava para acontecer. A tropa indonésia seguiu-lhes os movimentos até que, num ato de brutalidade, disparou inclemente sobre aquela multidão presente no cemitério. Mais de 200 mortos, mais de 200 feridos, mais de 200 desaparecidos, resultado do massacre de Santa Cruz.

Gostemos ou não de Timor, tudo isto nos emociona profundamente. Mas, como diz o provérbio, “por cada flor estrangulada há milhões de flores que florescem “. Timor é um país em vias de desenvolvimento mas com um futuro muito promissor, sem esquecer os seus heróis.

Visita ao sr. Alexandre e família

O senhor Alexandre é o padrinho de batismo do Gaspar, que há dezasseis anos não se viam. De modo que se justificava plenamente esta visita. A família desfez-se em amabilidades não só com o Gaspar mas também com o Eustáquio e comigo, que sou o intruso.

Conversa puxa conversa, sobretudo do eloquente Gaspar, que mais uma vez repete os discursos já ouvidos por mim há não sei quantas vezes. Tudo bem, os outros também precisam de ouvir e de conhecer a sua visão da vida e dos problemas deste mundo. Acabamos por lá jantar, iguarias que ainda nunca tinha provado: sagu (uma espécie de crepes em que a massa provém do miolo do tronco da palmeira), peixe com molho de tamarinho, e outros.

O senhor Alexandre, com 79 anos feitos em maio passado, fez questão que eu soubesse que ele e a família andaram fugidos quase quatro anos nas montanhas enquanto houve a ocupação indonésia. Perdeu dois filhos (machos, como ele diz) e um outro presente completa o relato dizendo que nem chinelos tinham, andaram sempre descalços.

Enfim, as provações e dificuldades estão passadas e vivem neste momento bem, como eu pude testemunhar. Pelo andar da conversa vim a saber que Berta, filha que esteve a estudar Geologia em Coimbra, já tinha estado em Malcata, Sabugal, por duas vezes com a família Gaspar. Berta casou ainda há pouco tempo com um ex-seminarista com o qual travei animada conversa uma vez que sentia alguma afinidade devido ao meu passado e presente. Combinámos encontrar-nos para lhe dar umas lições de acordeão. Que aproveite até 7 de julho…

À família do senhor Alexandre um grande obrigado pela forma como me fizeram sentir: à vontade, como se fosse da casa.



Dia 10 de junho de 2016, sexta fdeira - Dia da portugalidade

Hoje é dia de Portugal, de Luís de Camões, da portugalidade, dos que vivem em territóriportuguês ou na diáspora. Esta é a quarta vez que passo esta efeméride fora do país; em Timor e, para minha surpresa, parece-me que é a vez que mais profundamente esta celebração me atinge, mesmo sem celebrações oficiais, condecorações, desfiles e outras coisas mais.

Logo de manhã, no terreiro da cozinha da casa do Eustáquio, com toda a simplicidade foi cantado o hino como se se tratasse de um grupo coral bem afinado. Não admira pois esta família é toda musical.

Rui Chamusco, o homem dos sete
instrumentos, aqui tocador de acordeão.
Lourinhã (2012). Foto do autor.
Logo de tarde vamos ser recebidos pelo ex-presidente da República Ramos Horta, mas sem qualquer formalidade. Depois de conversar com estes amigos que me rodeiam chego à conclusão que este sentimento de ser português está mais arreigado em Timor Lorosae do que em muitas localidades do território continental.

Será que a opção do atual presidente da República com a comunidade portuguesa de França / Paris tem alguma coisa a ver com esta constatação?... “Oh mia pátria si bella é perduta !", onde estão as tuas conquistas?... Nem Camões, nem Fernando Pessoa, nem Agostinho da Silva estarão contentes com esta perda de memória coletiva. É saudade, é sentimento, é nostalgia. É o que quiserem mas, por favor, não deixem morrer Portugal…


Mais uma festa de anos

Desta vez foram os 59 de uma irmã da Aurora, 
a esposa do Eustáquio, em Bébora. Depressa 
a família ficou junta. Ao toque do acordeão foram 
cantados os parabéns, seguindo-se uma fausta refeição onde nem o vinho faltou. O casal que acolheu o festim foi de uma simpatia sem limite, até no esforço de falarem em português. O acordeão entrou nos corações dos presentes que foram ouvindo algumas interpretações de músicas conhecidas ou não. Não me livrei de muitas palmas e, como era o dia de Portugal, até a “Portuguesa” foi tocada e cantada. Mais umas músicas a pedido e o serão acabou por volta das 23.30h.

Registo com muito agrado a ideia e quase pedido de se criar aqui uma escola de acordeão. Nunca se sabe!...

11 de junho de 2016, sábado

(...) Os políticos também mentem

Sem surpresa, não é verdade? Hoje era um dos dias muito esperado pelo Gaspar – o encontro com o seu antigo companheiro Ramos Horta. Até eu estava um pouco entusiasmado. Mais ou menos à hora combinada lá chegamos nós à Casa (quartel) do ex-presidente da República de Timor. Casa bem guardada, com escolta policial, tivemos que ficar um bom quarto de hora à espera que alguém nos chamasse e deixasse entrar. Engano! Chegou um mensageiro a comunicar-nos que o sr. doutor não nos poderia receber por ter uma agenda sobrecarregada.

Mais uma desilusão, inexplicável para quem não está habituado a estas geringonças. Ainda comentei com o Gaspar:” ou tu entendeste mal ou então isto é uma bagunçada”. Disse o homem de recados para apareceremos segunda ou terça que vem. Sem hora marcada, sem dia certo, será que vale mesmo a pena a visita? O Gaspar já anda a dizer que, perante tantos obstáculos que se deparam em obter as entrevistas desejadas, vai desistir das mesmas. Mais, começa a convencer-se de que não é desejado, talvez figura não grata, entre os poderes timorenses. Vou tentar convencê-lo a ir à entrevista…



A estátua de Cristo Rei. Fonte:
com a devida vénia...


Há males que vêm por bem


Para amenizar as contrariedades que surgiram decidimos fazer uma caminhada até ao Cristo ReCristo Rei. Nada menos que subir 570 degraus, mas que compensa o esforço despendido. Paisagens encantadoras, idílicas que se conseguem avistar ao longo de todo o percurso mas sobretudo lá do morro de Cristo Rei: Ataúro, Indonésia, a antiga ilha das Flores que em tempos foi vendida aos holandeses como forma de o Governador fazer face às despesas correntes, uma vez que de Lisboa não chegava a remessa de dinheiro necessário.

Comentava-se que afinal os indonésios ainda fizeram muita coisa durante a invasão: a catedral, o Cristo rei com todo o caminho do calvário ilustrado pelas cenas da via sacra, etc…etc…

O que é estranho é que, sendo a Indonésia um país onde o islamismo é a religião predominante, tenha presenteado os timorenses que são católicos com obras manifestamente de cariz cristológico. Também há quem diga que isto terá sido uma jogada política para atrair a simpatia pelos indonésios mas que a jogada saiu-lhes ao contrário.

Muitas coisas boas fizeram e deixaram em Timor, mas cometeram um erro muito grave, a saber: a utilização da violência e os mortos que causaram durante a invasão e a permanência. Recorde-se que houve mais de 200 mil mortos, feridos e fugitivos sem conta.

Enfim, só Deus conhece os seus desígnios… mas bem melhor seria que não houvesse vidas perdidas e que os benfeitores deste povo contribuíssem desinteressadamente no bem e no progresso deste país.

A cereja no topo do bolo

Já a noite era entrada quando, ao jantar, o Eustáquio se sai com esta: “Ti Rui, faz uma casa cá que eu dou o terreno, em Liquiçá”.

Confesso que me deixou baralhado mas dou-me conta do grande desejo desta gente que eu fique por cá. Já dizem que eu não sou malaio (estrangeiro) mas timorense. Estão com receio que eu parta para Portugal no dia 7 de julho e que não volte mais. Sofrem já por antecipação, pois dizem que as saudades vão ser muitas.

Por mais que agente lhes diga que havemos de voltar para a inauguração da escola em Boebau, parece-me que não acreditam. Isto é mesmo assim. Quando abnegadamente nos entregamos a uma causa, encarnando a vida dos pobres, corremos o risco de sermos como eles fazendo parte das suas vidas. Como diz a canção do Ricardo Canta la Piedra, “no queremos a un hombre pregonero; queremos a un hombre que se embarre com nosotros, que viva com nosotros, que beba con nosotros el vino en las tabernas. Los otros no interessan, los otros no interessan…”

Pela parte que me toca só tenho a agradecer estes gestos de estima e de aceitação.

Ailok Laran - abundância de Ailok

Este é o nome da aldeia onde estamos sediados, povoação dos arredores de Dili, no complexo do Bairro Pité. Foi das zonas mais martirizadas pela invasão indonésia. Muitos mortos, feridos, fugitivos, desaparecidos. A maioria das casas foram arrasadas e o seu recheio queimado. Ainda hoje se encontram habitações com esses sinais. A casa dos Sobral também foi arrasada e queimada. Esta habitação foi a primeira a ser construída em Ailok Laran, por isso é um ícone para a família. O Eustáquio procedeu à reparação, que ainda não está concluída por falta de verbas, fazendo assim jus à memória coletiva.

Mas porquê o nome Ailok Laran? Ailok é o nome de uma árvore abundante nesta região e que por isso caracterizou e deu o nome à aldeia. Ailok + Laran que em tétum quer dizer muito.

Ora vim a dar-me conta que eu já conhecia esta árvore em Alter do Chão (e na Lourinhã levada por mim).  Perante esta constatação, e tendo-a eu comunicado ao Eustáquio e ao Gaspar, logo o sr. doutor de leis quis desmentir-me dizendo que era impossível. Perante tanta prosápia propus-lhe uma aposta, ao que ele imediatamente acedeu. Pronto, fica assim: quem perder, paga o almoço ou o jantar. Aguardemos portanto pelas provas, mas a aposta já está ganha para o meu lado.

Em prol dos benefícios para a saúde a casca do Ailok é utilizada em chá ou em masque para dores intestinais (dores de barriga) contra a diarreia. Verifiquei com o amigo Eustáquio que é verdade.

Usos e costumes - influência da religião católica

Timor é um país fortemente influenciado pela religião católica, fruto do longo período de colonização mas sobretudo da presença e testemunho da igreja católica em instituições de ensino e das igrejas espalhadas por todo o lado.

Os timorenses são por essência seres religiosos que, sem vergonha nem complexos, expressam a sua fé naquilo em que acreditam. Quase em todas as casas o “ oratório “ ocupa um lugar de relevo. Imagens de santos, velas, flores preenchem cantos e espaços iluminados todos os dias ao cair da noite.

Uma religião repleta de ritos muito ligados à tradição, que lhe dão um colorido característico, mas devidamente “agiornada” pelos agentes da pastoral eclesial. O respeito e veneração pelo clero é notável. Clero, nobreza e povo são elementos fundamentais a ter em conta no processo de desenvolvimento em curso.

A par de toda esta organização, o povo vai espontaneamente manifestando atos de fé. Quase todos os dias deparamos com ruas enfeitadas (marcadas) indicando que vai haver uma vigília de oração, que dura toda a noite, em que se reza e se canta, se come e bebe, se conversa e se ri. Em maio e outubro é à Senhora do Rosário; no mês de lunho é ao Coração de Jesus. Cada família que o deseje informa a paróquia que atempadamente elabora o calendário das visitas. Ontem, dia 12 de junho, foi mesmo aqui ao lado e tive a oportunidade de ouvir as rezas e cantorias até altas horas da noite.

Mesmo ao lado o sr. Felisberto, homem que já descrevi anteriormente, que não professa religião alguma porque segundo ele o Messias é ele mesmo, teve de aguentar e mais nada. É que aqui ainda não vigora a lei do ruído. Cada um ouve o que quer, como e onde quer. Outros usos, outros costumes…

Dia 13 de junho de 2016, domingo - As árvores morrem de pé!...


Vem este slogan a propósito de uma visita que fizemos ao senhor Silvino que, segundo dizem, é a pessoa mais velha da região. Não sabe quando nasceu mas diz-nos que, quando começou a II Guerra Mndial guerra já tinha 20 anos ou mais. Perguntamos-lhe a idade e ele responde sempre “ tudo acima de 100 “.

Perdeu a conta ao número de netos, bisnetos mas todos sabem que a família é grande. Vive com um neto na sua casa, com dois filhos a morarem nas redondezas. Come bem e dorme pouco, sempre de olho aberto não venha por aí a irmã morte. “omo bem, sinto-me bem, ainda não quero morrer”.

Todos os dias, encostado ao seu cajado, vai até a casa do filho para jantar ( por volta das 18h00). O Ti Silvino tem resistido a tudo ao longo de tantos anos de vida. Não fugiu dos indonésios e, talvez pela sua coragem, a sua casa não foi destruída e queimada. A última prova que teve de superar foi a morte do filho mais velho que, devedores sem escrúpulo, decidiram envenenar, para se livrarem do pagamento das dívidas.

Mas este homem continua com uma enorme vontade de viver, a fazer lembrar a saudosa Palmira Bastos que, também já velhinha, gritava em palco a plenos pulmões: “ As árvores morrem de pé!!!” Obrigado Ti Silvino por nos lembrar que a vida é um dom de Deus e que, por mais anos que a gente viva, nunca a devemos descuidar. Obrigado pela oportunidade de o conhecer, de o ouvir e de lhe apertar a mão. Não o irei esquecer…

Dia 14 de junho de 2016, segunda feira - Laços emocionais muito fortes

Com tantos anos de história a criar laços não será de estranhar que o nome de Portugal seja aqui tão venerado. Se não bastassem os nomes e apelidos que encontramos na maioria dos timorenses, existe nos nossos dias uma forte ligação emocional que tem expressão religiosa, cultural e desportiva. Hoje vou falar evidentemente da desportiva, uma vez que, às quatro horas locais, vão transmitir o jogo de Futebol Portugal-Islândia, jogo de estreia de Portugal no campeonato europeu 2016.

Já estávamos previamente avisados das fortes manifestações sempre que há jogos que envolvem Portugal. Em caso de vitória gritam, cantam e até tiros chegam a dar para o ar. Desta vez não se ouviram disparos pois Portugal empatou, mas sempre que o ataque provocava situações de perigo, a gritaria ecoava pele noite a fora.

Que em Portugal, na França, no Brasil ou qualquer outro país onde houver portugueses se sinta esta vibração forte naturalmente compreensível. Mas aqui tão longe, a vinte cinco e tal mil quilómetros de distância, como é possível haver tanta gente sem ligação direta com o nosso país a vibrar desta maneira? Que laços afetivos são estes que mantêm tamanha transcendência? Se ao menos fosse dada alguma correspondência por parte dos poderes governativos de Portugal!... Aí está: nos corações ninguém manda; ou se gosta ou não se gosta. E viva Timor! E viva Portugal!...

Dia 15 de julho de 2016. terça feira - Visita ao Ramos-Horta

Desta foi de vez! À hora marcada, 16 horas, mandaram-nos entrar para o desejado encontro com esta figura pública timorense, que já foi presidente da República, 1º ministro, ministro dos negócios estrangeiros e que até já ganhou o Prémio Nobel da Paz em parceria com o D. Ximenes Belo.

O encontro foi informal e por isso aconteceu de tudo: piadas, perguntas, respostas, pareceres, notícias, revelações – uma hora e meia de conversa que nos permitiu conhecer melhor esta personalidade. Até o corso, animal bem tratado que faz parte dos habitantes desta mansão, se quis associar ao encontro, concretamente estabelecendo uma relação de lambidelas no meu braço esquerdo e procurando festinhas no lombo.

Tudo estava a decorrer pelo melhor até que o espertalhão do Gaspar tirou o seu amigo e companheiro de escola do sério. Então não é que cometeu a asneira de lhe dizer que pretendia fazer um programa com a entrevista que estava a ser gravada na Rádio Coimbra?

Reação imediata: 

“Estão proibidos de utilizar qualquer declaração minha para fins de campanha ou de publicidade. Se acontecer algo diferente, ser-vos-á movido um processo por rutura de confiança. Isto foi uma conversa entre amigos e nada mais. Entendidos?... Queres uma entrevista para a rádio então manda-me as perguntas por email, e marcamos outro encontro para a entrevista.”

De minha parte está tudo bem porque eu não quero imiscuir-me em politiquice. Da parte do Gaspar, duvido. Tem o coração ao pé da boca e não sei se terá juízo suficiente para calar aquilo que ouviu. Ele já é grande o suficiente para provar que é responsável. Mas confesso que tenho algum receio…

Keos – uma das palavras mais ouvidas em Ailok Laran

Keos é a abreviatura de kiosque. Aqui quase todas as casas têm um pequeno negócio de sobrevivência. Cada um vende o que lhe dá mais jeito, sem necessidade de licenças ou pagamento de impostos. 

Na casa da família do Eustáquio há uma panóplia de artigos que se vendem: pulsas, chocolates, leite indonésio empastado, tabaco, etc…etc… Ou seja, durante o dia e à noite, não há horário de abertura ou de encerramento, ouvem-se constantemente crianças e adultos gritando á janela de serviço: “Keos! Keos!”…

E de um a um lá vão sendo atendidos os pedidos por quem está de serviço. Uma animação constante sem necessidade de megafones, que se junta à animação dos vendedores ambulantes que todos os dias percorrem os becos e ruelas cá da aldeia com os pregões e as bandas sonoras a anunciar a sua passagem e os seus produtos. Grão a grão enche a galinha o papo…

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25561: Parabéns a você (2274): Jorge Narciso, ex-1.º Cabo Especialista MMA da FAP (BA 12, Bissalanca, 1969/70)

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Nota do editor

Último post da série de 18 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25537: Parabéns a você (2273): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Gadamael, 1967/68)

sábado, 25 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25560: Os nossos seres, saberes e lazeres (630): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (155): Em dia de muita chuva, a vagabundear pelas imagens que aguardam apeadeiro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Era uma chuva impenitente, deu-me a medorra, resolvi remexer no passado, em objetos inertes que mereciam passar a público, era uma tarde chuvosa que encaminhou para esta partilha de imagens, um trecho de um admirável romance de José Cardoso Pires, uma viagem relâmpago à igreja de Arroios, onde o meu pai foi sacristão, e uma madrinha de registo, conhecida pela Isaura dos caixões, tinha a sua agência funerária mesmo em frente; ao contrário de muitos, acho um templo acolhedor e propício à devoção, mas não escondo que a minha eleição vai para o cruzeiro que nos acolhe no adro; e tinha depois estas peças soltas de leituras e viagens, aproveitei para inserir no blogue a cerimónia da entrega das boinas aos fuzileiros guineenses da DFE 21, estava-se em Bolama e era 27 de maio de 1970; e gostei muito de voltar à igreja de Nossa Senhora da Pena, templo seiscentista que resistiu ao terramoto, ao contrário da capelinha do mesmo nome, onde se misturaram as ossadas de muita gente, incluíndo as de Luís de Camões.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (155):
Em dia de muita chuva, a vagabundear pelas imagens que aguardam apeadeiro


Mário Beja Santos

José Cardoso Pires

Toca o telefone, é um amigo que trabalha numa rádio local, passou-lhe pela cabeça fazer um concurso sobre o mais belo trecho literário que abra um qualquer romance em língua portuguesa, pergunta se tenho uma resposta rápida, respondo que seria uma leviandade não ficar aqui um tempo a pensar sobre um texto que eu pudesse considerar culminante, que responderia dentro de uma hora, como aconteceu. Disse-lhe que adorava os primeiros parágrafos de um dos romances de José Cardoso Pires, Alexandra Alpha, que teve a sua primeira edição em 1987. E falei-lhe dos três primeiros parágrafos iniciais:

“O anjo sobrevoou a cidade às 12.00-12.27 (hora solar). Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins da igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus das praias que contornavam a cidade, percorrendo com a sua sombra.

Foi escrito: a aparição teve lugar ao sétimo dia de um mês sobre todos radioso na linha do zénite, sol a prumo. Exata e inolvidável, exatíssima, pôs em alvoroço as multidões de banhistas que formigavam no areal (aquela era a estação do Sol e da festa do corpo) e suspendeu o trânsito nas avenidas da beira-mar, vogando, vogando sempre.

De súbito imobilizou-se, como que numa hesitação. E nesse instante percebeu-se que as asas rubras se tinham rasgado e que delas se levantavam farrapos como labaredas ao ondular do vento, e logo, veloz, cada vez mais veloz, a aparição alada despenhou-se das alturas celestiais, batida pelo Sol louco do meio-dia, e veio estatelar-se nuns rochedos do litoral conhecidos por Ponta do Arpoador. Um anjo cego, houve quem o declarasse. Outros, os banhistas que o viram a passar a caminho dos rochedos fatais, afirmaram que trazia uns olhos brancos de mensageiro suicida. Olhos brancos?”


Ainda hoje estou para saber o resultado do concurso, mas continuo ufano com a minha escolha, é prosa pirotécnica, digam o que disserem.

Fora ali pertinho comprar uns CDs com música de câmara executada por quartetos célebres nos anos 1960 e 1970. Decidi entrar na igreja de Arroios onde o meu pai foi sacristão e a minha madrinha de registo, ali mesmo em frente, era detentora de uma agência funerária. Este cruzeiro que está agora abrigado no adro da igreja, data de 1517, tem pormenores do tardo-gótico mas é manifestamente renascentista, justificadamente monumento nacional.
Outro pormenor do cruzeiro no adro da igreja de Arroios
É uma madona recente, talvez uma padroeira da comunidade luso-africana
Inaugurada em 1972, talvez pela sua enorme carga de cimento, todo ele à vista, foi criticada pelo seu brutalismo. Encontro-lhe harmonia e uma atmosfera espiritual enraizada. Todas as igrejas inauguradas depois da igreja de Fátima, obra de Pardal Monteiro e vitrais de Almada Negreiros, sofreram contestação, não sei exatamente o que é que os crentes esperam dos novos templos, como se eles não se tivessem de identificar com as correntes estéticas e com a viagem que as ideias fazem pelo mundo fora.
É uma presença obrigatória, Santo António é o santo dos santos, ninguém rivaliza com ele, confesso que a imagem é amorável, o santo é um jovem bonitão e o Menino parece olhá-lo com admiração e apreço. Creio que a imagem é proveniente da velha igreja.
Um dia encontrei esta fotografia num livro dedicado à obra arquitetónica de Luís Vassalo Rosa, foi capitão miliciano e comandou a CART 1661, sediada em Porto Gole, Enxalé e Bissá. Vassalo Rosa, que aqui vemos com o Geba ao fundo, adoeceu gravemente e regressou a Lisboa bastante cedo. Procurei falar com ele, atendeu-me amavelmente, não quis voltar ao passado.
Dera-me naquela tarde para ir visitar os Jardins do Torel, resolvi cirandar pelo Campo dos Mártires da Pátria e ver esta parte da Lisboa medieval como estava a ser recuperada, ao descer a calçada de Santana entrei na igreja de Nossa Senhora da Pena, obra do século XVII que resistiu ao terramoto, ao contrário da capela do mesmo nome, que derrocou, lá se misturaram os ossos de Luís de Camões. Estava numa semi-escuridão mas o seu altar e a sua padroeira resplandeciam.
Há imagens do fotógrafo Alfredo Cunha que têm simultaneamente algo de pungente e terno, será o caso de, no fim do império, quem regressou apressadamente de Angola e Moçambique viveu horas muito amargas, sabe-se lá o que vai na cabeça deste pai e desta filha rodeados dos seus últimos bens que os acompanharam na fuga.
“O essencial destas fotografias ocupa-se das unidades militares que, em abril de 1974, ocuparam as praças e as ruas da Baixa de Lisboa, do Município ao Terreiro do Paço, um dos raros locais ou momentos em que se chegou perto do afrontamento militar violento. Não surge ali glória militar, ferocidade revolucionária ou raiva policial. Parece um encontro, mais do que um confronto. Sabemos que ali se esteve a segundos, metros e gestos de violência sangrenta. Apesar disso, é surpreendente aquela paz, aquela doce serenidade de quem faz um trabalho, de quem executa uma tarefa.” – António Barreto.
Esta fotografia foi-me oferecida pelo Dr. João Loureiro, que passará à História por ter publicado assombrosos livros com bilhetes postais das parcelas do império. Num agradável encontro, ofereceu-me várias das suas recordações, entre elas esta fotografia onde se lê no verso: “Bolama, 27 de maio de 1970, cerimónia da entrega das boinas aos guineenses do DFE 21”. 
Creio que faltava esta imagem no nosso blogue de gente que veio a sofrer muito, anos depois.
Sempre que posso fotografo selos da Guiné onde reencontro seres humanos tão semelhantes àqueles que guardo no coração. Estes selos de 50 centavos do tocador de Korá estão destinados a mestre Braima Galissá, um amigo que exige estar sempre presente, e como tocador, nos lançamentos de livros sobre a Guiné.

Dou como muito proveitoso este meu dia chuvoso que me reteve em meditação pelas imagens, diga-se em abono da verdade, bem desconexas, que aguardavam um acaso para que eu cosesse o puzzle, como aconteceu.

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Nota do editor

Último post da série de 18 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25539: Os nossos seres, saberes e lazeres (629): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (154): Lembranças de Manuel de Brito e da Galeria 111 (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


Lourinhã > Grafito > 24 out 2020 > Uma quadra atribuída a  Fernando Pessoa, num parede de um prédio devoluto já entretanto demolido: "A terra é feita de céu./A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu./Tudo é verdade e caminho".

Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo> Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!

 por Luís Graça (*)


Foi só largos meses depois, na ida à  consulta anual de vigilância a que o doente oncológico fica sujeito, no IPO de Lisboa,  que tu vieste a saber da morte desse teu conhecido... 

Dele não guardavas, para seres sincero, as melhores recordações. Era um tipo de quem sentias pena e asco, ao mesmo tempo (e sem saberes  bem por quê). Tinha sido doente do IPO, tal como tu, antes da pandemia, lá já vão uns bons anos.

Era alguém, um bocado "bronco", que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas, às enfermeiras e às radioterapeutas que “tinha sido pegador de touros e ainda gostava de montar” (a cavalo) !...

Uma dos profissionais do IPO, tua conhecida,  que ainda se lembrava dele, comentou:

− Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no IPO, uma figura do passado, um marialva à moda antiga... Cirandou por cá ainda uns tempos. E acabou até por morrer cá. 

Foi bravo na morte, disseram-te. Tu sempre o achaste, para além dessa faceta de marialva "démodé", um bocado exibicionista e histriónico. Precisava de palco. Mesmo no fim. Mas nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia morrer… Bem pelo contrário. (Afinal, quem sabe onde e quando vai morrer?!)... E tinha-se voluntariado (?) para um ensaio clínico. Não chegaste a saber se fora aceite…

Descobriste que tinham, afinal, tu e ele, em comum um conhecido. Da terra dele. Mas o que mais vos aproximou foi, de facto, o IPO, que frequentaram juntos durante algum tempo. Enfim, encontraram-se ainda algumas vezes, na radioterapia... e no bar.

Abreviando a história:  ele acabou por te confiar umas fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de páginas, talvez perto da centena. Pediu-te um “parecer”. Achava que tu tinhas pinta de crítico literário. Só  por usares óculos e andares sempre com um livro debaixo do braço. No fundo, confiou em ti. Não sabes bem por quê, nunca lhe disseste, de resto,  o que fazias na vida… 

Ele queria saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro. E “ainda em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida que lhe restava…

Os direitos de autor, segundo a sua vontade expressa, seriam entregues à Liga dos Amigos do IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic). E ele era um sedutor e desfazia-se em lisonjas para quem cuidava dele.  Ou lhe dava trela, como era o teu caso.

Comentaste, mais tarde, este caso com um teu amigo psicólogo, psicoterapeuta, com nome na praça, e que te perguntou no fim:

−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da 'fauna humana' ?

Respondeste-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:

−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… Podes pô-lo na gaveta do 'acelera', do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do brigão, do “mau da fita”, do “lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias dele (ou que soubeste dele por um amigo comum)... Histórias que ele provavelmente nunca contaria aos netos (nem deveriam ser  motivo de orgulho para os filhos)...Podia ter sido marialva e pegador de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com princípios, 
com ética, com bom senso e bom gosto…

−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões… Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…

− Predador ?!...

− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamavam (ou ainda chamam) “lobo”, em crioulo, à hiena, um animal desprezível,  fedorento, caçador oportunístico... O que eu acho que é uma ofensa para o pobre lobo, para mim um animal nobre e altamente social…

− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como o lobo em alcateia… Talvez o epíteto seja bem aplicado neste caso… 

E acrescentaste:

− Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários, ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…, que ele acabava de deixar transparecer, nas entrelinhas... Talvez pela compulsão de se mostar subserviente para com os  ricos, fortes e poderosos... e valentaço aos olhos dos mais fracos. Era o fruto de uma época, de um regime...

Foi mais ou menos nestes termos que tu descreveste, numa bela manhã de  sábado, em que se encontararam, tu e o teu amigo "Psi",  por acaso,  numa visita a um exposição temporária na Fundação Calouste Gulbenkian (se bem te recordas, sobre o "Cérebro", em meados de 2019), quem era essa tal “hiena” da tua pequena história… 

Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as francesas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil fratricida, como a dos tempos do Liberalismo, as lutas liberais de 1828-1834, a Maria da Fonte e a Patuleia, em 1846/47, ou ainda do tempo República ou e depois dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…

Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra (uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar", como então se dizia. Deve ter feito o 2º ano, no máximo. Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se facilmente “à porrada” com colegas e professores. Claro, foi expulso, e de algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias, sem pudor nem arrependimento.

Na época mandavam-se estes casos, quem tinha algumas posses, para o Colégio Nun'Álvares, ali perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir e de “fazer dele um homem”… O pai, nortenho, conservador,  tinha o desgosto de ter um filho "corrécio" (sic)... Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos (e carros)  deve ter vindo desses tempos. 

Mas tu sabias pouco do seu passado, baseavas-te no que ele te contara, no seu manuscrito, ou numa ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-te, como as suas alegadas "conquistas amorosas".

Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebeste passou por Cabo Verde e Angola. Nunca te deu pormenores sobre a sua passagem por Angola, já em plena guerra. Sabes, isso, sim,  que aprendeu "uns truques de boxe". Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos (e no pedal: era um "acelera"...).  Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil, com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique da União Nacional, deu-lhe uma mãozinha...

Passou a vender produtos zoofitossanitários e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Os porcos e as galinhas estavam então em explosão demográfica.  Percorria suiniculturas e aviculturas do Oeste. Apresentava-se também como delegado de propaganda médica veterinária... Habituou-se à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas inteiras fora de casa. Não sabes se, à boa maneira dos tradicionais "caixeiros-viajantes", que nessa época ainda calcorreavam a província, chegou a ter duas famílias em dois sítios diferentes. Confirmou-te, isso, sim, que tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic), ao longo do caminho de casa…

Nunca deu para perceber se estavas na presença de um sociopata. Pelo menos,  ele nunca terá chegado a ter problemas com a justiça (paraa além, eventualmente, das multas da Brgada de Trânsito)… Também já o conheceste na fase terminal da sua vida. Mas sabias que ele nunca contaria "a verdade toda"... Sobretudo gostava de ficar "bem na fotografia". Teria alguns traços do sociopata, no mínimo fora um homem violento. E, na verdade, não parecia nutrir sentimentos de compaixão pelos outros.

Contou-te (mas não deixou isso escrito nas suas "memórias") que atropelara mortalmente um “pobre diabo” (sic)... Na Estrada Nacional nº 1, na reta da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"..., apressou-se a acrescentar. Mas nem sequer parou, para prestar socorro à vítima. “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto, curvado, a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe de lado… Ao  princípio, pareceu-lhe até ter sido "um animal, talvez um javali"...  

Provavelmente intranquilo, confirmou pelos jornais, no dia seguinte, a notícia da morte de um homem, naquela noite, àquela hora, e naquela estrada : “Uma chatice..., mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”, comentou ele, com o maior dos desplantes… Sentia-se, afinal,  impune. A polícia nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso terá sido arquivado. Por fim, o  bate-chapas, seu conhecido,  destruiu os eventuais indícios do crime de homício involuntário.

A propósito, o teu amigo "Psi" comentou, "ex-cathedra":

− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável) que faz (ou faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Alguns ficam atormentados. Outros fazem tudo para esquecer. Outros confessam-se ao padre ou ao psicólogo.,,  Para o bem e o mal, a fauna humana é diversa e multicolorida… E adaptativa. Imagina o que seria um mundo de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas voltando ao teu conhecido… Parece-me ter sido um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus… Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música ié-ié…

− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua… 

− Estou a ver… Na província, num certa província, isso ainda é (ou era) notório, tal como nos filmes do velho Faroeste…

− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico” (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. 

De vez em quando, tu apanhavas, nos seus monólogos (era bastante conpulsivo a falar), alguns restos da sua tosca formação político-ideológica. E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apuraste (nem quiseste, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo…

No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E tu nunca o inquiriste sobre isso. Achavas que não tinhas esse direito, para mais numa situação em que a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não te pareceu que tivesse sido um operacional de coisa alguma (do MDLP, por exemplo). Quando  muito terá sido um "peão de brega" nas "touradas desse tempo" em que ele gostava,  isso sim, de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante". 

Com um sorriso amarelo, contou-te, da última vez que o viste (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica oncologista do IPO quem lhe passara a “certidão de óbito antecipada”. (E ele dizia-te isso, com um súbita frieza, sem a mais pequena emoção, o  que te chocou.)

−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. A si e à sua família.  Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou, infelizmente, na próstata… Agora a bexiga, o fígado, o pâncreas… O diagnóstico foi, infelizmente,  tardio. Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a ajuda piscológica. Boa sorte e coragem.

A verdade é que o Jota Jota ter-se-á apagado pouco tempo depois, pelo que tu vieste, 
mais tarde, a saber . Esteve ainda numa unidade cuidados paliativos, com muita morfina em cima daquele corpo que se degradou muito rapidamente…

Mas, muito antes disso, já lhe tinhas devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota, elegante, cortês, até simpática, mas cínica: “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”

Ele escrevia mal,  e com erros de ortografia, mas tu não tinhas coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isso, afinal, a um homem que, pela conversa da sua médica, ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, para mais sabendo que ele era um narcisista ?!…

Não o desencorajaste, acabaste por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais e cronológicos... Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas… 

E depois conviria ainda  saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante, encontrar um editor… E restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. 
Mas, que, não senhor,  não devia de desistir, escrever só lhe podia continuar a fazer bem, blá, blá, etc., etc.

Tu fazias questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era, de resto, uns largos anos mais velho do que tu. E havia um lado da sua humanidade que te causava asco...

Claro, nunca te chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, algo megalómano e mitómano, do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira, ao que tu sabias, de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheceste, a não ser de fotografia: teria idade para ser filha dele. (Confessou-te que sempre tivera atração pelas raparigas mais novas.)

Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo divorciado, o Jota Jota era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado, casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava… quando ainda tinha forças para tal… Mas nos últimos meses a sua decadência física fora galopante.

Às tantas tiveste pena daquele teu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, a começar por jovens mulheres que ele seduzira, e que era incapaz de autocrítica, compaixão e arrependimento…

O mais patético foi vê-lo, poucos meses afinal antes de morrer, contar-te, sentado num dos bancos do pequeno espaço ajardinado que existe no IPO, frente ao edifício principal, que aquela devia ser a sua “última visita à Santa Casa” (sic), como ele lhe chamava, ao hospital.

Aguardava  pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa. Os dois faziam horas. Tu ias adiando o clique de telemóvel para a tua boleia. Talvez por não quereres perder o final daquela história de um homem a lutar contra o tempo e contra a morte. 

Não sabes se não ficaste ali apenas por caridade (a palavra repugnava-te). Ou por compaixão… Ou solidariedade. Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo tu não querias desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em ti, que só te conhecia do IPO… (Como costumavas dizer, nesse dia fizeste a tua boa ação de escoteiro.)

Já antes te confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:

− VIP!... Um doente VIP!... Com tratamento VIP!

Nunca tinhas ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias, gente de todas as classes sociais, género e idade...

− Tratamento VIP ? – interpelaste tu, para logo a seguir acrescentar:

− Mas é um direito, que o meu amigo J... tem, o direito à saúde, aos melhores cuidados de saúde possíveis,  um direito consagrado na Constituição… Há quarenta anos atrás já estávamos os dois na quinta das tabuletas.

Não sabes se ele terá entendido  a tua observação, tanto mais que ele não deveria conhecer, pelo que tu deduzias, os princípios em que se  apoiava a criação do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebeste onde ele queria chegar: de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem te explicar como é que ele teria apurado esse valor, absolutamente exorbitante no seu caso).

− Dava para comprar um Ferrari ! – asseverava ele, quase orgulhoso.
 
Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial fanfarronice, garantia-te que a “menina da farmácia” (sic) já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:

− Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.

E seguia-se a justificação:

− A gente gasta um milhão de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…

E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço no último espetáculo  do circo que, no dia seguinte, vai ser desmontado, com a trupe a abalar para outra terra...  

Ao mesmo tempo, ele provocava-te compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…, "quanto mais caros melhores!"), era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo, afinal, de certos ricos e poderosos com quem ele se gabava de ter privado e com quem, afinal,  se identificara "nos bons velhos tempos"...

Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista, por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado, ou melhor aos contribuintes.

Tu duvidavas que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro”, por detrás do seu guiché, lhe tenha dito, textualmente, essas palavras... E muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica oncologista a dar-lhe essa informação, embora muito por alto e em tom de brincadeira. 

Logo que a ambulância partiu com o teu companheiro de infortúnio, tiveste o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltarias a ver. E, confessaste, com algum alívio… A sua história acabrunhava-te. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele. Estaria talvez já em adiantada fase do seu processo de luto, o da resignação, quando o homem que sabe que vai morrer aceita a fataçidade e desiste de lutar...

Recordas-te ainda de, logo no princípio da ida ao IPO, ele te contar-te a primeira vez que teve de ir a um urologista:

– Sou um maricas, não posso ver sangue! ( Refiria-se ao sangue dele, entenda-se!)

Andara a “mijar sangue” (sic), e a levantar-se amiudadas vezes, de noite, para ir à casa de banho. Até pensou que tinha apanhado algum “esquentamento” (sic). Foi protelando a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, que o deixou prostrado,  o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...

A ambulância do INEM levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde "caríssimo" (sic), que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, com outros doentes aos berros, no corredor, e por aí fora.
Mas em boa hora lá o levaram ao sítio certo:

−  Mas, primeiro, dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha grande surpresa. Pensava que os urologistas eram todos homens. A princípio, confesso, senti-me intimidado e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…

E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:

− Nunca tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!

− Nunca tinha feito sequer uma vulgaríssima eco prostática ? – quiseste saber tu, evidenciando algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.

− Nada, nunca precisei, graças a Deus!

Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a tensão, e gracejou:

− Senhor Jota Jota, porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…

E, depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:

− Como viu, não doeu nada... Ou doeu ?!

− Não, senhora doutora. Até tem dedos de fada!

− E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só lamento o sr. Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia, em observação e para, logo amanhã de manhã,  fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico, que é reservado.)

A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando a conversa bem humorada que mantivera logo de início:

− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas, só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…

E finalizando, àquela hora da noite, aquela conversa algo surreal (para o doente):

− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo, estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.

E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ta contou, com graça, pondo-se na pele da médica (que passou a ser o seu "anjo da guarda"):

− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde, nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do meu ano, do meu curso, a escolher esta especialidade como primeira opção… O meu pai, transmontano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao javali. Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas e botas de montar. Um mulher de arma em punho, está a ver ?!... Isto foi no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre, à perdiz… Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens, começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns pigarreavam ou fingiam que tossiam para disfarçar o desconforto. Outros puxavam grandes fumaças dos cigarros ou charutos… E antes que se avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia) fez-me a presentação ao grupo dos machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora seja uma senhora muito educada, fina e de boas famílias, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca precisem dos seus serviços, dela ou dos seus colegas”… 

E, por fim, a urologista arrematou:

− Fez-se um silêncio, quase sepulcral, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na mão, exclamou, para desanuviar o ambiente: “Seja bem vinda, senhora doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.

O nosso homem, o Jota Jota, ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, de belo porte,  assertiva, superiormente inteligente, de personalidade dominadora, e para mais "doutora"… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida com o seu trocadilho, à boa maneira marialva:

− Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


[ Obs. - Nesta série, "Contos com mural ao fundo", a realidade e a ficção misturam-se. Muitas vezes. E ainda bem. Ainda bem  que temos a literatura, uma forma de arte, que os seres humanos inventaram, e que nos ajuda a suportar melhor a vida e a morte, o prazer e a dor, a verdade e a mentira, o céu e o inferno, o amor e o ódio, a sordidez e a beleza humanas...]


© Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. Revisto em 24 de maio de 2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!