
Queridos amigos,
É preciso ler tudo, de fio a pavio, e reler cuidadosamente.
Temos aqui uma tese de doutoramento transformada num ajuste de contas com os oficiais do quadro permanente, incompetentes, fora do tempo, sem o sentido da liderança.
Fala-se na guerra de África mas as histórias fundamentais aqui descritas passaram-se na Guiné, sob a lente do doutor Rebocho.
Quem imagina que nas teses de doutoramento é totalmente impossível praticar assassinatos de caráter, então desiluda-se. O doutor Rebocho ensina que se chegou ao 25 de Abril, ao 28 de Setembro, ao 11 de Março e ao 25 de Novembro porque havia duas fações em disputa, irá ganhar a do quadro permanente.
Por favor, leiam este livro.
Um abraço do
Mário
A “milicianização” da guerra (2)
Beja Santos


Primeiro, os oficiais do quadro permanente foram fugindo do mato, ficaram acantonados nas sedes de batalhão (CCS) e na miríade de serviços relacionados com a gestão militar, não esquecendo o Estado-Maior que se revelou quase sempre incompetente ou fora das realidades. Foram os milicianos progressivamente que passaram a tomar conta das unidades de combate.
Segundo, vá de fazer a história da formação das elites militares, assim se irá concluir que nas campanhas de África do fim do século XIX começaram a brilhar os milicianos. O doutor Rebocho não concretiza nomes, mas pensamos tratar-se de Aires d’Ornelas, Mouzinho de Albuquerque e Teixeira Pinto. É evidente que muitos oficiais milicianos se distinguiram nas campanhas de África daquele tempo como mais tarde na Flandres. Mas fazer disto doutrina… O grande drama destas elites militares (quadro permanente, entenda-se) é que elas privilegiaram a formação científica/cultural e apoucaram a vocação e a experiência.
Terceiro, é bem verdade que na transição da década de 1950 para 1960 os altos comandos previram e propuseram reformas, aliás, na época até sopravam os ventos da NATO e já havia guerras de guerrilha para comparar, mas não houve reformas de fundo, o corpo de oficiais teve uma formação elitista, como estivesse a ser preparado para uma guerra convencional. Trata-se de gente saída predominantemente das classes médias, estavam centrados numa formação universitária, etc., etc.
Quarto, não há nada como ir buscar exemplos. Veja-se o BART 2865, foi-lhe atribuído o sector de Catió, em Fevereiro de 1969. Entre Fevereiro e Outubro de 1969 este batalhão formou 4 companhias, uma delas deslocou-se para o Norte da Guiné. Tinha adstritos vários pelotões e um dispositivo de quadrícula onde cabiam Catió, Cabedú, Cufar, Bedanda, Guileje, Gadamael Porto, Ganturé, Cacine e Cameconde, ou seja 9 unidades fisicamente separadas. O comando era, quase sempre exercido por oficiais de patente muito inferior à que seria normal. Contudo, o número de baixas foi reduzido e os atos de indisciplinas escassos. O que é que isto traduz? O factor humano era o elemento decisivo. O doutor Rebocho decidiu inquirir Canha da Silva, então capitão oriundo da Escola Militar que deu provas de liderança em empreendimentos essenciais como o reordenamento de Mato Farroba. Mas outros dois oficiais do quadro permanente que o novel doutor investigou revelaram ser oficiais que nunca o deviam ter sido. Um, Coutinho e Lima, esteve na Guiné de 1963 a 1965. Lê-se a documentação e o que é que salta à vista? 50 praças e sargentos desta companhia foram punidos, o que atesta a inapetência para o comando de Coutinho e Lima. A comissão do capitão Vasco Lourenço, está escrito textualmente, foi uma nódoa, o rancho miserável, as condições de alojamento péssimas, o armamento em mau estado de limpeza e conservação, e por aí adiante. Spínola encolerizou-se. Resultado: Vasco Lourenço não tinha aptidão para comandar. Lá para o fim da comissão, a companhia de Vasco Lourenço executou uma operação, “Última Vendetta”, durante a qual destruiu 44 moranças, 58 vacas, 15.700 kg de arroz, 1 porco, 60 molhos de capim, e por aí adiante.
Como este trabalho é científico, e o doutor Rebocho, por imperativos universitários, não pode abandonar a neutralidade, então escreve: “Operacional fui eu, em tropas de elite, durante 26 meses e nunca a minha companhia destruiu qualquer produto alimentar da população”. Será que Vasco Lourenço foi incompetente por mandar destruir alimentos destinados a apoiantes do PAIGC? E depois apanhamos uma injeção das tropas paraquedistas e elogios sem conta à unidade militar do doutor Rebocho, o BCP 12. E para demonstrar o quê, já que estamos a falar de elites: só se manda fazer a quem sabe, e os sargentos e praças paraquedistas eram uma matéria-prima de altíssima qualidade, vem até uma narrativa de uma operação em que participou o doutor Rebocho na área de Porto Gole onde se vê o desembaraço daquela tropa paraquedista. E como estamos a falar de um documento científico ficamos a saber que apareceu por lá o capitão miliciano paraquedista Henrique Morais da Silva Caldas, um homem que se relacionava muito mal com os sargentos e de quem ninguém gostava. O capitão Caldas acabou por aprender com a exemplaridade do doutor Rebocho que entretanto desatou a estudar e a fazer exames… O novo capitão, Costa Cordeiro, também foi outro osso duro de roer, mas acabou por baixar a grimpa, escreveu ao comandante de batalhão uma informação onde rezava: “O furriel Rebocho é um graduado aprumado, competente, disciplinado e disciplinador. Atualmente está a estudar, não descurando a sua valorização pessoal. Elemento muito válido e de prestígio na classe de sargentos, promete com mais experiência vir a tornar-se um opimo sargento".
Quinto, a partir de Março de 1973 as coisas complicaram-se na Guiné, a companhia do doutor Rebocho voltou ao Cantanhez e cedo se verificou que havia criatividade do lado da guerrilha e uma enorme apatia do Estado-Maior. Temos depois o relato da participação paraquedista em Guidage e depois em Gadamael Porto. E sentencia, sobre o que se passou em Guileje: “A posição de Coutinho e Lima não tem, nem pode ter a mínima justificação no campo militar. Compreende-se o seu estado de espírito, que terá motivado tão invulgar decisão, por quanto se nenhum outro oficial de carreira estava colocado a sul do rio Cacine, por que razão haveria ele de lá estar? Naturalmente que Coutinho e Lima não previu o desastre que a sua atitude iria provocar, desde logo não pode ser condenada no campo da moral”. Tudo o que se passou em Guileje, declara a sangue frio, é mais uma manifesta desarticulação do Estado-Maior.
Vejamos agora o comportamento das elites militares no pós-marcelismo. E se alguma dúvida houvesse que as teses de doutoramento andam pela rua da amargura bastava ler o que vem a seguir:
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)