1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Julho de 2020:
Queridos amigos,
Escrevi há pouco tempo um artigo dando conta de alguma bibliografia alusiva aos incidentes do Pidjiquiti e o historiador António Duarte Silva recomendou-me referências a outras obras, o que aqui se faz. As dúvidas e as questões em aberto prosseguem. Terá sido Rafael Barbosa o instigador junto de um dos patrões que conduziu a greve?
O que levou o PAIGC a arvorar-se como responsável encapotado pelos acontecimentos, quando, como é sabido, viveu numa apagada entre 1956 e 1959? Em que medida é que se pode falar de massacre se, como abonam os testemunhos presenciais, e documentos de indiscutível rigor, que referem o descontrole absoluto depois das cenas de pancadaria travadas entre estivadores e forças da ordem? E de acordo com os números lançados por várias proveniências é extremamente difícil, mais de 60 anos depois, vir a encontrar documentos probatórios do número de mortos e feridos, já que não há contabilidade fiável para os mortos e feridos levados pelo Geba.
Um abraço do
Mário
Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível
Mário Beja Santos
O meu amigo António Duarte Silva, conceituado historiador da Guiné-Bissau, chamou-me a atenção para a amplitude da bibliografia existente sobre os incidentes do Pidjiquiti, também conhecido por Massacre do Pidjiquiti, há muitos trabalhos repetitivos, casos há em que se urdiu a lenda, se exibem números de mortos e feridos sem qualquer comprovativo, houve aproveitamento dos acontecimentos para o colar ao arranque do PAI (sigla anterior a PAIGC), isto quando Rafael Barbosa insistiu que o líder dos grevistas era membro do Movimento de Libertação da Guiné.
O autor de "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, dá-nos uma impressiva síntese do descontentamento dos homens que faziam o serviço do porto, cargas e descargas, marinheiros do cais, contramestres e cozinheiros. Era o mundo do trabalho que abarcava as embarcações de nove firmas armadoras de diferente calado, estes homens tinham de fazer igualmente o trabalho de estiva.
“Os salários eram concertados anualmente pelas casas comerciais e a exigência de uma nova melhoria de salários havia sido apresentada em fevereiro, tendo obtido a promessa de estudo de pretensão. A preparação da greve coube aos capitães dos barcos; a exigência de aumento dos salários assentava na dureza das condições de trabalho e no custo da alimentação”.
Em 31 de julho, os trabalhadores constataram que não havia qualquer aumento, considera-se ter havido fracasso nas negociações posteriores com o gerente António Carreira na manhã de 3 de agosto. Os manifestantes, maioritariamente Manjacos, comparecem numa concentração pelas 14 horas, vão devolver os barcos. Interveio o Patrão-Mor da Capitania, tudo falha, o gerente da Casa Gouveia, António Carreira, chama a polícia, um contingente dirigiu-se ao porto, trocam-se palavras e o subchefe da polícia é agredido depois de ter esbofeteado um dos marinheiros que aparecem munidos de remos, paus, barras de ferro e arpões. Seguem-se disparos da PSP e forma-se um piquete que trava o avanço dos manifestantes abrindo fogo: tiros, lançamento de granadas lacrimogéneas e perseguição dos grevistas que fogem em direção ao cais. O padre Henrique Pinto Rema fará publicar no jornal "O Arauto" que houve de 13 a 15 mortos.
Já aqui se fez referência ao relatório confidencial do Comandante da Defesa Marítima que vem publicado no Livro III dos Fuzileiros – "Crónica dos Feitos da Guiné", por Luís Sanches de Bâena, Comissão Cultural da Marinha, 2006.
Voltando ao trabalho de Duarte Silva, ele refere que os feridos e os cadáveres foram transportados sob vigilância militar para o hospital e a casa mortuária. No dia seguinte, o administrador do concelho de Bissau contatou um dos capitães, Mestre Ocante Benunte, este apresentou-lhe as cinco condições dos grevistas para retomarem o trabalho. Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso publicam os sete telegramas enviados pelo Governador ao Ministro do Ultramar, vem em "Os Anos da Guerra Colonial", Quidnovi, 2010. Encetam-se conversações, fizeram-se novas contratações, depois retomou o trabalho e em 11 de agosto estavam em funcionamento 30 num total de 53 lanchas.
O historiador Leopoldo Amado é taxativo dizendo que o PAI “não teve, pelo menos diretamente, uma ação ou influências decisivas nas ações que viriam a desembocar em Pidjiquiti”. Como seria de esperar, o descontentamento, a greve dos estivadores, aquela quantidade de mortos e feridos que cada um contabiliza à sua maneira, serão apresentados como um marco histórico, para o PAIGC passava-se da agitação nacionalista à fase superior da luta de libertação nacional.
António Carreira, que antes de ser sócio-gerente da Casa Gouveia tivera outras e variadas andanças (capataz de estradas, aspirante dos correios e telégrafos, aspirante do quadro administrativo, secretário da circunscrição civil e administrador da circunscrição civil, tudo na Guiné entre 1921 e 1954) e que se tornou persona non grata e acusado de autor moral da mortandade declarou em entrevista, passados quase vinte anos, que “os governantes da Guiné-Bissau têm-se manifestado hostis à minha pessoa por razões ligadas aos acontecimentos do Pidjiquiti em 1959, endossando-me a responsabilidade da ocorrência. Ora eu não me sinto com nenhuma responsabilidade direta no caso (…) O que para mim se apresenta curioso é que nunca tivessem apontado para os autores materiais do caso: o comandante militar, o comandante da polícia, e os restantes agentes do governo de então, na altura em que eu era um simples gestor comercial”.
Para conhecer a obra prolífica de Carreira, recomenda-se a leitura do livro "António Carreira, Etnógrafo e Historiador", por João Lopes Filho, Fundação João Lopes, Cidade da Praia, 2015. Em "As voltas do passado, a guerra colonial e as lutas de libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, Tinta-da-China, 2018, há um trabalho de Sílvia Roque que praticamente nada mais adianta sobre o que até agora se escreveu. Luís Cabral, antigo Presidente da República, escreveu no seu livro "Crónica da Libertação", Edições Jornal, 1984, que o comportamento de Carreira foi de irredutibilidade, o que desencadeou a greve.
Depois da carga policial, vários grevistas e simpatizantes nacionalistas foram detidos. A autora escreve que o aumento de salários já teria sido aprovado pela CUF. Também refere que o trabalho forçado, após a II Guerra Mundial, passara a ser substituído pelo trabalho assalariado, baseado em salários muito baixos. A autora não deixa de se enredar na especulação, escrevendo:
“Os acontecimentos do Pidjiquiti constituíram uma expressão real de uso excessivo de violência sem possibilidade de defesa, com requintes de teatralização desse excesso. São exemplos disso a referência a um comandante militar que teria atirado sobre cada uma das cabeças que se refugiaram no mar ou ao facto de apenas a corajosa reivindicação das mulheres junto do Palácio do Governador ter impedido que os corpos fossem queimados, conseguindo que fossem restituídos às famílias”.
Amílcar Cabral apresentará estes incidentes como um momento de viragem, será uma das consignas de toda a propaganda da guerra de libertação. Durante anos após a independência, os incidentes do Pidjiquiti tiveram um lugar relevante na consolidação do PAIGC enquanto personificação da nação, os anos foram gradualmente apagando das gerações mais jovens a simbólica do Pidjiquiti. E a comunicação também mudou, como mostra Sílvia Roque:
“Durante as celebrações de 2014, enquanto Domingos Simões Pereira desafiava os guineenses para a criação de um museu em honra e memória de todos os resistentes, o secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores da Guiné afirmava que os atrasos nos pagamentos de salários punham em causa a realização dos sonhos dos mártires do Pidjiquiti”.
Confirmava-se a simbologia da desilusão.
"Lutas Laborais nos Primórdios da Guerra Colonial", por Jorge Ribeiro, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2018, debruça-se sobre o Pidjiquiti, as novidades do texto são mínimas. Associa-se diretamente o conflito laboral com António Carreira, dá-se uma analogia entre Carreira e o Coronel Carlos Gorgulho, responsável pelo massacre de Batepá, em S. Tomé e Príncipe, a 3 de fevereiro de 1953, ambos após estes desmandos horrendos foram retirados para Lisboa.
O texto refere o avanço da Companhia estacionada no quartel-general armada com Mauser K98, mas quem avança para o cais do Pidjiquiti são os efetivos da PSP, empunhando espingardas LEE ENFIELD 7.7. Perde-se o controlo da situação, segue-se a carga de soldados e polícia.
“Para esta página da história da Guiné foram imprescindíveis a acção e o comportamento do Comandante dos Civilizados, Capitão José Manuel Severiano Teixeira, louvado e condecorado após o 25 de Abril pelos serviços prestados em África; e do governador da colónia, Capitão de Fragata António Peixoto Correia que, no fim da sua comissão na Guiné, foi chamado por Salazar para o cargo de Ministro do Ultramar”.
O autor refere a disparidade dos números indicados por Rafael Barbosa, Amílcar Cabral e Luís Cabral: Rafael diz ter visto e contado 52 corpos retirados das águas do Geba; Amílcar Cabral referiu 24 mortos e 35 feridos; Luís Cabral 24 mortos e 37 feridos graves. Mais tarde, Aristides Pereira e o próprio Luís Cabral atualizaram o número em 52 mortos.