sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7614: Notas de leitura (188): Lugares de Passagem, de José Brás (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Ainda me assaltou uma réstia de pudor, andei a apresentar o livro e agora venho a terreiro mostrá-lo dentro da tabanca. Importa esclarecer que é um belíssimo testemunho, implicitamente convoco todos a lê-lo e a reflectir se não devíamos seguir-lhe as pisadas…

Um abraço do
Mário



Numa sala de espelhos estilhaçados, lembranças de partidas e chegadas

Beja Santos

José Brás ganhou notoriedade no campo das letras, em 1987 com um livro cheio de verdor, originalidade e comoção: “Vindimas no Capim” (Publicações Europa-América, 1987). Escudando-se num alter-ego, Filipe Bento, um homem com mais de 40 anos, nascido na Estremadura, entre vinhedos, rememora a Guiné e outras coisas mais.

Acompanhamo-lo nos preparativos bélicos, este Filipe escreve numa linguagem de caserna, desabafa, é pletórico, não esconde as zangas e até raivas bem direccionadas. A sua circunstância na Guiné andou à volta do mais áspero que havia no Sul, mas sempre a propósito (e sempre que lhe deu na gana a despropósito) veio matar saudades até Alenquer, Vila Franca de Xira e praças afins. Deixou-nos algumas águas fortes indispensáveis para juntar ao puzzle que um dia alguém irá urdir sobre as muitas guerras daquele teatro de operações, já que na guerra colonial qualquer descrição, cruenta, pungente ou até emocional, tem que ser vista à lupa do local, do ano e de algumas contingências fortuitas já que qualquer um daqueles combatentes poderia ter dito sobre a sua guerra o que Ortega y Gasset tinha dito mais de 50 anos antes: “Eu sou eu e a minha circunstância”. Para o caso, José Brás deixou-nos páginas admiráveis da sua infância, da sua vivência em meio telúrico, de uma guerra que começou pelas sortes, pelas escolas de sargentos e culminou nos arredores de Guileje. Depois, José Brás remeteu-se ao silêncio.

Ressurge agora com “Lugares de Passagem”. Não regressa à Guiné, na plenitude, mas não esconde as memórias bem sulcadas. “Não é um livro de contos, não é um romance, não sei se é o que quer que seja, a tal viagem de partidas e chegadas aparentemente desligadas umas das outras mas que o leitor ligará por invisível fio paralelo e exterior, segundo a leitura de cada um, como se insinua nas apresentações iniciais”. Assim se refere a este regresso de Filipe Bento que desta feita até se disfarça de outros nomes só para apoquentar e muitas vezes desorientar o leitor incauto: “Lugares de Passagem”, por José Brás, Chiado Editora, 2010. É uma narrativa caudalosa, se houvesse que encontrar enquadramento literário chamar-se-ia “roman fleuve”, é uma torrente líquida de visões, de memórias, viaja-se por dentro da gente, um sexagenário disfarçado de diferentes múltiplos tem muito que contar sobre tantos lugares e até não lugares por onde cada um de nós passa. Algumas das páginas mais admiráveis ficam condicionadas à experiência da guerra da Guiné. Não é por acaso que o livro é dedicado ao Luís Graça, criador do mais importante blogue sobre a guerra da Guiné, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”. Como é inevitável nestes relatos, homenageiam-se camaradas e feitos tidos por improváveis, naturalmente imprevisíveis. Oiçamo-lo, logo no arranque de tanta rememoração:
“Era um tipo de bom talhe físico, exuberante em trejeitos e maneiras de falar, assim como… como costumamos chamar de femininas, esquecendo que dentro de cada homem, mais nuns que noutros, existe sempre, também, uma parte da mãe que nos pariu.
Os soldados logo ali se reuniam em cochichos e olhares de lado, risinhos abafados, e tal.

Aí a meia viagem, sei lá, a uns cinquenta metros, se tanto, de uma ligeira curva à esquerda, as rajadas estoiraram no coração de cada um.

O Unimog da frente, directamente atingido por fogo feito a poucos metros, chupa com uma rajada em cheio, começa a travar, sai da estrada e mobiliza-se logo ali, ligeiramente atravessado, ligeiramente inclinado em pranchamento à direita mas ainda com parte da carroçaria na estrada.

Dos ocupantes da cabine, um alferes apanhou com três balas na perna, um soldado negro da Aldeia Formosa que havia apanhado boleia no DO só para vir matar saudades que tinha da malta, leva também a sua conta, dois soldados mortos na carroçaria, um que nem chegou a levantar-se, tendo caído de imediato sobre umas baterias que viajavam connosco para substituições, outro que se levanta, é atingido e malha no pó ainda antes da paragem da viatura.

O Cabo Calçada é apanhado já em pleno salto. Uma rajada nas costas que lhe há-de levar a maior parte de um pulmão, deixa-o também fora de combate.

Isto tudo passa-se em menos de um ai, por assim dizer, que nestas cenas, soldados sentados no duplo banco corrido da carroçaria de um Unimog, têm molas nas pernas e não iriam esperar que a viatura parasse para comodamente dela descerem. O fundamental é que aquele Cabo Enfermeiro mostrou a serenidade devida, o arrojo inesperado. E quem dele cochichava passou a admirá-lo.

São lugares de tensão e emoção, voltamos à Estremadura depois até temos uma profissão, no caso em apreço o antigo combatente passa a comissário de bordo, percorre mundo, torna-se sindicalista, até foi dinamizador cultural, fez teatro, andou por actividades autárquicas, e por aí anda, activo, depois de ter sido instrutor de voo, lá para o Alentejo, onde está radicado. Com a idade, lança-se mais as contas à vida, há raivas que não se digerem, há injustiças que não se silenciam, há choros que não se querem conter. Comparativamente às “Vindimas no Capim”, o estilo é mais enxuto mas não menos retórico, é profundamente lírico, e, coisa curiosa, as dores da Guiné ali estão todas, nos rigores da cartografia, dos nomes dos camaradas, dos dias e das horas da provação. No outono, o autor recorda-nos aquele princípio inabalável que vem no ditado popular: “eu sou devedor à Terra/ a Terra me está devendo/ a Terra paga-me em vida/ eu pago à Terra em morrendo”. É um comentário sereno, em jeito de balanço. Porque se a ficção existe ela é menos contagiosa, muito menos exaltante que todos os lugares de passagem que deram fermento à nossa infância, à nossa guerra, aos nossos amores, a todos os aviões por onde viajámos, entre todos os aeroportos do mundo. José Brás fez bem em regressar. Há mais mundo depois da guerra da Guiné. Mas é tocante que ela não tenha perdido lugar na circunstância de todos os lugares de passagem deste autor.
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Notas de CV:

Vd. poste de 12 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7596: Lugares de passagem, de José Brás (2): Amigos e camarigos presentes na sessão de lançamento, em Loures, 6 de Janeiro de 2011

Vd. último poste da série de 13 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7607: Notas de leitura (187): Os Portugueses na Guiné, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

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