quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3166: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (6): Tempos Modernos.

Não venho falar de mim…nem do meu umbigo (6)


Tempos modernos

por Alberto Branquinho (*)


Era Domingo.
Quem àquela hora passasse na Avenida da República em frente à Catedral de Bissau (talvez a caminho da 5ª. Rep…), não poderia deixar de notar a algazarra que cerca de dez mulheres idosas faziam. Umas trajavam de negro outras de tons escuros. Aparentavam grande nervosismo, apertando e desapertando os panos da cintura, falando todas ao mesmo tempo, enquanto olhavam a porta da Catedral.




Sé Catedral, Bissau, 1966.


A tempos, faziam um batuque com pequenos paus de dez a quinze centímetros, batendo uns contra os outros ou batendo em pequenas latas. Por vezes duas ou três aproximavam-se da porta batucando paus e latas, cantando e dançando, batendo com raiva ritmada as plantas dos pés contra a laje, ao alto das escadas.
Mais ninguém estava pelas redondezas, excepto algum transeunte que, em vez de usar o passeio de Avenida, caminhasse pelo pátio da Catedral. Quedava-se por um instante, olhando a cena e seguia o seu caminho.

De entre as velhas notava-se uma ainda mais velha, com uma cara preta acinzentada, cobertas de rugas profundas. Permanecia sentada num degrau e a sua voz esganiçada e raivosa estimulava as demais, enquanto dava palmadas nos joelhos. Elas rompiam numa algaraviada estridente entre berros e lenga-lengas, novamente batucando. Acabavam as vozes e voltava a cantilena sincopada, mais raivosa que melódica e, de novo, duas ou três caminhavam, batucando, até próximo da porta da Catedral.
Assim estiveram bastante tempo.

Abriu-se a porta da Catedral. Saíram para o exterior sons de órgão e algumas pessoas. As mulheres precipitaram-se para a porta cantando, dançando, batucando. O som do órgão abafava o barulho que faziam.

Era um casamento.
Surgiram os noivos impecavelmente vestidos. Ela de tez mais clara, de vestido de noiva com uma grande cauda, que arrastava pelo chão. Ele, negro puro, de fato azul-escuro. A música do órgão subia, subia, abafando a algazarra das velhotas. Estas colocaram-se ao lado do noivo, algumas ostensivamente encostadas a ele, sempre a cantar, a dançar, a batucar. Assim os acompanharam, descendo as escadas para o passeio da Avenida, seguidos pelo cortejo de convidados.
Aguardava-os um automóvel escuro de boa marca, que, entretanto, chegara. O motorista segurava a porta traseira do lado direito, aberta.
Os noivos, assim como os convidados, continuavam, aparentemente, a desconhecer o batuque, embora o noivo mantivesse o rosto tenso e o olhar fixo.

Quando entraram no carro, o batuque, raivoso, subiu de tom, agora mais audível, ou porque a música do órgão cessara ou porque estava mais longe. O carro partiu, com um arranque rápido. Algumas velhotas pretenderam segui-lo. Era impossível.
Sentaram-se no lancil, repentinamente caladas, colocando as mãos, com os dedos enlaçados, sobre a cabeça.

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Notas de vb:

(*) Alberto Branquinho, ex-alf mil da CArt 1689 (1967/69).

(**) Vd. poste anterior desta série:

1 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3160: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (5): (Des)temor...

1 comentário:

Anónimo disse...

São sempre interessantes os escritos do Alberto Branquinho.
Realismo e umbigo para dentro!
É raro!... Já tudo levou o vento.
Òh Dr. também foi ao casamento?
Manga de Ronco!

Um abraço do,

Mário Fitas