Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.
1. Mensagem do José António Carioca, um Gringo de Guileje (*), com data de
Assunto - Contadores de estórias
Olá Luís, boas noites, tudo bem?
Ao navegar pelo blogue fui parar a um artigo de 18 de Janeiro de 2007: Guiné 63/74 P 1443: Contributo para a história da construção do aquartelamento de Guileje (José Barros Rocha, CART 2410, Os Dráculas, 1969/70).
Seguidamente entro no P1431 de 15 de Janeiro de 2007, Guileje: Quem (e quando) construiu os abrigos de cimento armado (Pepito/Nuno Rubim).
Fiquei espantado! É que a foto que aparece de A.S., é enviada pelo irmão Manuel, que está a reproduzir alguns enxertos do post de 26 de Janeiro de 2006 (...) (Quando a terra treme). Então entrei no link do Ninho do Açor On Line, de Manuel Sousa, para ler este artigo (**).
Ora, fiquei pasmado, pois o A. S. esteve comigo em Guileje, pertenceu ao meu grupo, foi para lá por castigo derivado ao seu alegado ‘mau comportamento’. As semelhanças são tantas que não pode ser pura coincidência...
Como ele houve outro, em Guileje, não sei o que terão feito para merecer tal castigo, só que o A. S. em Guileje também teve comportamentos que no mínimo, e à luz dos valores da época, do RDM, da situação de guerra, etc. , poderíamos considerar como 'estranhos', ‘indesejáveis', 'reprováveis'...
Eu sei que no blogue não se fazem juízos de valor sobre o comportamento dos camaradas. Não sou juiz, nem quero julgá-lo. Mas apenas relatar duas estórias, em que ele é o protagonista principal.
A alcunha dele era o Doutor Maluco, porque andou a dizer ao resto do grupo que era doutor. Não se dava com ninguém, olhava as pessoas cabisbaixo, de lado... Recordo-me que uma vez para rapar alguns pêlos mal semeados na cara foi para as instalações dos oficiais. Ao ser repreendido por um dos oficiais, respondeu para este que estava a gozar dos seus plenos direitos....
Se bem me lembro, o A. S. tinha sido 1º Cabo mas, com os recorrentes processos disciplinares, para além de vários dias de prisão, teria sido despromovido.
Outra peripécia que me lembro bem foi: O A. S., como todos os outros militares de transmissões que reportava a mim, teria que fazer serviço no posto de rádio. Então um dia teve que entrar de serviço às 5 horas da manhã. Como não aparecia para cumprir com a sua obrigação, o camarada que deveria sair para ir descansar, aguentou mais trinta minutos porque quis assistir à saída de uma patrulha que ia para o mato.
Como já era normal o nosso Doutor chegar atrasado ao serviço, foi chamá-lo e acompanhou-o até ao posto de rádio, só depois se foi embora. Com isto já seriam umas 5 horas e 45 minutos, mas muito perto das 6 horas a patrulha no mato sofre uma emboscada, o operador de rádio começa a chamar para o quartel para pedir apoio aéreo, no quartel ninguém respondia às chamadas, pois o nosso homem abandonara o posto e fora para a caserna voltar... a deitar-se.
Obviamente que o tiroteio era ouvido no quartel e toda a gente se deslocava para junto das transmissões, todos os elementos do grupo de transmissões (inclusivamente eu) e os criptos estavam com os ouvidos postos nos rádios, fazendo um trabalho em vários equipamentos para o pedido de apoio aéreo e depois o contacto com os pilotos para dar as coordenadas dos nossos militares em apuros...
O próprio Capitão [da CCAÇ 3477] estava nessa patrulha. Felizmente tudo acabou bem. Mas, para minha grande indignação, o meu subordinado nem sequer apareceu no posto de rádio… Escusado será de dizer que, na altura, só me apetecia dar-lhe dois murros bem dados... Enfim, são águas passadas que não moem moinhos. E eu hoje se o visse, só podia dar-lhe um... abraço.
O Sr. Manuel Sousa conta neste artigo [do seu blogue] que o Alferes João Tunes (***) se deslocava todos os meses a Guileje para mudar os códigos de cripto, sinceramente não me lembro no meu tempo de alguém o ter feito, acho que se alguém lá fosse pelo menos duas ou três vezes durante o ano, que lá estivesse a passar uma semana, teria forçosamente que contactar comigo. Mas mais estranho é o facto da descrição que faz sobre a sua chegada a Guileje, passo a descrever:
A chegada ao destino descreve-a assim: “As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilavam-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos içada no meio dos casinhotos”…
Conta ainda que os soldados de ” rostos fechados e olhares distantes” nem pareciam pessoas, mas “ ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada” ou “um bando de humanóides sem vontade de viver.”
E mais adiante conclui o João Tunes: “ Os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida. Os que não estavam malucos por lá andavam perto".
Mais à frente no artigo (vd. parte com o título "O troar dos canhões"), escreve o autor do blogue Ninho do Açor:
“Enquanto o meu irmão esteve em Guileje o quartel era atacado com frequência mas normalmente não havia baixas mortais”. Depois mais à frente ainda nos conta: "O ambiente no quartel decorria com uma certa normalidade quando no primeiro trimestre de 1973 o nosso conterrâneo recebe uma guia de marcha para se apresentar no quartel general em Bissau, avizinhava-se o tão ansiado regresso à metrópole" (...).
Olha, Luís, eu entrei no blogue do Ninho do Açor que pertence ao Sr. Manuel Sousa, quis fazer lá um comentário sobre tudo isto que acabo de ler mas não consegui, dava sempre erro. Como não sou nenhum expert em informática e nem consegui descobrir qualquer endereço de email, para o fazer recorri à Tabanca Grande para dizer que apenas tenho conhecimento de um camarada Gringo que de facto ficou com um trauma de guerra…
Estive com ele no almoço dos Gringos do ano passado (****), apenas soube que ele não consegue ver comentários de guerra, que chora. O que diz o narrador sobre o estado do pessoal em Guileje acho exagerado… Só farei qualquer comentário mais aprofundado sobre este assunto se tiver a certeza de que quem escreveu este artigo, o quiser fazer.
Sei que alguns Gringos já faleceram por acidente ou por doença, gostaria de saber se o A. S. ainda é vivo e se está ligado à cultura, como consta no blogue do Ninho do Açor (*****).
Abraços, José Carioca
____
Notas de L.G.:
(*) José Carioca, ex-Fur Mil Trms e Cripto, CCAÇ 3477, Gringos de Guileje, Guileje (1971/72)
Vd. poste de 6 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2815: Tabanca Grande (67): Os Gringos de Guileje: Abílio Delgado, Zé Carioca e Sérgio Sousa (CCAÇ 3477, Nov 1971/ Dez 1972)
(**) O autor do blogue, o Ninho do Açor (que parece estr actualmente inactivo, o último poste remontado a 2006) apresenta-se como professor primário, matemático, astrónomo amador, historiógrafo, folclorista, latinista, especialista de descida de rios em caiaque, etc..; é ainda autor de outros blogues:
No blogue Gente da Minha Terra, há um poste com data de 2 de Outubro de 2004 sobre o A.S., que o Zé Carioca julga ser um seu antigo camarada de transmissões. Aqui vai um extracto:
(...) "No período de 1971-1973 esteve na guerra colonial, na Guiné, onde passou por várias vicissitudes que viriam a marcar o seu futuro carácter. Esteve destacado em Bissau e Teixeira Pinto, tendo conhecido neste último aquartelamento o Coronel paraquedista Rafael Durão (...).
"Os momentos mais penosos da guerra passou-os em Guileje e Gadamael, no sul da província, onde esteve várias vezes debaixo de fogo. De entre as histórias guerreiras que constituem o seu reportório de soldado há uma que considero especialmente caricata: aquela em que uma companhia inteira é posta em debandada por um... enxame de abelhas. Há também aquela em que o nosso herói ia sendo morto por um preto depois de ter ido espreitar as pretas a tomar banho nas bolanhas, mas estas são contas de outro rosário...
"Este nidense é o exemplo mais acabado de alguém que encerra dentro de si um talento artístico insuspeitado. Há muitos anos levou a cabo uma banda desenhada onde relatava as aventuras rocambolescas dum padre e da sua bombástica sobrinha. A historia, desenhada a tinta da china, ocupava cerca de 100 páginas A4 pelo que já poderia ser considerado um trabalho de certo fôlego. Um dia, porém, num acesso de perfeccionismo e de insatisfação artística decidiu queimar tudo (...).
"Com todo este potencial podia ter evoluído para um artista de grandes méritos, mas o seu temperamento volúvel e pouco sociável, aliado aos traumas psicológicos da guerra, não permitiram que o génio artistico se traduzisse em obras de vulto, pelo menos até à data" (...).
(***) Esse texto do nosso camarada João Tunes já foi aqui reproduzido: Vd. poste de 14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)
(****) Vd. poste de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1869: Convívios (19): Os Gringos de Guileje, a açoriana CCAÇ 3477, encontram-se ao fim de 33 anos! (Amaro Samúdio)
(*****) Vd. último poste desta série, Estórias de Guileje> 12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2934: Estórias de Guileje (13): Com os páras, no corredor da morte: armadilhe-se o moribundo (Hugo Guerra)
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