sábado, 28 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3952: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (3): No fim do mundo (Giselda Pessoa)

1. Texto da Giselda Antunes, ex-Sgrt Enf Pára-quedista (BA12, Bissalanca, Janeiro de 1972/Abril de 1974), novo membro da nossa Tabanca Grande (1): As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (3) > NO FIM DO MUNDO por Giselda Pessoa (2) Quando me sugeriram que escrevesse um texto para o blogue, onde relatasse algumas das histórias que vivi durante o meu tempo como enfermeira paraquedista, lembrei-me de folhear um dos volumes de "A Guerra de África", de José Freire Antunes, em que há um capítulo dedicado às enfermeiras paraquedistas. Nesse capítulo aparecem depoimentos de várias enfermeiras, sendo eu uma delas. Revendo o que ali está escrito, percebo que posso perfeitamente usar algumas das histórias que ali relatei; primeiro, porque muita gente desconhece aquela obra; segundo, porque posso falar do mesmo, dando-lhe agora uma melhor arrumação do que aquela que teve à época. Na verdade aquela obra é mais uma manta de retalhos, pois baseou-se na passagem ao papel de uma série de entrevistas gravadas por diversos assistentes do escritor/historiador, não tendo havido mais tarde qualquer tentativa de se melhorar os textos que daí resultaram. Ora sabemos todos que não se escreve da mesma maneira que se fala e o que dizemos num repente pode ser melhorado se tivermos possibilidade de reler o que está escrito e dar-lhe uma melhor apresentação. Posto isto, gostaria talvez de começar por temas que me marcaram na minha vida de militar, a camaradagem e a solidariedade, que sendo algo característico da vida militar, parecem ter tido ainda mais relevo no território da Guiné. Se é habitual haver um grande companheirismo entre os paraquedistas, tive a oportunidade de ver exemplos desse companheirismo junto de outros grupos na Força Aérea, fossem pilotos ou mecânicos da BA12. Também nas minhas deambulações pela Guiné - em 28 meses de comissão(*), tive a possibilidade de chegar aos sítios mais invulgares, em que afinal muitos tiveram que viver - pude testemunhar as manifestações de camaradagem e solidariedade que sempre mostraram ter para com os tripulantes dos DO-27 e AL-III que por ali passavam e particularmente para com a enfermeira que os acompanhava. Este episódio não faz afinal parte daquele livro, mas sendo algo que me tocou profundamente, deixo-o aqui. No decorrer de uma evacuação que tinha como objectivo um aquartelamento no nordeste da Guiné, o helicóptero aterrou na placa, onde embarcou o evacuado. No decorrer dessa operação, aproximou-se do AL-III um Furriel daquela unidade, o qual se me dirigiu com um pedido fora do vulgar. Explicou-me que com ele estava naquele quartel a sua mulher, sendo ela a única branca que ali vivia; e que, não vendo nenhuma branca há já muitos meses, certamente apreciaria falar comigo por uns momentos. Expliquei-lhe que o facto de transportarmos um ferido e o pouco combustível de que dispunhamos não permitia prolongar a nossa estadia ali. Mesmo assim, ele montou a sua motoreta e foi buscar a mulher, para a levar junto de nós. A espera prolongou-se por mais tempo do que aquele de que dispúnhamos, o que levou o piloto a decidir-se por descolar, com grande pena minha. Já no ar, tive a possibilidade de ver aproximar-se da placa a motoreta com o Furriel, trazendo a mulher à boleia. Ali chegados, apenas teve ela tempo para nos acenar enquanto o AL-III rodava em direcção a Bissau. Senti naquele momento um desgosto enorme por não ter podido proporcionar àquela mulher um momento de carinho e de solidariedade, de que ela tanto necessitaria; e imagino a sua frustação quando não lhe foi possível partilhar de uns momentos de proximidade com alguém que lhe recordaria outras companhias e outros ambientes deixados há muito para trás. Giselda Pessoa (*) As comissões das enfermeiras paraquedistas variavam entre seis meses e um ano, o que provocava uma constante rotação do nosso pessoal. Vá-se lá saber porquê, fui optando por prolongar a minha estadia na Guiné, muito provavelmente devido ao óptimo ambiente que ali se vivia e também por me sentir realizada no trabalho que ali desenvolvia, numa atmosfera que não deixava esconder a guerra que nos rodeava. 2. Comentário de L.G.: Giselda: O meu querido camarada, amigo e co-editor Carlos Vinhal já te deu as boas vindas em nome da nossa Tabanca Grande. Ele é, como eu costuno dizer, o nosso public relations, muito mais do que o porteiro da Tabanca. É um cavalheiro do Norte, que te tratou como devia ser, como Senhora Dona.... Mas tu sabes como são as regras: aqui, nesta caserna virtual, somos todos generais de muitas estrelas, somos todos VIP, fomos todos importantes, isto é, somos todos camaradas (um termo castrense ou militar, por excelência)... Não fazemos distinção de idade, género, posto, especialidade, arma, condição social, estatuto, estado de saúde, risco de morrer... A tua entrada não tem nada a ver com feminismo ou, muito menos, com o politicamente correcto: conquistaste por direito próprio, nos céus da Guiné, o direito de estar aqui em pleníssima igualdade com os outros camaradas, da Força Aérea, da Marinha ou do Exército... Claro que tens o privilégio de ser saudada com tiros de salva de artilharia (simbolicamente, que a pólvoar está cara e faz mal ao ambiente): és a primeira mulher militar, e ainda por cima pára-quedista, a entrar para o nosso blogue... Depois é uma mulher do Norte, corajosa, determinada e... bem disposta. Em terceiro lugar, és uma profissional de saúde, uma enfermeira (uma profissão que foi durante muito tempo estigmatizada, a ponto de o Estado Novo proibir as enfermeiras de se casarem, proibição essa, fundamentalista, que só acabou em... 1963!). Enfim, eu poderia invocar mais predicados, mas tu não precisas e eu vou-te poupar... Já percebi (até por que estive a reler o teu depoimento no livro do José Antunes Freire) que és uma excelente contadora de histórias. Esta que agora publicámos tem o mérito de revelar uma outra faceta da tua personalidade: além de enfermeira pára-quedista valente, destemida e competente, eras uma grande camarada, sensível e solidária, e uma grande portuguesa... Sei que vais surpreender-nos com outras histórias passadas no TO da Guiné, terra de paixão e de solidariedade, terra vermelha, inferno verde, labirinto de bolanhas, mangal, rios e braços de mar, céus de chumbo, que nunca mais poderás esquecer... Não podias estar impunemente 28 meses na Guiné, nos anos de brasa de 1972/74, naquela terra e naquela guerra, e chegares agora ao quilómetro 62 da tua vida e dizer: Não, por favor, não mais Guiné!... Nem já sei onde fica !). Morcões, abram alas, vai entrar uma camarada, uma grande senhora!

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(2) Vd. postes anteriores desta série: 



 (3) Vd. Enfermeiras Pára-Quedistas: Boina Verde e dedicação. In: José Freire Antunes: A Guerra de África, 1961-1974, Vol II. Lisboa: Círculo de Leitores. 1995. 663-684. 

 Sobre Giselda Antunes Pessoa, nascida em 1947, diz-se o seguinte: "... chegou evacuar na Guiné um ferido do PAIGC que falava francês e evacuou o piloto Miguel Pessoa, abatido por um míssil Strela. Depois casou com ele. Fez o curso de enfermagem na Escola de São João, no Porto. Tinha uma irmã que já era enfermeira pára-quedista e seguiu as suas pisadas. A Guiné era o território preferido de muitas enfermeiras" (pp. 681-682). Fez o curso de enfermeira pára-quedista entre Agosto e Outubro de 1970. Esteve uns meses em Lisboa, sendo depois colocada no Direção do Serviço de Saúde em Lourenço Marques. Fazia evacuações daqui e da Beira. Considera este tempo como tendo sido de férias... A guerra a sério foi na Guiné, uma escola também de "grande solidariedade" (p. 682).

3 comentários:

Anónimo disse...

Este nosso blogue está cada vez mais vivo, dinâmico e atractivo, para quem gosta de saber.
É um manancial de surpresas quase diárias, onde felizmente começam a aparecer outros ex-Combatentes de outras tropas, que não as "todo terreno" (desculpem-me os camaradas da guerra "apeada" mas não me lembro de melhor termo para nos definir).
Na qualidade de "eterno periquito" e simples "contribuinte" do nosso blogue (em meu nome pessoal), agradeço o testemunho da Giselda Antunes, ex-Sgrt Enf Pára-quedista, com os meus melhores parabéns, por enriquecer com a sua enternecedora estória esta, também, nossa "manta de retalhos da guerra".

Anónimo disse...

Este nosso blogue está cada vez mais vivo, dinâmico e atractivo, para quem gosta de saber.
É um manancial de surpresas quase diárias, onde felizmente começam a aparecer outros ex-Combatentes de outras tropas, que não as "todo terreno" (desculpem-me os camaradas da guerra "apeada" mas não me lembro de melhor termo para nos definir).
Na qualidade de "periquito" e simples "contribuinte" do nosso blogue (em meu nome pessoal), agradeço o testemunho da Giselda Antunes, ex-Sgrt Enf Pára-quedista, com os meus melhores parabéns, por enriquecer com a sua enternecedora estória esta, também, nossa "manta de retalhos da guerra".
Magalhães Ribeiro

Anónimo disse...

Giselda,
Como já escrevi no Especialistas da BA12, para de forma singela transmitir o que sinto pela tua (vossa) missão e dedicação, socorro-me do lema de duas esquadras que ainda operam hoje na "nossa" FAP. A Esquadra 552 "Zangões" que opera os helicópteros Allouette III, tão ligados às vossas missões, e a esquadra 751 "Pumas" que opera os helicópteros EH-101.
"...Em Perigos e Guerras Esforçados..." arriscaram a vida no cumprimento da missão de entrega a servir o próximo, prestando tratamento físico e conforto moral "Para que Outros Vivam" .
Saudações Especiais,
João Carlos Silva