sábado, 14 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3892: FAP (12): O Fur Mil Pil Mota, e as Enf páras Giselda e Natália, caídos no Como em 1973 e salvos pelos fuzos (Miguel Pessoa)

Sequência de fotos da recuperação da avioneta DO-27, acidentada na Ilha do Como, em 17 de Novembro de 1973... Caídos em território inimigo, o Fur Mil Pil Ivo Mota, e as enfermeiras pára-quedistas Giselda Antunes e Natália Santos, tiveram a sorte de serem socorridos, com rapidez, por uma unidade da Marinha que passava ali perto, a LDG 102... Nas fotos a preto e branco, está documentado o regresso da DO-27, nº 3458, à base - Bissalanca, BA12.

Fotos: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados.


1. Texto do Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, Bissalanca, BA12, 1972/74, hoje Cor Pilav Ref, casado com a Srgt Pára-quedista Giselda Antunes, seguramente o único casal do mundo atingido - cada um deles, separadamente, ocasiões diferentes, e em areonaves diferentes - , por um míssil SAM 7 Strela...

Acho que mereciam figurar no Guiness Book! Mas na nossa Tabanca Grande ficam seguramente melhor, e sobretudo melhor acompanhados pelos amigos e camaradas da Guiné. Giselda, sê bem vinda! Morcões, abram alas para receber, no nosso blogue, a primeira camarada da Guiné, tão combatente como qualquer um de nós!

É um privilégio para todos nós, Giselda, receber-te neste dia, 14 de Fevereiro, que por sinal até é dia dia dos Namorados... Jocastas chamava eu às enfermeiras pára-quedistas que conheci, de relance, no mato, no Vietname, longe de Bissau... Não aceitava que não levassem os nossos mortos, mas apenas os feridos. Hoje percebo porquê... E reconheço que não terei sido tão justo quanto o deveria ser, na minha apreciação do seu papel no TO da....

Também reconheço que todos nós temos uma dívida para com estas mulheres que, corajosamente, foram os anjos da guarda dos nossos camaradas, caídos ao nosso lado... Uma evacução Y na Guiné, em tempo recorde (20/30 minutos), podia significar a diferença entre a vida e a morte.

Foram também as primeiras mulheres a ingressar, contra tudo e contra todos os preconceitos, nas nossas Forças Armadas. Acho que o país não lhes fez ainda a homenagem que lhes é devida, em tempo útil. Aceita, Giselda, este pequeno gesto como um reparação de uma pequena injustiça (da minha parte) e sobretudo uma homenagem (da nossa Tabanca Grande), a ti, e às restantes camaradas enfermeiras pára-quedistas que serviram na Guiné e nas demais frentes da guerra do Ultramar.

(...) Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas.
O terror das crianças balantas,
Nascidas no mato,
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das GMC.
O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher.
A Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.
O médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados
E aspirina
Para os pretos.
As lâminas de aço dos rockets,
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.
O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm no cardápio
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa,
E coisa boa,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Vítima da hepatite! (...)



Caro Luís:

Segue a história da queda da Giselda no Como (de que já tínhamos falado).

Junto umas fotos que poderão amenizar o texto - escolhe as que quiseres. Duas delas apresentam o piloto - Fur Ivo Mota - junto dos restos do avião.

Não tenhas pressa em publicar. Já sabes o fim da história - ela safou-se... E eu não gostaria de "ficar com a imagem desgastada" (como é costume dizer-se) e com o pessoal farto de ler os meus alinhavos, por serem seguidos (e provavelmente de qualidade duvidosa...)

Um abraço
Miguel Pessoa

2. UMA DO-27 NO CHARCO DO COMO
por Miguel Pessoa

Na manhã do dia 17 de Novembro de 1973 o Centro de Operações do Go1201, na BA12, recebe um pedido de evacuação, vindo de Catió, tendo de imediato destacado um DO-27 para efectuar essa missão. A equipa de alerta era constituída pelo Fur Ivo Mota, da Esq 121, e pela Enfª Paraquedista Giselda Antunes, e a eles se juntou a Enfermeira Paraquedista Natália Santos, acabada de chegar à Guiné e que, por ser pira, acompanhava as veteranas nas evacuações, para ganhar calo.

Estava-se já na época pós-Strela, que tinha trazido diversas restrições à navegação aérea. Entre a opção de subir para 10.000' [c. 3000 m], descendo depois à vertical do destino, o piloto optou pela outra opção possível, que era a de efectuar todo o voo a baixa altitude (50' a 100' sobre o terreno - o correspondente a 15 a 35 metros).

Para evitar zonas mais perigosas o Fur Mota decidiu então seguir ao longo da linha de costa, sobre a água, contornar a ilha de Como (refúgio do PAIGC), subir o rio Cumbijã e, atingido Cufar, dirigir-se em linha recta para Catió.

O voo decorria normalmente a baixa altitude; à passagem por Bolama tiveram a oportunidade de ver o navio que fazia o transporte de víveres e material, que se dirigia para sul. O DO-27 não parecia ressentir-se de qualquer problema resultante do incidente da véspera. O avião sofrera um choque com um pássaro que lhe tinha acertado no hélice, mas a inspecção feita ao avião no intervalo dos dois voos não tinha detectado qualquer anomalia.

Quando sobrevoavam os tarrafos ao lado da ilha de Como, o avião resolveu apagar-se - o motor parou repentinamente, obrigando o piloto a uma reacção rápida para preparar uma aterragem de emergência. Dada a baixa altitude a que seguiam, a única solução era poisar o estojo na direcção em que seguiam, em pleno tarrafo, o que o piloto fez - diga-se - com bastante êxito, pois o avião ficou atolado no lodo, mais ou menos direito, tendo os ocupantes saído ilesos desta aterragem (ou mais propriamente alodagem).

Quem esteve na Guiné sabe bem as diferenças no contorno das margens (no mar ou nos rios) entre a maré cheia e a maré vazia. Neste caso era hora da maré baixa e a água, tendo descido, deixara o tarrafo coberto de uma espessa camada de lodo.
Rapidamente, os ocupantes abandonaram o avião procurando, atascados no lodo, alcançar uma zona de águas mais profundas, onde pudessem, mergulhados, ficar menos expostos a olhares da margem e ser eventualmente pescados pelo navio que pouco antes tinham visto a navegar naquela direcção.

Ter-se-iam passado duas horas desde a aterragem forçada no local quando detectaram uma embarcação do tipo Zebro que se aproximava do local, atraída pela silhueta do DO-27 atolado. Desconfiados, continuaram metidos na água pois a distância não permitia uma identificação eficaz do pessoal que se aproximava. Com a aproximação do zebro puderam verificar que os tripulantes eram brancos, o que os levou a chamar a sua atenção. Rapidamente foram recolhidos e levados para o navio de guerra a que o zebro pertencia e que se aproximava entretanto do local.

Na BA12, entretanto, alertados pela falta de reportes do DO-27, tinham mandado descolar um Fiat G-91 que, seguindo o percurso mais provável voado pelo DO, veio rapidamente a localizá-lo no tarrafo. Imediatamente a Força Aérea pediu a colaboração da Armada, que deslocou uma segunda embarcação para o local.

Terá então havido aqui alguma falta de comunicação pois o segundo navio atarefava-se na busca do piloto no local quando este já se encontrava no primeiro navio. Mas mais vale a mais do que a menos...

O facto é que, depois de recuperada pela Armada, mesmo sem dispôr de material (perdido no acidente), a enfermeira Giselda ainda foi fazer a evacuação a Catió, num outro avião entretanto disponibilizado, que serviço é serviço...

No dia seguinte, uma LDG da Armada iniciou os trabalhos de recuperação do avião, aproveitando a fase da maré alta, que permitiu a aproximação ao local. A içagem do avião infelizmente não correu tão bem como se pretendia. Na primeira tentativa o DO acabou por cair novamente na água, ficando ainda mais danificado... Provavelmente foram maiores os estragos nessa altura do que na altura da queda! Não foi no entanto importante, pois o destino dele seria sempre a sucata. A deformação da estrutura e a corrosão da água do mar tinham provocado danos irreparáveis no avião.

Podemos imaginar que o fim feliz deste acontecimento se deveu a um conjunto de factores favoráveis que podiam muito bem não ter acontecido:

(i) O facto de o avião voar bastante baixo, não sendo observável das tabancas existentes;

(ii) A aproximação final do avião ao ponto de queda com o motor parado, não tendo, pelo seu silêncio, alertado ninguém próximo (detectou-se depois uma tabanca com população presumivelmente hostil a cerca de 700 metros);

(iii) A existência de um navio da Armada, em missão de vigilância próximo do local, o que permitiu a rápida recuperação dos ocupantes do DO-27.

Miguel Pessoa
_________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3891: FAP (11): Jorge Caiano, ex-Melec/AV, BA12, 1969/70, reconhecido por Augusto Ferreira

1 comentário:

Anónimo disse...

No meu Diário da Guiné, depois em livro pag. 161, escrevia eu
em Cufar, 19 de Novembro de 1973

"Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo. Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos “zebros,” ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.
Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPGs e morteirada. Houve um pobre soldado que corria para um abrigo e foi atingido por um estilhaço de canhão sem recuo que lhe perfurou o crâneo. Contaram-se mais meia dúzia de feridos. Era já noite quando os sintex trouxeram o ferido grave para Cufar e aqui aguardámos duas longas horas por um avião que transportou o rapaz para o Hospital Militar de Bissau. Como de costume, iluminámos a pista com as garrafas acesas e os faróis das viaturas. Quando o avião desceu, já o soldado estava a oxigénio, a caminhar para a morte. Na madrugada de hoje, no hospital, não resistiu. Tinha perdido massa encefálica, o estilhaço apanhara-lhe o cérebro.
Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu."


Escrevo agora, 15 de Fevereiro de 2009. O avião era o Noratlas que fazia estas evacuações nocturnas no nosso aeroporto de Cufar. Foram muitas, infelizmente.
Mas voavam corajosamente e davam apoio, ao contrário de muitas almas maldizentes que no blogue, e sobretudo, fora dele, se têm entretido a dizer que, com os Strela, a guerra acabou, perdemos
a supremacia aérea (para quem?), os guerrilheiros eram militarmente mais fortes do que nós, etc.
Mais uma vez, obrigado, António Martins de Matos, Miguel Pessoa, as enfermeiras pára-quedistas e outros heróicos pilotos e mecânicos da Força Aérea, com quem tive o gosto, a honra de partilhar o meu dia a dia, em Teixeira Pinto, em Mansoa, em Cufar.
A História faz-se com a verdade.
Um abraço,
António Graça de Abreu