quarta-feira, 22 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4235: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (3): Recordar aos poucos ou circuncisão espectacular

1. Em 21 de Abril, Helder Sousa (*), ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72, enviou-nos esta mensagem, relembrando uma mais antiga:

Caro Editor-Chefe.

No passado dia 24 de Março enviei este mail para o endereço recomendado do Blogue.
Foi só para ele.
Como entretanto li que, devido à possibilidade de acumulação de material, era recomendável enviar-te também para este teu endereço do gmail, aqui o estou a fazer.
Se achares que deve ser encurtado ou coisa assim, podes dizer que tratarei de o dividir como conseguir.

Até lá, votos de continuação de bom trabalho (mereces mais do que uma menção honrosa, mereces AJUDA!) e até breve.

Um abraço
Hélder S.


2. Mensagem anterior com data de 24 de Março de 2009:

Caros camaradas Luís, Carlos e Virgínio

Junto anexo um texto que escrevi a propósito da questão das memórias.

A partir duma pequena parte dum texto colocado no Blogue, recordei-me dum episódio que se tinha passado comigo e da qual já nem me lembrava.`

É essa situação que relato.

Acho que o processo da reconstituição da memória colectiva deve passar por um processo semelhante, com avanços assentes nos vários contributos que todos, e cada um, consigam fazer aportar a este rio comum, que é o nosso Blogue.

Se acharem que tem cabimento, publiquem.

Um abraço para toda Tabanca, do tamanho do rio que escolherem.
Hélder Sousa


RECORDAR AOS POUCOS

Esta coisa da memória de cada um, tem que se lhe diga.

Vou relatar um episódio que se passou comigo, que agora recordei, e desde já peço desculpa, principalmente ao Alberto Branquinho, por ir falar de mim e do meu umbigo…. ou quase!

Durante anos praticamente esqueci a Guiné mas através do nosso Blogue, pelas leituras dos relatos, das histórias dos vários intervenientes, pelas conversas que entretanto se vai tendo com os novos amigos ou com os antigos reencontrados, lá se vai fazendo cada vez mais luz.

Por exemplo, tenho dito que passei cerca de 6 meses (não chegou bem) em Piche, junto da sede do BCAV 2922. Sei que cheguei lá no início de Dezembro de 1970, dia 4 ou 5, não me lembro bem, e regressei a Bissau no final de Maio de 1971, salvo erro a 25, pelo menos é neste momento a ideia que tenho. Pelo meio, aí pelo dia 15 de Abril de 1971 (desta data tenho a certeza) fui a Bissau onde passei lá alguns dias, voltando a Piche talvez uma semana depois.

É absolutamente certo que me lembro como foi a primeira viagem de ida. Fui num avião grande, cheio de gente, militares e nativos que tinham estado em Bissau num acontecimento promovido pelo General Spínola e que se chamou Congresso dos Povos ou coisa assim parecida, que levava também várias caixas com material e alimentos e voei até Nova Lamego. Aí fiquei um ou dois dias (não me lembro exactamente) e depois integrei a coluna para Piche.

Quando vim a Bissau, em 15 de Abril de 1971, para recolher o material com vista a reequipar o novo Posto de Transmissões de Piche, fiz a coluna de Piche a Nova Lamego, segui depois até Bafatá integrado num conjunto de viaturas que também para lá se dirigiam. Aí segui para Bambadinca num combóio de apenas 2 Unimogs. Em Bambadinca estive com um Fur Mil de Transmissões do curso anterior ao meu, chamado Vítor Caniços, que me contou ter havido na véspera (14 de Abril de 1971) um forte ataque a Catió onde o meu amigo e colega de curso Nélson Batalha (de quem já falei), conterrâneo de Setúbal do Vítor, tinha ficado ferido e alvo de evacuação para Bissau. Fui depois até ao Xime e aí embarquei na Bor até Bissau.

Não consigo recordar-me como fui até ao Xime. Se foi ainda no mesmo dia, se fiquei dum dia para o outro em Bambadinca, nem que transporte tomei. Do Xime recordo-me da rampa que me pareceu íngreme (coisa rara na Guiné) até ao cais. A viagem que fiz na Bor não foi muito distinta do que já li no Blogue. A emoção da descida rápida do Geba estreito, a carga absolutamente indescritível daquele ferry, com material e equipamentos militares, elementos da população, animais soltos e em gaiolas, tudo numa absoluta molhada, a atenção sempre ao máximo à espreita do que se podia passar nas margens, que se revelavam misteriosas e perigosas. Mais à frente, quando o Geba se alarga a perder de vista, depois de receber o Corubal, com o barco bem afastado das margens, começa a levar com ondulação forte, de frente, que fazia refrescar toda aquela parafernália de pessoas e coisas que se amontoavam a descoberto. Aí a molhada ficou toda molhada!

Chegado a Bissau, apresentei-me junto do meu comando das Transmissões, visitei o meu amigo ferido no Hospital (eu tinha jogado às moedas com ele para ver quem ia para Piche e quem ia para Catió), inteirei-me do que tinha que fazer quando regressasse ao mato, identifiquei o material e, passados uns dias lá fui de volta a Piche. Ainda hoje não me consigo lembrar o que fiz e como foi.

Quando em Piche a missão ficou cumprida lá regressei finalmente e Bissau, em princípio para ir (pensava eu, como me tinham prometido) para Teixeira Pinto ou Bolama, como recompensa por ter sido destacado para zona considerada problemática (aqui para nós, qual é que não era?), mas acabei por me imporem o Centro de Escuta. Mas isso é outra história.

O que importa é que essa viagem final, aquela que me levou de vez de Piche a Bissau, também está obliterada. Não me consigo lembrar o que fiz. Tenho uma vaga ideia de ter ido de coluna até Nova Lamego mas depois suspeito que tomei um avião.

Circuncisão ao vivo e a cores

Portanto, como disse, isto da memória vem aos poucos, à medida que se vai lendo e relacionando as coisas. Sendo assim, ao ler o P4013 (**), com o relato de passagens do livro “Diário de Guerra” de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins), lá aparece o registo que no dia 10 de Maio de 1965 o autor desse livro esteve no HM 241.

Reza assim o tal registo:

“Hospital Militar de Bissau, para uma pequena intervenção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século.”


Esta anotação fez-me recordar que uma situação semelhante se passou comigo e que afinal, não havendo naquele tempo Serviço Nacional de Saúde nem tendo a esmagadora maioria dos pais dinheiro para gastar com médicos, onde só se ia (os que iam) quando alguma doença mais visível aparecia, muitos jovens daquela época tinham problemas parecidos e cuja resolução só seria ultrapassada pelo tempo. À data, antes da entrada no serviço militar, havia em Vila Franca de Xira, onde vivia, um médico, carinhosamente conhecido como médico dos pobres, o Dr. Rodrigues Pereira, pai de um homem muitas vezes citado no nosso Blogue, principalmente através dos escritos do Beja Santos e da Cristina Allen, o Dr. David Payne, que ajudava em muita coisa mas não era possível atender a tudo e a todos.

Por isso, quando estava em Piche, alguns camaradas relataram os seus problemas e como eles tinham sido resolvidos graças à intervenção dos médicos do Batalhão que se disponibilizavam para o efeito.

Comecei também a ganhar coragem para me submeter à necessária intervenção cirúrgica e fiquei esperando pela oportunidade. O BCAV 2922 tinha no seu quadro três Alferes Médicos, Hermano Gouveia, Fausto Gomes e Roando Álvares, e havia um, pelo menos, sempre em permanência na sede do Batalhão. Comecei a tentar convencer o Dr. Hermano mas acho que foi com o Dr. Fausto que fui à faca.

Quando finalmente ficou acordado o dia, o que acham que aconteceu? Uma coisa simples, como a relatada no livro do Cristóvão? “”, nada disso!

O médico resolveu transformar aquela pequena intervenção cirúrgica numa aula pública e de ensino colectivo.

Quando me encontrava deitado de costas em cima da marquesa, em situação, digamos assim, indefesa, calças em baixo, com o médico e o Furriel Enfermeiro Santana (já nos conhecíamos de Santarém) a começar os preparativos para desinfecção e outros procedimentos, a sala de operações foi literalmente invadida por todo o pessoal afecto ao serviço de saúde e também por mais meia dúzia de outros amigos que se divertiram desinfectando tudo o que podiam. Aquilo é que foi uma alegria! Tintura de iodo e outros desinfectantes pintando desenhos vários no peito, barriga, umbigo (cá está o umbigo), pernas, enfim….

Nessa altura o Dr. disse que tinha boas e más notícias para mim. É que não tinha agulhas finas para dar a injecção com o anestésico no local a cortar, o que queria dizer que iria doer mais mas, por outro lado, sendo a agulha mais grossa também corria menos riscos de se partir… Além disso, para compensar, iria providenciar uma espécie de anestesia apropriada à circunstância, que me faria não sentir a dor da própria injecção, coisa que na altura não percebi o que podia significar.

Então, no meio daquela feira, daquela alegre confusão (alegre para eles, que eu transpirava como se pode calcular e estava muito apreensivo) o nosso Dr. faz um sinal com a cabeça ao Furriel Santana que se encontrava ao meu lado direito e que me afinfa uma valente cotovelada na zona do fígado, abaixo das flutuantes, que me tirou literalmente o ar, provocou uma dor e uma contracção muscular por toda essa zona que me fizeram ficar imóvel e, enquanto isso, o maquiavélico Dr. aplicava a tal injecção com a agulha grossa.

Feito isso, que eu nem senti, passou a fazer o que tinha de ser feito, cortando e cozendo e tudo correu depois como previsto.

Medicado e entrapado lá recebi a recomendação de agora, durante uns dias, nada de esforços…”. Isso é que era bom… nessa mesma noite, o IN, como que para entrar também na festa, lá resolveu fazer uma flagelação, com alguma intensidade, e vá de ir para a vala de protecção, tentando rastejar o menos possível. Resultado, um ponto rebentado e novos cuidados

E pronto, este relato já está!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
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OBS:- Os editores agradecem a compreensão do Helder Sousa e o reenvio deste texto, que damos hoje a conhecer aos nossos leitores.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4025: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (2): "Conta-me como foi" ou há mesmo coincidências

(**) Vd. poste de 11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

5 comentários:

Anónimo disse...

Boa, Helder!
Comecei a ler contrariado, por ser chamado à história, mas logo comecei a rir e acabei a RIR BEM!
Mais do que uma circuncisão foi uma CIRCUM-OBSERVAÇÃO...
Por outro lado quero dizer-te que os meus UMBIGOS procuraram atingir os que falam/escrevem SÓ E SEMPRE sobre o seu próprio umbigo!
Aliás o último UMBIGO está neste momento a aguardar publicação no blogue.
GRANDE FANADO!
Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

Hélder, "é na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"... O provérbio é popular e antigo. E sobretudo muito adequado à tua situação...

Imagino o teu embaraço... Uma história de cinco estrelas, contada com muito bom humor... Mal ou bem, ficaste com o problema resolvido...

De facto, eram os cuidados de saúde possíveis que tínhamos, na tropa, mesmo assim bem melhores do que os da generalidade da população portuguesa, não abrangida pelos então serviços médico-sociais das Caixas de Previdência... Em muitas aldeias, no interior do país, chamava-se o médico só quando se estava a morrer...

Em todo o caso, um dos 'crimes' de que fomos vítimas foi a nível da saúde oral... Não havia dente cariado ou mal amanhado que não fosse arrancado, pelos tiradentes da tropa... No mata, náo havia dentistas, portanto o melhor era prevenir as dores de dentes, cortando o mal pela raíz... Fizeram-se barbaridades...

A malta da nossa geração que foi ao Ultramar tem, por isso, umas bocas que metem medo...

Temos aqui falado muito pouco dos nossos médicos e enfermeiros no mato... Gostava que aparecessem mais histórias como a tua... Um Alfa Bravo. Luís

Luígi disse...

Não resisto a meter a colherada, porque também fui intervencionado (ao pirilau).Então,no período de recuperação, foi necessário ter sempre junto à cama um balde de àgua fria, para combater as erecções...mergulhando os pulsos!
Luis de Sousa.

António Matos disse...

O tema proposto é, sem dúvida, aliciante pelas estórias que esconde sabendo-se que aquilo que hoje é pernicioso, naquela época era pura virilidade e passaporte para a fama …
Há, porém, que ter sempre em atenção a versatilidade da língua portuguesa que nos põe frequentemente expostos ao ridículo e à chacota.
Recordo um exame do antigo 7º ano, em Guimarães, onde um grande amigo fazia prova oral de literatura.
O professor, reitor à época, lançou ao meu amigo o repto : sabes o que é uma catacumba ?
Com a maior alarvidade que o ridículo não precavê, o meu amigo, feliz porque viu nessa pergunta uma maneira de brilhar e tirar uma boa nota, começa a descrever pormenorizadamente, uma catapulta.
O ar de gozo do professor e as gargalhadas abafadas de todos nós na assistência, não perturbaram o meu amigo que continuava embevecido com a sua cultura ….
Acho que chumbou …

Na estória do Hélder, lembrei-me da existência de Confúcio, o filho mais novo dos onze que seu pai tivera ao casar com uma miúda de 15 anos ….
Daqui à chamada à consciência do perpúcio, foi um ápice.

Não convirá, portanto, cortar o confúcio e deliciarmo-nos com os ditos do Perpúcio pois isso levar-nos-ia de gargalhada em gargalhada até aos gabinetes de alguns dos médicos da nossa guerra onde o arranque dum dente era decretado pelo especialista de reumatologia e as hemorróidas se arriscavam a serem espremidas tipo furúnculo pelo estomatologista que, por azar nosso, teria sido colocado como responsável pela boa saúde dum qualquer batalhão ou companhia algures perto duma bolanha ….

Não consigo parar de rir com a pré-anestesia aplicada ao Hélder ….
António Matos

Anónimo disse...

Caro Hélder,

Comecei a ler-te e estava a ver que, tal como a mim já me acontece, ias levar um ZBM2 por não conseguires por a memória de pé. Disse memória, não foi? OK.
-(Para quem desconheça, ZBM2 era o código utilizado pelos operadores do STM para pedirem outro operador. Por não ser permitido dialogo por morse todas as situações eram traduzidas por códigos)-

Mas acabaste em grande forma e cheio de pujança, espero.

Um grande abraço.
BSardinha