1. Segunda história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim"
COÁGULOS
Ninguém é novo demais, ou velho, para morrer.
Morre-se, simplesmente, na hora certa, no fim da vida, tenha-se ou não vivido muito, esteja-se ou não cansado disto e pronto para partir.
Morre-se de imprevisto, sem ninguém esperar, às vezes por uma coisinha insignificante, um momento de distracção, até parece.
A vida toda a correr bem, vendendo saúde, amigos no convívio, afectos... e, pumba. Uma escorregadela, um parafuso que salta, um travão que falha, uma curva apertada... uma veia, uma artéria que ninguém tinha visto apertada, uma gota de sangue, um coágulo que se intromete no fluir corrente... uma bala perdida.
Ou se morre, simplesmente, quando todos já o esperam, de doença descoberta e prolongada, acompanhada por médicos e tratamentos, o corpo exaurido, a alma esfrangalhada, sem forças nem vontade para continuar.
Ninguém é novo demais para morrer, repito.
A vida chega-nos sem que nada tivéssemos feito antes para a ter, oferecida, em berço d'ouro ou enxerga, e respirámo-la, sorvemo-la, agarramo-nos como náufragos desde o primeiro momento, incrédulos ainda de aqui estarmos, tão perto do nada do minuto precedente, do vazio que era o não ser... e enchemo-nos dela, ávidos, por um temor qualquer, imediato e instintivo, de regressarmos ao nada, ao limbo, à outra zona do não conhecer e do onde viemos.
Mais tarde julgámo-nos os donos do mundo!
Mamamos na teta, na da mãe e na da cabra. Trambolhões, escapamos duma, escapamos de outra. A vida corre e engrossa-nos a confiança, a certeza de que tudo corre sobre rodas, o sentimento de que o mundo é justo ou injusto; a convicção de que a água, correndo sempre para baixo, num sítio qualquer da corrente, podemos pará-la, podemos contê-la por momentos, inverter-lhe o fluir, levá-la de novo à nascente.
Ninguém é novo demais para morrer, trerepito!
A vida não se mede aos quilos, bem ou mal pesados, excessivos ou roubados no peso, nem nos anos que se contam na cédula pessoal, no B.I., no processo individual da empresa que nos paga os dias de trabalho, no caderno de recenseamento eleitoral, na ficha da polícia se já nos convocaram para entrevista em esquadra, ou mesmo que não.
Morre-se, simplesmente, quando Deus quer, dizia na minha aldeia o Manuel da Cruz, ou um tio se distrai, acrescento eu.
Como no caso da Guerra.
Dizem-nos: - A Pátria está em perigo! Tens de a defender até ao sacrifício da própria vida - e lá vamos nós cumprir a sina, de saco na mão e arma ao ombro da coragem ou do medo, da sorte ou do azar, às vezes morrendo ou vivendo por pequenas coisas, por um quase nada.
Como aconteceu com o Dias, Soldado de Transmissões da minha Companhia de Infantaria, destacada na zona de Guiledje, numa terrinha chamada Medjo, rodeada de mata densa, bicharada, aquartelamentos do IN tão próximos que quase nos podíamos ofender de voz, pessoalmente gritada, de cá para lá e de lá para cá.
Ao Dias disseram que estava no tempo certo de largar a aldeia, o ofício de mecânico que começara a aprender mal saíra da primária, de agarrar no bornal e se fazer ao caminho da tropa.
Foi a primeira vez que largou a asa da mãe, passou a Serra da Neve e se afastou a Sul do mapa pendurado na escola do Caldeira.
Havia de lhe calhar, mais tarde, depois de andanças pela geografia do País, fechado nos muros altos de dois ou três quartéis, ordem unida, Mauser, AN-GRC9, o PRC-10, os Alfa, Bravo, Charlie, Delta, embarcar na Rocha do Conde de Óbidos, despejado, por assim dizer, cinco dias depois, em cascos de rolha.
Não vamos falar aqui das coisas interiores do Dias, das suas esperanças, do modo de ver a vida, do convívio com o anarca do Arnaldo, e com o outro, o da PSP que queria ser da PIDE e prender comunas, coisa que nunca chegou a saber o que era.
Nem falaremos da sua figura física de portuga das Beiras, aldeão, fazendo diariamente o caminho da aldeia à vila, e vice-versa, pendurado numa bicicleta de segunda ou terceira mão, para ir aprendendo sobre cárteres, pistons, velas, bobines e o diabo a sete dos motores de explosão.
Não falaremos destas coisas, embora eu lhas conheça bem, para não perdermos tempo com desimportâncias, porque importante mesmo seria ver-lhe a qualidade de soldado, no número de identificação que lhe gravaram na chapa dependurada do pescoço, picotada a meio para os fins que sabemos, na devoção com que se entregava ao saber sobre os emissores/receptores, no ar de submissão que trazia da aldeia e se acentuara sob as ordens dos senhores sargentos e oficiais.
Provavelmente porque a Guiné cansava mais do que outros lugares da nossa guerra, e talvez porque de Super-constelation se fazia em pouco mais de sete horas (mais tarde, em cerca de metade no Boing 727-100) quase todos os que conseguiam reunir meios para passar um mês de férias na terra, compravam o bilhete da TAP e faziam o seu baptismo de voo.
Cheguei à minha aldeia, no início de Julho, de gravador Sony nas mãos queimadas dos canos da G3 que no escuro da noite, soldados me passavam à vez, na boca de um abrigo feito de cibos, lata e terra (preferia morrer a céu aberto) e eu despejava por cima da paliçada, em inimigos que não via mas adivinhava pelo rastro das rastejante e pelas saídas de morteiros e canhões sem recuo.
Fim de Julho, festa de Verão na aldeia, banda de música no coreto, bailaricos, gado bravo no cercado, o forcado que era antes da partida, estão a ver a felicidade quase sólida ali nas mãos, mesmo que faltassem apenas dois dias para voltar a Mejo.
Na Segunda-Feira da festa, entre umas imperiais e uns tremoços, o carteiro entrega-me um telegrama que havia chegado da Guiné, curto, seco, violento.
"Dias morreu Xinxi-Dari. Ponto. Outro morto feridos outras secções. Ponto. Oliveira ferido grave Hospital Estrela. Ponto. Dá apoio antes voltares. Ponto. Loja".
Grande murro no estômago!
De repente desabou tudo sobre mim.
Olhava, tanto quanto me lembro e os amigos diziam depois, olhava de olhar parado, a gente à volta, falando comigo "o que é que foi pá diz lá porra" e, nada, niqueles, perdera a palavra.
O meu pai tirou-me o telegrama da mão e leu. Ficou parvo também mas não perdeu nem a fala, nem a ternura. Tirou-me da cadeira já as lágrimas me corriam abundantes.
O Dias era Soldado da minha Secção e morrera sem mim.
O Oliveira era da minha Secção e jorrara o seu sangue em Xinxi-Dari sem mim.
E os outros de quem não constava nome no telegrama, que eram da minha Companhia, haviam morrido sem mim.
Logo ali, à frente de todos, o meu pai garantia:
- Agora é que vais mesmo para fora. Já não voltas a essa terra de doidos. O Salazar que se f...
Naquele momento nem ripostei. No dia seguinte, bem cedo, autocarro da Bucelence, Lisboa, voltas e mais voltas na Estrela, um mundo de mortos-vivos, até que encontrei o Oliveira. Não iria morrer, pareceu-me, embora me tivesse afiançado que alguém na mata lhe apanhara intestinos. De mais importante para lhe dizer apenas a merda de um consolo vazio no estado de alma que tinha de lhe esconder. "Olha, Oliveira, daquilo estás safo!"
À noite, de novo em casa, poucas falas para trocar, o meu pai seguro de que me poria na fronteira e eu remoía ainda os pequenos nadas da tragédia.
Antes da cama tudo ficou claro entre nós. Medjo iria continuar a ser a minha Pátria por mais alguns meses. A mala já estava feita. O meu pai iniciou ainda a argumentação, mas calou-se com as lágrimas que me haviam rebentado de novo.
E nem precisei de dizer-lhe que me sentia miserável por ter deixado morrer aqueles amigos sem a minha presença de arma na mão.
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4453: Vindimas e Vindimados (José Brás) (1): O Correio da Malta... e o enfermeiro, herói do dia
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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12 comentários:
Porra, Zé Brás, esta é forte!
Mas penso que era exactamente este o sentimento que muitos (pelo menos alguns) de nós para lá foram.
O de estar junto dos nossos, aprender e sofrer com eles, ganhar força e coragem para poder mais tarde fazer o que fosse preciso.
Um abraço
Hélder S.
Estou siderado !
Li de um fôlego este fabuloso texto e só lamento se o mesmo não vier a ser aproveitado, não como nota de rodapé, mas como verdadeiro ícone das milhares de estórias que a guerra proporcionou mas que se mantiveram secretas nos baús das nossas memórias até que o "Luís Graça & Camaradas da Guiné" lhes deram vida e o merecido protagonismo.
José Brás, parabéns e bem hajas por me teres revirado as tripas e feito recordar situação semelhante lá para os lado de Bula.
Um abração,
António Matos
Um abraço forte Camarada...um abraço forte.
Palavras para quê se um homem fica entupido?!Porra!
Abraços do Torcato
Sr.Zé Brás,
É sempre gratificante ler os seus textos.
Muito lindo e comovente.
Cumprimentos,
Filomena
José Brás,
Tenho dúvidas e interrogo-me por vezes a razão de estar sempre que posso de olho no blogue. Julgo saber agora o porquê, os camaradas/amigos com quem estive mas que partiram sem que eu estivesse ao seu lado nesse momento.
São textos como este que nos unem, se não nas causas, pelo menos nos sentimentos.
Um abraço
BSardinha
Este belo texto é uma prova da
atribuição,em 1986,do prémio da
APE.Bem-Hajas Zé Brás
Abraço
José Brás
Quando o Homem é o Companheiro, a responsabilidade de o ser é maior. Tornamo-nos Pais solidários, responsáveis dos dos Amigos que de nós dependem e de quem dependemos. Temos sobre os ombros o peso duma responsabilidade e a Consciência da interdependência.
Como o Hélder disse:Porra, Zé Brás, esta é forte!
E, de igual modo o Torcato toca na Alma:Palavras para quê se um homem fica entupido?!Porra!
Abraço forte, do
Santos Oliveira
Apenas, ou tão só um abraço, porque as palavras não chegam!
FABULOSO!
ABSOLUTAMENTE FANTÁSTICO!
AS PALAVRAS E OS SENTIMENTOS BROTAM DE TI NUMA SEQUÊNCIA INFINITA.
É UM NUNCA MAIS ACABAR DE HUMANISMO EXPRESSO EM CADA LINHA,QUE SORVEMOS COM INUSITADO PRAZER.
UM HINO À SOLIDARIEDADE,À COMUNHÃO DE SENTIMENTOS,QUE TODOS EXPERIMENTAMOS LÁ LONGE, E QUE HOJE CONTINUAM BEM VIVOS DENTRO DE NÓS.
LER-TE,FAZ BEM...
OBRIGADO ZÉ BRÁS.
Tenho a certeza que o teu pai, onde quer que esteja, é um homem feliz e orgulhoso de um filho que, naquelas circuntâncias, tomou a única decisão possível: a de estar ao lado da sua outra família.
Os grandes homens e os grandes chefes conhecem-se na hora da verdade.
Honra de seja feita.
José Câmara
Por a tua prosa ser de uma beleza extra, foi a 1ª vez que li em voz alta um texto do blogue para a minha cara metade. Com a excepção das sextilhas do Maia.
Retribui-me com o Recreio de Mário Sá Carneiro.
Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar.
E o menino do bibe
Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia
(e já vai estando esgarçada)
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...
.Cá por mim não mudo a corda.
Seria grande estopada...
Se o indez morre, deixa-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca...Deixa-lo...
Balouçar enquanto vive...
Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
Mário de Sá Carneiro como se sabe suicidou-se num Hotel de Nice tomando estricnina.
Já tive anteriormente a oportunidade de referir ao José o meu apreço por este texto fabuloso. Não é demais lembrá-lo agora pois faz de muitos de nós actores em outras histórias idênticas. Miguel Pessoa
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