Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (IX)
Bissau, 20 de Setembro de 1966
A Otília embarcou hoje para Lisboa. Viemos de cima, do mato, há três dias. Seguiu há pouco num avião militar, com uma barriga enorme de quase sete meses. Deve nascer o pimpolho em fins de Novembro, princípios de Dezembro. Vou ficar em Bissau durante mais uns tempos para me tratar, que não consegui aguentar-ne nas canetas psicológicas.
Bissau, 26 de Setembro de 1966
Poema para minha Mãe, que faz hoje quarenta e sete anos de vida:
“O MENINO DE SUA MÃE”
- Mãe, que é do teu menino,
Tão breve,
Brincando no caminho,
Em corridas de pé leve,
Guindando as poças da chuva,
Que caía em desatino
E logo estiava num instantinho?
- Que será feito do arco e do pião
E da fieira que se apertava no bojo como uma luva
Que o teu menino, à mão, zunindo, o lançava,
E da Lua clara que nem lampião,
Que, vagarosa, no céu viajava?
- Onde o marulho do mar
Que aquietava o teu menino,
E dos barcos de papel
Nas valetas rasas de água a cirandar?
Que lhe destinaram do destino
De flores e mel
Que lhe afiançaste outrora?
E da Paz das noites benditas,
Do Deus em que ainda acreditas
E que o teu menino foi esquecendo,
Não O compreendendo
Por desdita agora?
- Onde o berço
Em que o embalavas,
E das preces da hora do deitar
- Nunca o terço!
(Com Deus me deito, com Deus me levanto...)
E dos casos que lhe contavas,
E das cantigas soando a mar
(Assim era o teu canto!)
Que devagarinho entoavas
Para teu menino nanar?
- Dize-me, Mãe, onde morreste
O teu menino?, em que desvão o escondeste
Para o ir procurar?
- Sabes, Mãe, o teu menino está tão diferente:
Velho e absorto
E sobretudo tão ausente
(Dir-se-ia quase morto)...
O teu menino
Já não salta ao eixo
Rebaldeixo
No adro paroquial,
Nem no cimento da Avenida...
Nem tão-pouco joga (o que é o destino),
O seu pião de fieira colorida,
Que há tanto tempo se rachou...
E o arco de ferro forjado,
Com a sapata feita do mesmo metal,
Foram-se enferrujando num recanto
Da encantada casa-de-trás...
Depressa o tempo foge
O teu menino tornou-se rapaz
E dá a viva ideia de que é hoje
Uma visão alucinada de soldado...
Onde já lá vão as guerreias
Travadas na Canada da Sabina
Em que havia muita pedrada,
Baba e ranho, alarido e arengada,
Chegando o sangue a esguichar das veias?...
Ficava a Canada quase em frente
Da casa de madrinha Rufina,
Que um dia se despediu da gente
E se foi para a América no voo da carreira...
Tudo então se passava entre o rapazio:
Os de Cima e os de Baixo, que, cheios de brio,
Defendiam à tapona e à porrada
A rigorosa fronteira
Que separava os de cada lado da Canada...
Entretanto toda a vida se enrodilhou,
E ela tem agora um travo a puro fel...
Só da noite mais noite é tecido o teu menino,
Vive ainda em maior escuridão que o destino,
Que se não cumpriu e ficou em ruínas
- São as nossas sinas
Mas nunca se há-de ele esquecer
Que um dia que já não existe
De teres prometido ao teu menino
(Ele não se lembra agora se já então era triste),
Embarcado em seu batel de ilusão
E de papel,
- O tal destino
Que, como vara de condão,
O haveria de transmudar em flores e mel...
Todavia, cá dentro, ele permaneceu e continua refém...
Há-de ser resgatado, quem sabe, na Banda do Além...
A tua bênção me cubra, minha Mãe!
Bissau, 27 de Setembro de 1966
Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiro de Walter e de G3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G3. Mas eu pagava o prejuízo aos seus donos. Se era alta noite, gritava pelo cozinheiro e seus ajudantes e mandava que esquartejassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Chamava depois os indígenas, seus donos, logo de manhã ao quartel, perguntava-lhes o preço dos animais e pagava o que me pediam. Matava gatos também, mas esses tinham sete fôlegos e levavam muito tempo a morrer: esperneavam e miavam de tal maneira, que quase me endoideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria com cavalo marinho que dei num furriel. Mandei a Otília para casa de um comerciante cuja mulher convivia por vezes com a minha, pretextando-lhe que queria ter uma conversa em particular com um militar. Foi a gota de água que fez com que o médico da companhia me viesse a sugerir, com muito bons modos, que, quando fosse a Bissau levar a Otília, ficasse por lá, a fim de descansar. Estava com o meu grupo de combate em Sonaco há mais de um mês. Ali era o repouso do guerreiro. Tinha um cachorro lindo, arraçado de setter. Andava um dia a passear, ao lusco-fusco, na rua comprida de Sonaco, quando ouço atrás de mim o jipe da patrulha. Não deram por mim, que andava na berma. Só enxergaram o cachorro, que vinha no meio do caminho. E ouço então o furriel a dizer para o condutor: Mata o cão do nosso alferes. Não foi preciso mais nada. Denunciei a minha presença e ordenei-lhe que se apresentasse no quartel imediatamente. Obedeceu. Depois levei-o até à minha palhota. E foi então que lhe toquei a pavana com o cavalo marinho. Mas, não há dúvida, os medicamentos que estou tomando estão produzindo bom efeito. Já vou exercendo autocrítica sobre os meus actos passados.
Bissau, 5 de Outubro de 1966
ALMA DOLENTE
A tristeza das coisas ao sol poente,
Falando, muda, numa voz precisa,
Escuta-a quem tem a alma dolente
E a dor de uma ânsia que se eterniza.
O Universo absoluto é uma ferida,
Lateja, arde, geme, sem compasso...
Dói tudo no silêncio, e a própria vida
Escorre vagarosa em gotas de cansaço...
Oh negrume tropical, noite africana,
Oh escuridão do medo em cada esquina
Com a vida enforcada em pó e lama,
Arranca do ventre tuas vinganças
E este ódio que as almas assassina
E deixa o Sol brincar com as crianças...
Contuboel, 7 de Outubro de 1966
O Dakota militar, vindo de Bissau, fez-se à pista térrea de Bafatá. Mas, quando tocou no solo, foi-se desviando para o mato, meio desasado. Parou a tempo de não haver desgraça. Tinha rebentado um pneu de uma das rodas do trem de aterragem. Como era dia de santo correio, estavam um jipe e um Unimog da minha companhia no aeródromo e assim aproveitei a boleia e vim logo para casa, que já tinha saudades dos meus cães e dos serões ouvindo a Voz da Liberdade e das tertúlias poéticas, em que lia, em voz alta, para um grupinho muito restrito, os versos da Praça da Canção, de Manuel Alegre, e também da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que, por tal facto, teve de responder em tribunal, tendo a obra sido apreendida. Mandou-ma um elemento do Movimento Nacional Feminino, quando aqui esteve uma delegação de três meninas universitárias. Pedi-a no gozo. Nunca julgava que, ao fim de um mês, tivesse nas mãos uma obra proibida pela PIDE, enviada por quem foi.
Contuboel, 10 de Outubro de 1966
Chegou há semanas, estava ainda em tratamento em Bissau, uma ordem do comando-chefe, via batalhão de Bafatá, destinada a todas as unidades do mato, sobretudo àquelas prestes a partir, avisando que os soldados que não sabem ler nem escrever terão de embarcar da Guiné pelo menos com o exame do primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária; caso contrário, quando chegarem à Metrópole, não poderão ser desmobilizados e ficarão nas respectivas unidades até concluírem aquele exame. O mesmo acontecerá àqueles que, tendo embora o exame do primeiro grau, saírem daqui sem o diploma do exame da quarta classe. É uma ordem injusta, não por ela em si nem pelo seu alcance, mas pelo facto de estarmos a pouco mais de três meses do regresso e não haver tempo suficiente nem condições psicológicas para uma intensiva preparação escolar dos soldados em tamanho estado de indigência cultural. Por outro lado, também não se percebe muito bem o súbito interesse das hierarquias militares pelos seus homens analfabetos e pelos outros que só têm a terceira classe. Deve ser para dar alimento às estatísticas. O capitão pôs logo mãos à obra, isto é, nomeou alguns voluntários e já se começou há tempos a dar escola. Dois furriéis milicianos e um alferes (eu próprio, que me juntei há pouco), iniciaram então a tarefa de mestre-escola. Garanto que toda a gente irá embarcar com o seu diploma na mão, custe o que custar. Por desmobilizar é que não ficam, não senhor. Era o que faltava, depois de uma comissão desta natureza, permanecerem os pobres coitados retidos no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, até completarem os estudos. Os alunos são em número de dez: seis que não enxergam uma letra e os outros quatro pouco mais sabem, pois têm um primeiro grau muito atrasado e esquecido.
Contuboel, 23 de Novembro de 1966
Estava sentado no estabelecimento do comerciante português, lendo o Arauto, o pasquim da província, e fumando intensivamente cigarro atrás de cigarro, quando chega o nosso capitão com um papel numa das mãos. Era um telegrama que tinha vindo via rádio, anunciando-me que era pai. Fiquei néscio e sucinto. Pai! E escrevi, num aerograma amarelo, um poema ao meu filho José Manuel, a primeira missiva que recebe na vida, que ainda agora principiou...
Bafatá, 12 de Dezembro de 1966
Exame dos alunos da Companhia de Caçadores 800. Cometi um acto sacrílego, mas não havia outra escapatória. Sacrilégio maior seria deixar que estes homens ficassem na tropa mais alguns meses, ou um ano, sei lá bem, depois de terem sofrido o que sofreram nesta guerrilha diabólica de nervos e do resto, que foi ainda pior. Falei com a senhora professora, uma cabo-verdiana lindíssima, de fazer refrear a respiração. Disse-lhe da minha justiça e das minhas intenções. Ela, com o seu brio profissional à flor da pele sedosa:
- Não, senhor alferes, não posso consentir numa palhaçada dessa natureza, pelo amor de Deus. - Principiei a seduzi-la e ela foi caindo de tal modo na esparrela, que, quando a convidei a sair da sala de exame, obedeceu, sem pestanejar. Depois. Olha, depois! Depois, encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos, enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes. No fim, ficaram todos aprovados e a professora, ao entrar na sala após ter sido avisada de que terminara a prova para lhe entregarmos as respostas, lançou-me uns olhos tão doces, que me deu vontade de lhe tomar lições de qualquer disciplina.
Contuboel, 25 de Dezembro de 1966
Uma noite de Natal já com um grão de esperança no seu ventre e outro bem pesado na asa. Daqui a menos de um mês, vamos de abalada. Até parece mentira. As cruzinhas estão chegando ao fim.
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Notas de CV:
Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67
Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
EXCELENTE SONETO ESTE ALMA DOLENTE.
GRANDE QUALIDADE DE ESCRITA EVIDENCIA CRISTOVÃO DE AGUIAR.
MUITO OBRIGADO A TI TAMBÉM ZÉ
MARTINS POR TORNARES POSSÍVEL
ESTE ACESSO À POESIA DE QUALIDADE.
POR RAZÕES QUE A RAZÃO DESCONHECE, AQUANDO DO COMENTÁRIO ANTERIOR,OMITI NÃO INTENCIONALMENTE,QUAISQUER CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTE MENINO DE SUA MÃE,UM VERDADEIRO HINO AO SENTIMENTO DE AMOR FILIAL, NUMA DOÇURA DE ESCRITA COMOVENTE,ONDE O AUTOR EMPRESTOU AO ESCRITO UMA VIVÊNCIA DO PASSADO, ARRANCADA DE DENTRO DO SEU SER,"OBRIGANDO-NOS"
A REVIVER ESSE PASSADO DO SALTO AO EIXO E JOGO DO PIÃO,QUE TODOS CONHECEMOS UM DIA, E QUE TÍNHAMOS GUARDADO NAS GAVETAS DUM TEMPO DISTANTE,E GOSTOSAMENTE TROUXEMOS À
MEMÓRIA,NUMA EVOCAÇÃO QUE POR CERTO AGRDECEMOS AO CRISTOVÃO DE AGUIAR,E AO ZÉ MARTINS,FAUTOR MATERIAL DESTA COMPILAÇÃO DE TEXTOS DO CRISTOVÃO.
Caro Manuel Maia
As referencias que fazes à minha "intervenção" nos textos de Cristovão de Aguiar, não são devidas.
Apenas tive o privilégio de conhecer o Aguiar, durante um encontro na Biblioteca Museu República e Resistência, em Lisboa, durante um encontro em que ele falou sobre o seu "Braço Tatuado", sobre o qual tinha tecido algumas considerações.
Ficamos amigos e ele deu-me a honra de me confiar os textos que estão a ser publicados, evidentemente com a sua autorização.
Aproveito para te felicitar pelas sextilhas sobre a História de Portugal, que não me esqueço de recomendar aos meus amigos, especialmente àqueles que têm a idade do meu neto.
José Martins
Sobre o episódio deste sr com o furriel que agrediu com cavalo marinho acho-o lamentável. Com todo esse heroísmo deve ter pelo menos a torre e espada. Gabriel Tavares .Freixo
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