sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5081: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (6): O Primeiro Bonzinho

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 29 de Setembro de 2009:

Caros Editores

Já faz algum tempo que tinha intenção de vos enviar esta história para a colocarem no Blogue se acharem interessante.

Demorei este tempo porque tentei arranjar algumas fotos que pudessem acompanhar o texto mas a verdade é que não tenho mais nada agora. Por isso, se quiserem utlizar algumas das que já aí têm, à vontade!

Um abraço
Hélder Sousa


O Bonzinho

Como de costume, são várias as fontes que fazem lembrar certas passagens nos idos anos da Guiné.

Este caso também não foge à regra. A lembrança destes pequenos episódios vem por diversos motivos: seja a sempre cantada diferença entre os milicianos e os profissionais, sejam os actos irreverentes da juventude, seja a irracionalidade de muitas decisões em tempo de guerra, sejam ainda outras questões que igualmente se tem aflorado no nosso Blogue.

Desta vez lembrei-me do Bonzinho….

Quem era o Bonzinho? Bem, era um 1.º Sargento, cujo nome não me consigo lembrar, se é que alguma vez cheguei a saber, homem afável, já de certa idade (é sempre bom dizer isto quando não se sabe ao certo) bastante mais velho do que nós, jovens na casa dos 23, 24 anos, que tinha sido prisioneiro na Índia e que os serviços do Exército acharam por bem colocar na Guiné, nas Transmissões, no ano de 1971, algures aí por Agosto ou Setembro.

Pois o nosso Bonzinho foi alojado num dos três quartos da casa anexa ao Centro de Escuta, onde eu e outros Furriéis vivíamos e desenvolvíamos a nossa ocupação e logo fez notar as suas características: pessoa extremamente afectada psicologicamente, carente da família (estava ausente e creio que foi assim até ao fim), dependente de muita medicação, desejoso de congregar amizades e apoios, de carácter afectivo, profissional e social, mas sempre de uma correcção exemplar e de uma exagerada bonomia, daí alguém o cognominar de O Bonzinho, já que quase sempre colocava aquele jeito, aquela postura que costumamos associar aos sacerdotes, de mãos postas e meneando a cabeça ao falar, quase num sussurro.

Pois, como é de calcular, dado o meu feitio, acabei por ser um dos apoios morais do nosso Bonzinho, quase um confidente, e isso levou-me a entrar num jogo que hoje não me dá particular orgulho. Consigo levar o meu comportamento à conta da juventude, da sua irreverência e também à conta do clima que se vivia.

A coisa era simples e consistia numa pergunta que eu fazia invariavelmente todos os dias de manhã, mal via o Bonzinho, à guisa de cumprimento, repetida exaustivamente durante meses.

Colocava o meu ar mais sacaninha e perguntava:

- Então, meu Primeiro está melhorzinho hoje?

E a resposta, infalível, invariável em todas as vezes que perguntei, sempre com a mesma tonalidade, a mesma teatralidade, as mesmas ênfases, os gestos repetidos e colocados nos momentos certos, como numa peça, era:

- Oh bigodes! (Era assim que ele se referia a mim, por na ocasião ser portador dum bigode tipo António Matos). Isto é uma colite espasmótica de origem nervosa (dizia com ar beatífico e sofredor, inclinando a cabeça levemente para a direita), o cólon dilatado, sabe? (aqui abria mais os olhos e acompanhava com um menear afirmativo), não tem cura! (agora o menear era em negação).

Seguia-se a minha réplica:

- Ahhh!

E pronto, no dia seguinte, e no outro e no outro e no outro, a mesma pergunta, a mesma resposta e a mesma reacção… coisas de apanhados

Mas para terem uma ideia mais aproximada de como era o Bonzinho conto mais duas.

Um dia estava a passar no corredor e do quarto dele chegaram uns lamentos, uns soluços. Perguntei o que se passava, se estava doente ou se precisava de alguma coisa, mas vi que estava com o correio na mão e cheguei a temer que fossem más notícias. Disse-me ele então:

- Oh bigodes, a minha família, a minha família, não gostam de mim! Olha para o que a minha filha me escreve!

Tive alguma relutância em aceder a ler mas lá lhe fiz a vontade. E o que é que dizia a carta, que eu entretanto comecei a ler em voz alta?

- Paizinho, gostamos muito de saber que vai bem, que a sua saúde se tem mantido, que está mais ambientado mas, por favor, não necessita ser tão pormenorizado…..

Aqui ele interrompeu-me para dizer:

- Estás a ver, estás a ver?, não querem que eu escreva!.

Disse-lhe que não era isso que parecia, que talvez eles não tivessem muito tempo por causa do dia-a-dia e que umas quantas linhas chegariam…

Aí ele saca da carta que estava a escrever (já ia na 4.ª folha…), dá-me a ler, dizendo:

- Achas que é muito pormenor? - E vi o seguinte:

- Hoje, levantei-me às 6.50, fui fazer o meu serviço, que bastante me aliviou (não esquecer a colite espasmótica!) e depois fui novamente deitar-me. Às 8.00 levantei-me outra vez, tomei os comprimidos do jejum, fui tomar banho e fazer a barba. Antes de sair para tomar o café tomei a ampola e os comprimidos amarelos….

Bem, a coisa continuava com este tipo de relatório datado e circunstanciado e aí eu disse-lhe:

- Oh meu Primeiro, talvez fosse suficiente, para não preocupar a sua esposa e a sua filha, que lá longe não lhe podem valer, que o meu Primeiro escrevesse a dizer que vai bem, que se alimenta bem, que toma a medicação toda, que se tem divertido, que tem amigos, etc. e sem escrever este tipo de relatório que elas não percebem…

A sua reacção foi:

- Achas?, então tá bem!

Uma outra faceta que vos pode ajudar a perceber o Bonzinho tem a ver com o facto, acho que bastante corriqueiro, de cantarolar enquanto fazia a barba, de porta aberta, partilhando com todos os seus dotes canoros.

Tinha essencialmente três músicas no reportório. Uma não me consigo lembrar, mas era menos relevante.

As outras duas eram… “Avé, avé, avé Maria, Avé, avé avé Maria. A treze de Maio, na Cova da Iria…” e por aí fora e a outra, está bem de ver, era … “Heróis do mar, nobre Povo, Nação valente e imortal….”.

Para esta última, o meu camarada Nelson Batalha, de quem já falei, sempre que saía de serviço do turno da noite e ia dormir, costumava aparecer em cuecas e em sentido pedindo:

-Oh meu Primeiro, pare lá de cantar o Hino porque sempre que o oiço tenho que me colocar em sentido e assim não consigo dormir…

Bem, acho que já deu para entender como era o Bonzinho. Um homem bom, um bom homem, apanhado pela voragem da lógica da guerra, colocado junto de jovens que também teriam as suas pancadas.

Mais uma vez realço que isto não tem nada a ver com o dramatismo das situações passadas lá longe, no Vietnam mas, já que se está a tentar montar o puzzle da memória dos tempos de guerra, estes eram aspectos humanos que certamente também devem contar.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil
Transmissões TSF

Hélder Sousa, O Bigodes

Foto editada por CV


Nesta foto, Hélder Sousa com os camaradas Fernando Roque e Nelson Batalha

Fotos: © Hélder Sousa (2008). Direitos reservados.

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5053: Agradecimento colectivo ao ilustre grupo de amigos do Blogue (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 7 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4474: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (5): Os meus livros

3 comentários:

Juvenal Amado disse...

Meu caro Hélder
Foi uma enorme maldade terem enviado o pobre do homem para a Guiné.
Como se não lhe bastasse, ainda vos tinha à perna.
Mas por outro lado, talvez ele junto da malta mais nova estivesse mais acompanhado do que em casa, onde não devia haver pachorra para o aturar com as moléstias.

Um abraço
Juvenal Amado

JD disse...

Helder,
Há muito que não contavas uma estória. Esta, porém, foi compensadora pela diversão do texto.
Não te levo a mal teres sido um bocado patife, afinal eras das pessoas que o visado estimava. E, entre amigos, é sempre saudável uma ou outra patifaria que não ofenda, não seja abusiva.
Atrevesses-te tu comigo, e terias as nalgas marcadas de chutos e pontapés.
Um abraço
J.Dinis

Miguel V. Velez de Oliveira disse...

O BONZINHO
Meu Caro Helder,li a tua história e
como conheci bem o Bonzinho,informo que já faleceu,era Capitão na Ref.
Talvez o que o matou terá sido essas anunciadas cólicas.Claro ao fim de alguns anos.
Gostaria de te contar algumas das histórias do Bonzinho,estas depois da Guerra da Guiné.Um abraço