Caros Editor e Co-Editores
Junto envio um texto que podem publicar, se entenderem e quando entenderem.
Não é propriamente uma história retratando algum caso concreto, trata-se de relembrar alguma vivência em tempo de guerra, partindo das reflexões que alguns episódios recentes me fizeram ter.
Aceitem um forte abraço, deste vosso amigo e camarada da Guiné.
Se quiserem podem repetir esse abraço mais duas vezes.
Hélder S.
OS LIVROS….
Nas duas últimas histórias que enviei, referi os elementos que fizeram actuar a memória para alcançar o conteúdo dos mesmos. Para este escrito a situação não será diferente. De facto, são muitas vezes os estímulos, os impulsos recebidos, que fazem o clic indispensável para que a história apareça.
Desta vez temos três entradas.
Por um lado (primeira entrada) uma reportagem que vi hoje (dia 15 de Maio) na RTP1 a propósito do livro do Gen. A. Spínola e em que a determinada altura o apresentador/narrador Rui Morrison, salvo erro, relaciona o aparecimento desse livro, “Portugal e o Futuro”, como sendo um factor determinante nos acontecimentos que vieram a desembocar nas acções do “25 de Abril de 74”, relacionando esse facto com outros em que o aparecimento de livros com grande divulgação geraram alterações significativas nas sociedades em que surgiram (e não só, digo eu), referindo os casos de Thomas Payne na América, cujo livro deu origem à Revolução Americana, o do francês Thiers (também salvo erro) cujo livro deu um contributo decisivo para a Revolução Francesa, o do Vladimir Ilitch Ulianov (Lenin) com o livro “O Estado e a Revolução” saído em Fevereiro de 1917 e que deu origem à Revolução Bolchevique na Rússia.
Outro factor de lembrança (segunda entrada) foi ter participado no passado sábado 9 de Maio, em Vila Franca de Xira, na apresentação pública dum “Manifesto da Memória”, produzido por uma Comissão de redacção constituída por elementos que participaram na Secção Cultural da União Desportiva Vilafranquense. O objectivo desse “Manifesto” é o deixar memória registada das acções e actividades que foram levadas a efeitos por aquela entidade e que se entende dever deixar para que alguém, que possa e queira, aproveite a experiência desse trabalho e, eventualmente, possa encontrar aí caminho ou inspiração para enfrentar os problemas de hoje. A entrada é motivada por nessa “Memória” se entender e afirmar que pertencemos à geração do Livro. Que grande parte da nossa acção e formação girou à volta da Biblioteca, dos seus livros, do estudo e debate dos seus conteúdos, o que é bem verdade.
A última entrada é provocada por uma foto do então Furriel Henriques colocada no P4306, o qual aparece com aquele seu ar de rato de biblioteca, com os óculos típicos e os papéis debaixo do braço, em inequívoca atitude ilustradora de quem se interessava pelas questões intelectuais, tendo inclusive merecido uma referência nesse sentido, colocada num comentário, pelo Miguel Pessoa, especulando se aquele visual não seria perigoso no sentido do IN eventualmente identificar por ele alguém mais graduado, e obtendo uma resposta do Henriques/Luís Graça revelando que aquilo era apenas por ronco, já que via bem ao perto e ao longe, tendo apenas alguma maior sensibilidade à luz. Ao menos não eram Ray-Ban, senão ainda o poderíamos confundir com o A.B.... vade retro!
Da conjugação destas entradas acabei por me lembrar que na Guiné não deixei de pertencer à tal geração do livro, persistindo em mantê-lo por companhia e como elemento essencial de vida. A prová-lo está essa foto que envio, tirada no quarto, em Bissau, na moradia anexa ao Centro de Escuta onde prestava serviço. Estou a ler um jornal que me chegava por correio, visto ter assinatura, e que se chamava “Comércio do Funchal”. Na mesa de apoio, ao lado da cama, é visível um livro intitulado “As Minhas Universidades”, dum conhecido autor russo. Por debaixo desse, está um livro encapado que não me consigo recordar o que seria. Ao lado está um livro sobre economia, que cheguei a estudar com mais dois camaradas de serviço, sendo que para isso aproveitava os turnos de serviço nocturno, das 01.00 às 07.00, para passar a folhas A4 dactilografadas e com papel químico, para serem lidas e comentadas posteriormente. Por debaixo dos envelopes das cartas de avião está um outro livro encapado, mas esse sei que seria um livro intitulado “A Mãe”, do mesmo autor de “As Minhas Universidades”. Tinham capas para furtar a curiosidade dos bisbilhoteiros e/ou bufos e tentar preservar o mais possível a integridade física (a minha).
Na outra foto que também anexo, tirada numa das esplanadas do Pelicano, em que estou com os Furriéis Mil. Fernando Roque e Nélson Batalha, no dia do meu aniversário em Outubro de 71, também é visível que em cima da mesa se encontra uma capa com um livro dentro. Trata-se de uma preciosidade chamada “O elefante”, dum autor polaco de nome Mrozeck, sendo um livro de contos dos quais alguns foram lidos para mais do que os elementos que ocupavam a mesa em que me encontrava na esplanada do Bento, provocando enormes e saudáveis gargalhadas, já que os contos escolhidos a isso se prestavam.
Por tudo isto que agora recordo, bem assim como as viagens feitas com o atrás mencionado Fur Roque, de moto (Honda?), até Nhacra, para assistir a algumas sessões culturais (digamos assim) que por vezes lá ocorriam, convivendo com outros elementos dos quais retenho a lembrança dum antigo colega de escola e outras vivências, o Fur Mil Bento Luís, e que se passavam na CCAV então comandada pelo Cap Mário Tomé, reforço a ideia de que o livro foi não só uma incontornável companhia para ultrapassar as situações vividas como também a fonte onde fui beber a informação, o conhecimento, a cultura, a formação e tudo o mais que ajudou a moldar-me.
Disse acima que foi, mas é para mim bastante claro que ainda é, pelo menos quando se cultiva a atitude de reflectir o que se lê e se procura discutir o que se lê, no sentido de elevar o conhecimento e não nos limitarmos à reacção, quantas vezes impulsiva, quantas vezes boçal, quando confrontados por qualquer questão ou simplesmente para dar uma opinião.
Caros camaradas, desculpem estas reflexões sobre “memórias de tempos de guerra” mas podem crer que a guerra se travou em muitas frentes… e de muitas maneiras! Até para criar condições para acabar com ela!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF
Bissau > Hélder Sousa, no quarto. Na mesinha de cabeceira, os inseparáveis livros
Na foto, Hélder Sousa com os camaradas Fernando Roque e Nelson Batalha
2. Pequeno apontamento de CV:
"A Mãe" e "As Minhas Universidades" são livros de autoria de Máximo Gorki, pseudónimo de Alexei Maximovich Peckov que nasceu em 1868 na cidade de Nijni-Novgorod, chamada mais tarde de Gorki em sua homenagem, e que faleceu em Moscovo em 1936. Tem uma vastíssima obra literária.
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4316: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (4): A bazuca em rajada
2 comentários:
Caro Hélder,
Obrigado pela cerveja que disseste ir beber pelo meu aniversário, mas espero que nos possamos encontrar um destes dias para bebermos uma ao vivo e a cores. Há um outro camarada a quem devo esse encontro aqui em Lisboa, estou em falta, certamente também o conheces pois foi teu camarada no serviço e seria óptimo fazermos-lhe uma surpresa, tanto mais que ele ainda não está suficientemente motivado para intervir no blogue mas é leitor habitual. Omito o nome porque entendo não dever referi-lo publicamente sem a sua autorização.
Agora sobre o texto que apresentaste ofece-me dizer o seguinte:
O António Matos "Dou por mim a pensar..." tu, estás a reflectir. Isto promete, é sinal de que estamos mais velhos mas continuamos a mostrar interesse pelas coisas e a estarmos atentos ao que se passa à nossa volta.
Um abraço
BSardinha
Ó Helder
Com que então também lias o "côr- de-rosa"? Esse jornal dava a sensação de ser produzido no estrangeiro, dada a farta oposição ao regime. Naturalmente com alguns excessos. Marxistas, trotkystas, maoístas, e outros, faziam do jornal uma frente contra o estado da nação. Certas crónicas precisavam de filtro, mas eu achava-as corajosas E chegou-me sempre a Bajocunda. Como a Angola, mais tarde. Recordo-me de um alferes em Canquelifá, estudante eterno de economia, filho de anti-situacionista, e também militante de ideias do contra, a quem a correspondência era aberta, e lida pelos esbirros que o controlavam.
Referi eterno porque havia professores do regime que o chumbavam frequentemente e, por essa falta de aproveitamento, lá foi malhar mais depressa. Por isso também percebo que um simples Gorki pudesse ser objecto de denúncia.
Ainda hoje li que a pide tinha 2286 pessoas ao seu serviço, mais uma infinidade de bufos. Nunca se sabia. A diante, no âmbito do meu relato, darei conta de sessões de leitura lá no nordeste.
Um abraço
J.Dinis
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