1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2011:
Queridos amigos,
Cheguei ao fim da leitura dos livros da Dalila Mateus*. Tenho pela frente o tomo gigante das memórias da Aristides Pereira, uma edição diferente da que se publicou em Portugal e com importantes documentos históricos.
Perante o silêncio dos confrades da Tabanca, sou forçado a crer que não há por aí outras obras que deva ler, não escondo a pretensão de levar a bom porto o levantamento do que se escreve nos dois países sobre a Guiné. Mantenho-me receptivo à ajuda de todos aqueles que tenham em seu poder relicários para abrir no blogue…
Um abraço do
Mário
À volta da formação da elite fundadora do PAIGC (2)
Beja Santos
A dissertação de mestrado “A Luta pela Independência, a formação das elites fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC”, de Dalila Cabrita Mateus (Editorial Inquérito, 1999) introduz uma abordagem singular sobre as opções ideológicas e políticas bem como os modelos económicos e sociais adoptados pelos movimentos independentistas, partindo da convivência dos respectivos líderes sobretudo na Casa dos Estudantes do Império (CEI) que muitos deles frequentaram. O fio condutor da investigadora começa no processo colonialista português, a constituição das elites crioulas e como se formaram muitas vezes à sombra do PCP. Dentro desta óptica, importa apreciar os tipos de apoio externo à luta independentista e qual a verdadeira base ideológica em que assentou o processo de independência. Como se compreenderá, o enfoque está centrado na Guiné.
A direcção do PAIGC cedo rumou para a Guiné-Conacri, tal como a direcção do MPLA. As autoridades do país, escreve a autora, forneciam documentação aos dirigentes nacionalistas: a Amílcar Cabral foi dado um passaporte com o nº 55/67, em nome do engenheiro Ousman Keita, nascido a 12 de Setembro de 1924, em Kankan, e com residência em Conacri. Os primeiros anos de relacionamento com as autoridades de Sekou Touré foram bastante difíceis, estas temiam que as armas caíssem nas mãos de oposicionistas ao regime, chegou mesmo a haver a detenção de Aristides Pereira, Luís Cabral e Vasco Cabral. Logo a PIDE vaticinou que o PAIGC acabara de sofrer um rude golpe, capaz de originar a sua desaparição. O Senegal concedeu ao PAIGC uma ajuda controlada, chegando o hospital de Ziguinchor a estar fechado pelas autoridades, a vigilância aqui tinha a ver com as preocupações de Senghor quanto a uma eventual rebelião da região do Casamansa.
A Organização da Unidade Africana (OUA) teve uma grande importância no reconhecimento do PAIGC, a partir de 1965 este partido foi acolhido como o único representante da Guiné e Cabo Verde. Ao longo dos anos o estatuto dos movimentos de libertação junto da OUA oscilou. O apoio de muitos países africanos foi sempre mitigado, terá sido uma dessas razões por que Cabral se inclinou para o chamado campo socialista, um arco que cobria a União Soviética e os seus aliados europeus, a China e Cuba.
As dissidências entre a URSS e a China repercutiram-se em África. Por exemplo a União Soviética e outros países de Leste prestavam um relativo apoio ao MPLA e ao PAIGC ao passo que a China apoiava a FRELIMO e a FNLA. Observe-se que o primeiro apoio ao MPLA tinha vindo da China onde, aliás, o PAIGC foi recebido e ali foram ministrados cursos de formação sobre a guerra de guerrilhas.
Com o passar dos anos, deu-se uma aproximação dos principais movimentos de independência com o bloco soviético, isto a despeito de Amílcar Cabral dizer sistematicamente que adoptava uma atitude de não-alinhado. Os cubanos apoiaram o PAIGC como instrutores ou enviando médicos, chegaram em 1966. No ano anterior, Che Guevara encontrara-se com dirigentes independentistas de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique e terá dito em privado que só Cabral o impressionara.
No seu livro “Crónica da Libertação”, Luís Cabral também admite que os primeiros quadros do PAIGC foram formados na China, estiveram lá Domingos Ramos, Osvaldo Vieira e Rui Djassi, a que se juntara mais tarde Chico Mendes, Nino Vieira e Victor Saúde Maria. Comentando o apoio cubano, Manuel dos Santos refere, a propósito da sua ida para Cuba em 1965: “Éramos cerca de 30 quadros. A doutrinação ideológica não era muita. Recebemos, essencialmente, um treino militar”. E, mais adiante: “Depois voltei de Cuba e passei uma temporada na União Soviética, onde fui completar a nossa preparação militar, que foi uma preparação específica”. Manuel dos Santos voltará à União Soviética para aprender a manejar os mísseis Strela.
Quanto à ajuda militar, no início, as armas vinham de diferentes precedências. Mas, com o passar do tempo, o equipamento soviético passou a preponderar. O PAIGC não recebeu qualquer ajuda militar dos EUA, mas Cabral foi lá com alguma regularidade chegando a Universidade Lincoln, de Nova Iorque, a conferir-lhe o grau de “doutor honoris causa”. Escreve Dalila Mateus que na parte final da luta de libertação os EUA apoiavam a política colonial portuguesa, considerando que para os seus interesses era importante manter o predomínio branco na África Austral. Nixon terá dito a Marcelo Caetano: “Abandonem a Guiné, que não interessa a ninguém. Dêem-lhes a independência. Nós ganharemos tempo e vós prestígio”. Recorde-se que Portugal abastecia-se em mercados da NATO, caso dos EUA, França, Grã-Bretanha e Alemanha Federal. Os governos nórdicos não disfarçavam o seu apoio aos movimentos de libertação.
E chega-se ao projecto político, a criação do homem novo que palpitava na literatura de todos aqueles que aderiram aos projectos independentistas. O inimigo ao princípio era o colonialismo. Depois, ocorreram transformações sociais decorrentes da influência soviética ou da crença nas vias socialistas. Mesmo no seu jogo ambíguo, Cabral não resistiu a dizer que “Uma nação independente tem apenas duas vias: regressar ao domínio imperialista (neocolonialismo, capitalismo, capitalismo de Estado) ou a via do socialismo”. Com a evolução da luta, Cabral apercebeu-se da importância dos factores da identidade, apelou a valores, recomendou que se combatesse o oportunismo e a responsabilidade e mesmo o tribalismo. O português irá surgir como cimento da unidade da nação, frisando a necessidade “preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades de uma cooperação, de uma amizade, de uma solidariedade e de uma colaboração eficaz com o povo de Portugal”.
Cabral foi o único dirigente que deixou uma obra teórica digna desse nome. Tinha noções sólidas sobre o desenvolvimento económico e criticava os planos grandiosos, alertando para os erros bem evidentes de países africanos independentes. Alertava a pequena burguesia a manter-se revolucionária ou, caso traísse os objectivos da libertação nacional, a suicidar-se. A autora recorda a série de problemas vividos no seio do PAIGC: o congresso de Cassacá, realizado em Fevereiro de 1964, em que foram brutalmente reprimidos os dirigentes bárbaros; Inocêncio Cani, o assassino de Cabral, teria estado implicado no desvio de bens; Osvaldo Vieira era um alcoólico e para arranjar dinheiro mandava vender vacas e caçar crocodilos para vender a pele. Cabral continuava a alertar: “Há camaradas que parece que passaram vários anos à espera de responsabilidades para poderem cometer os erros que outros cometeram no seu lugar. O sonho socialista, de feição soviética, acabou por fascinar estes dirigentes que aparecem diligentes a copiar o socialismo real. Não tinham experiência da direcção de um Estado moderno. Eram voluntaristas, esqueceram a penúria de quadros nacionais, comportaram-se como arranjistas, promovendo inaptos e clientelas. Em poucos anos, o capital da luta, os valores da abnegação e da solidariedade foram corrompidos. Pepetela irá escrever com amargura que tinham sido puros e desinteressados e depois tudo se adulterou e apodreceu. A utopia morreu. O que começara na Casa dos Estudantes do Império desaguou em incompetência, fanatismo e num recuo civilizacional de décadas.
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Nota de CV:
Vd. poste de 28 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P8008: Notas de leitura (221): A Luta pela Independência, por Dalila Cabrita Mateus (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Dalila Cabrita Mateus não realça, pelo menos nas notas de leitura de MBS não vimos, a vontade de Amilcar, desenvolver a luta em Caboverde.
Depois de irmos lendo tanta coisa sobre o PAIGC e o povo da Guiné e Caboverde, e ver a grandiosidade da obra de Amilcar, não dá a ideia que Amilcar, mais do que armar o PAIGC, "armadilhou a Guiné Bissau", para atingir outros fins, que ultrapassavam, em muito,a independência da Guiné????
Mas que armadilha que ninguem a consegue desmontar!
Só que Amilcar, como um portugês com muita cultura, sabia que ia espatifar tambem com a metrópole.
Ainda não tive oportunidade de ler o livro,mas contrariamente ao que muita gente diz,sobre a situação militar na Guiné,a "coisa" não estava tão complicada.Soube posteriormente de dissidências graves entre os quadros do paigc,se bem que muitos ainda hoje o neguem,nomeadamente entre cabo-verdeanos e guenienses.
Confirmo o apoio nomeadamente dos E.U.,porque as granadas, espoletas e cargas para o obus 14,apesar de este ser de fabrico inglês,eram "made in U.S.A."
O que nos faltava era vontade de continuar, devido essencialmente ao cansaço dos quadros (oficiais e sargentos), e a não substituição destes (insuficientes ingressos nas academias militares).
Não estou a defender que se devia continuar a guerra,estou apenas a constatar factos.Sobre a situação militar na minha z.o. cop 5 (gadamael) em Abril de 74,esta era completamente diferente da de junho de 73.
Para terminar, sobre o resumo do livro que o camarada Beja Santos faz, julgo que não acrescenta nada (o livro, claro) ao que já era amplamente conhecido.
C.Martins
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