Estamos, naturalmente, a falar do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu (AGA) e do seu diário... Por gentileza e generosidade suas, aqui fica mais um excerto do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp). (*)
Bissau, 23 de Junho de 1972
(...) Foram nove horas directas de voo até Bissau, não consegui pregar olho. Nem alegre, nem saudoso, nem revoltado. Se tem de ser, que seja!Bissau – ainda não vi quase nada, – parece-me melhor cidade do que eu imaginava, a guerra chega aqui já diluída, o ambiente não é assim tão pesado. O burgo está em paz, talvez uma paz podre, mas paz. Há muita bicharada à noite, nas paredes e sobretudo em volta dos candeeiros de iluminação pública, são osgas e milhares de estranhíssimos insectos, mosquitos gigantes rodopiando encadeados pela luz. Mas na cidade também há andorinhas. (...)
O dia nasceu, nuvens e mar, sempre tanto mar! O avião [, um velho DC 6,] desceu sobre mais ilhas, os Bijagós, creio, e entrou voando baixo na Guiné. Vista do ar a terra é bonita, rios largos, canais serpenteantes, arrozais, clareiras, florestas e aldeias.
Trouxeram-me do aeroporto de Bissalanca para o Clube de Oficiais e destinaram-me umas instalações miseráveis. Somos oito alferes, todos de passagem por Bissau, num quarto pequeno com beliches, sem higiene nem condições decentes de habitabilidade, nem um armário tenho para arrumar as minhas coisas que estão todas na mala, no chão. Chamam a isto o “Biafra”. (...)
No entanto o Clube de Oficiais tem uma messe onde me dizem que se comem algumas iguarias e existe uma simpática piscina. O calor é bastante mas, habituando-me, vou aguentar.
Bissau, 24 de janeiro de 1972
(...) Dizem-me que indo para o mato terei só vinte e um meses de comissão, e não vinte e quatro, como aconteceria se ficasse em Bissau, mas isto não é certo. Certo é nada aqui ser certo, excepto eu estar na Guiné com a moral nem alta, nem média, nem baixa, com o calor a morder-me a pele e a chuva, em vez de lágrimas, a correr-me pelo rosto. (...)
(...) Bissau, 25 de Março de 1974
A grande novidade em Bissau, capital da guerra foram as bombas no Quartel- General, na Amura [, em 22 de fevereiro de 1974], onde os estragos estão bem à vista, e num café no centro da cidade onde inicialmente morreu um civil mas depois morreram mais três militares, entre eles um soldado da 38ª de Comandos [, afecta ao CAOP1]. Estes pobres rapazes até a Bissau vêm morrer!
Foram postas em prática medidas de segurança patentes onde quer que uma pessoa vá. Há patrulhas da polícia militar e civil um pouco por todo o lado. Agora, para se entrar no Quartel-General só falta passar pelo RX. O medo é maior, as coisas estão a mudar.
Em Bissau encontro cada vez menos gente conhecida. Sou um dos mais velhinhos, muitos dos amigos e conhecidos regressaram de vez a Portugal.
No Clube de Oficiais tive uma surpresa. Encontrei a Margarida, minha apaixonada há uns anos atrás, uma mulher inteligente e bonita que, por bem, mexeu com a minha massa cinzenta, e não só. Casou com um capitão e veio para Bissau fazer-lhe companhia. Cumprimentei-a mas não falámos, o marido estava ao lado e, sem me conhecer, deitou-me uns olhos de assustar. A Margarida continua linda, voluptuosa, redondinha, um estupendo “stragnoff” para os dentes do seu capitão. (...)
Bissau, 16 de Abril de 1974
Os papéis foram todos deferidos, a viagem está marcada para 20 de Abril, no voo dos TAM (Transportes Aéreos Militares), com chegada à Portela, ao Figo Maduro por volta das sete horas da tarde.
A Guiné acabou, mas só acredito quando o avião começar a descer sobre Lisboa.
Bissau, 17 de Abril de 1974
Dividimos almas, afectos, o calor do sangue, ideias, desígnios, promessas de futuro. Unidos, separados. Recomeçar. Beijo-te, até sábado, nos meus braços rubros, no teu corpo azul. [FIM]
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 20 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9375: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (5): "Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda [, em 31 de março de 1974]"...
2 comentários:
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Gostei do livro que li há muito tempo.
AGA, como não comentas, posso escrever assim!!!!
Vai haver segunda edição????
Espero que a Margarida seja nome de empréstimo...
Abraço T.
Caros amigos
Acho que já mais do que uma vez referi que foi através deste livro do António, que 'cheguei' ao nosso Blogue.
E que gostei dele quando o li.
Porque encontrei lá o que procurava e que na minha memória estava um tanto esfumado.
Porque continha (contém) o registo 'ao vivo' das impressões que o António ia tendo do que sucedia à sua volta.
Porque admiti (e admito) a sinceridade e a autenticidade dessas 'observações primárias', instintivas, sem a preocupação (actual) do politicamente correcto (actual), continuo a gostar bastante do 'Diário' do António, até pelo que ele contém de 'educativo', como peça muito útil para se perceber a evolução, do que quer que seja.
Abraço
Hélder S.
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