segunda-feira, 18 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10045: Notas de leitura (370): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 2 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Este Leonel Barreiros é uma surpresa, cheio de vida, folgazão, nunca se disfarça de herói, anota conversas, nas rusgas pelos bairros encontram aqui e acolá armas e sacos de granadas.
Aquela Bissau e toda a sua península vivem aparentemente fora da guerra ou iludem-na na perfeição. Como anota tudo, há que fazer fé dessa agenda onde eles nos dá informação dos feridos e mortos.
Temos aqui um retrato suave, inocente e sincero de alguém que não combate, que destabiliza corações e aprende a encher o tempo.
É talvez o primeiro diário feito por um soldado na Guiné.

Um abraço do
Mário


Diário do soldado Calvário, da Companhia de Polícia Militar 590, Guiné 1963/1965 (2)

Beja Santos

“Bissau entre o amor e a guerra” por Leonel C. Barreiros (edição do autor, 1993), não é de mais insistir é um diário de um soldado da polícia militar que vive dentro da fortaleza da Amura, um D. Juan faceto, hílare e bem convivente, que regista metodicamente pilhérias, alguma brutalidade dos seus superiores, histórias de camaradagem e a evolução da guerra. Aquilo de ser membro da PM dava imensas facilidades para arranjar viaturas ou aproveitar as patrulhas para ir à cata de diversão nos bailaricos populares. Estamos em Março de 1964. A comida é insipida, vão à caça, quando não há caça apanha-se uma cabra desprevenida sem o proprietário à vista. Às vezes há manifestações, o piquete aparece e intervém: foi assim em 22 de Março, houve pancadaria na Praça do Império. Dias depois regressam os contingentes militares da operação “Tridente”. O soldado Calvário vai encontrando conterrâneos por Bissau: é assim que fica a saber que as coisas estão feias à volta de Farim, aliás, ele de vez em quando está de serviço no Hospital Militar e nunca deixa de se impressionar com a carrada de feridos. Estamos chegados à quadra pascal e ele escreve: “Era Sexta-Feira Santa, um dos dias que eu mais venero. Respeitei os meus princípios de cristão nas minhas reflexões evangélicas. Lembrei-me da minha voz infantil quando nesta época dizia aos outros miúdos o Sermão da Montanha e não esqueci nem só um minuto a Procissão do Enterro, feita com as velas, à brisa fresca da noite”. Vão amiúde a Mansoa, os guerrilheiros intimidam e regressam ao mato, são destruidores e ladinos. O namoro com Mariana prossegue, o soldado Calvário irá ser informado que o antigo namorado é um guerrilheiro que está disposto a entregar-se. É impressionante o número de acidentes rodoviários mortais que ele regista quer com civis quer com militares.

O soldado Calvário enfrenta com bonomia as vicissitudes do amor, mesmo as alheias. Na jangada de João Landim encontrou Gabriela que veio de Torres Vedras, queria ir para lá de Mansoa saber do namorado que estaria em Bula, também a família se recusava a dar notícias. O comandante de companhia do dito namorado manda que a levem até ao hotel, Gabriela virá a descobrir que já não está no coração do seu amigo, ficará em Bissau como cabeleireira, encontrará outro ninho de amor. Na caserna, ligam o rádio e ouvem notícias de Argel, de Moscovo, do Senegal. Faz-se enorme alarido sobre o que se passou na ilha do Como, canta-se vitória pelo PAIGC. Registo do dia 5 de Maio:

“Chegou o Quim Bispo que veio de Cutia para ser visto no H.M. à cicatriz do estilhaço que meses antes o tinha atingido. Como ele o António Medo da Póvoa. A conversa do momento foi a situação que se tinha vivido no dia 22 de Abril, quando a companhia deles esteve cercada umas horas debaixo de fogo. Quando o capitão viu um homem ferido, desesperou e exclamou:

- Quem puder fugir, fuja! 
- Nem pense nisso, meu capitão, se o fizermos seremos perseguidos e massacrados. Temos de lutar até chegar o avião, não deve demorar – disseram os alferes e os furriéis.
- Como vamos poder sair daqui com tanto fogo? 
- Os nossos homens são firmes e corajosos, meu capitão… Eles não vão arredar pé de qualquer maneira.

Os aviões começaram a picar e todo o fogo se calou. O capitão, durante muito tempo, sentia-se envergonhado ao pé dos seus soldados”.

Em 9 de Maio, o batalhão 490 volta para o Como, Calvário vê-os partir com tristeza. Dias depois chega o Uíge com 1500 homens, foram todos para os quartéis do Sul. E depois chega Arnaldo Schulz. Há sempre farras, descobre-se sempre o motivo para uma celebração. E ele lá vai registando emboscadas, minas, a chegada de feridos, a venda de sangue, sempre eram 450 pesos para as farras e idas ao Pilão. É uma prosa onde não há tédios, Calvário tem folgas, faz guardas de honra, faxinas à cozinha onde tem birras monumentais com o cabo do rancho, vive o seu idílio com Mariana, até ouve confissões de guerrilheiros.
Por exemplo, no dia 9 de Julho: “O guerrilheiro detido no dia 4 em Buba confessou tudo. Era pedreiro e trabalhou na construção do HM. Foi levado contra vontade para a guerrilha mas, como lhe prometeram um salário de 2000 pesos por mês aceitou. Até aquela data nunca lhe tinham pago nada. Estava farto de lutar contra os portugueses. Queria-se entregar mas não sabia como. Acidentalmente encontrou-se com Arcanja Patrícia, um antigo devaneio. Parece que tudo se reacende e ele volta às quadras ao gosto popular: “Jura agora Calvário/ Se me queres bem ou não/ Dá-me um sinal no teu riso/ Tem dó do meu coração./ Juro Patrícia, juro/ Que te quero muito bem/ Tu és para mim a moça/ Mais bela que o mundo tem”. O Movimento Nacional Feminino oferece-lhe uma viola, o capitão questiona-o, intrigado: 
- Como é que aparece aqui uma viola em seu nome?
- Quando chegámos conheci a criada do nosso comandante militar. Durante o tempo que falávamos, quando estava de reforço, eu cantava baixinho junto ao peitoril do quarto dela. Certo dia abriu a janela e disse-me que a cantiga era demasiado linda para ser cantada sem música. Eu respondi que quando chegasse à metrópole que metesse uma cunha à esposa do nosso comandante para pedir às senhoras do MNF uma viola e mandar-ma. 
- Sabe tocar?
- Pouco, meu capitão. O cabo telegrafista é que me tem emprestado a dele para ir aprendendo pelo método instantâneo.
- Leve-a e estime-a. Quando formos embora, tem de a entregar para ficar para a companhia que nos render.

Em 3 de Agosto estão de prevenção, mas nada acontece. Vai ao convento de Bor e conversa com Canjala, ela agora só serve Deus. Mais bailes, mais zaragatas, espetáculos na UDIB, Calvário deslumbra-se com o conjunto Os Conchas. É inaugurada a piscina no QG, vestem-se à civil e para ali vão não só para mergulhar como para ver as beldades e até trocar piropos. E anota mais emboscadas, mais minas, mais motivados. Calvário responde às suas madrinhas de guerra, de algumas até recebe notas de 20 escudos. Por vezes reza, contrito, pede a clemência divina. Em Novembro, um furriel descobriu que ele andava a escrever o diário, Calvário recusou a entregá-lo. Nesse mesmo mês encontrou outro viseense que tinha andado na ilha do Como, onde fora ferido, um avião disparou por engano, um camarada morreu logo ao seu lado, a balbuciar o nome da namorada: “O meu ferimento foi ligeiro, mas chocou-me tanto vê-los morrer que me tem feito chorar a alma todos os dias”. No final do mês escreve que uma coluna dos comandos sofreu uma mina que transportava bidons de gasolina, 10 homens morreram carbonizados. Foi ao funeral dos 10 infelizes e dedica-lhes uma quadra: “Ao leme de uma nau de guerra/ Pelos casebres desgarrados/ Fizeram dar à terra/ Dez corpos queimados”. A vida prossegue, com rondas, folgas e plantão à caserna.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10036: Notas de leitura (369): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Mário,
Procurei num alfarrabista pelo livro. Tratando-se de edição de autor, provavelmente foram produzidos poucos exemplares.
Terás, por acaso, o contacto do Leonel?
Um abraço
JD