sábado, 13 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14022: Tabanca Grande (453): Luciano José Marcelino Jesus, ex-Furriel Mil. Art., CART 3494 (Xime-Enxalé-Mansambo, 1971/1974)

1. O nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), enviou-nos mais uma mensagem, desta vez com a apresentação de mais um camarada nesta nossa parada virtual, local de todos os encontros da malta que um dia viu o Geba e suas extensas bolanhas… 

Caríssimo Camarada Luís Graça,

Os meus melhores cumprimentos.

Reencaminho o trabalho elaborado pelo meu/nosso camarada ex-Fur. Mil. Art. Luciano de Jesus, do 2.º GComb, e agora novo membro da CART 3494 a participar nesta tertúlia de ex-combatentes na Guiné.

Trata-se de um depoimento inquestionavelmente importante na historiografia da Unidade, por permitir completar, com novos desenvolvimentos, a dimensão operacional sofrida e vivida pelo seu contingente, nomeadamente com factos e feitos ainda omissos.

Um abraço,
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494 

2. Apresenta-se então o Luciano José Marcelino Jesus, ex-Furriel Mil. Art., CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974),

ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494

(ATAQUE AO ENXALÉ COM ARMAS PESADAS E LIGEIRAS)

-19 de Julho de 1972 -

I– INTRODUÇÃO

Na sequência da narrativa elaborada pelo camarada Jorge Araújo [P13970], acerca do ataque de armas pesadas e ligeiras ao Destacamento do Enxalé perpetrado pelo PAIGC em 19 de Julho de 1972, venho pelo presente dar o meu modesto contributo histórico sobre esse acontecimento, fundamentado no facto de o ter vivido e sentido muito de perto. 

Com esta pequena narrativa procuro ampliar o ângulo de observação e análise sobre mais uma ocorrência contabilizada pela CART 3494 durante a sua presença ultramarina no CTIG [1971-1974], considerando-a, assim, como mais uma peça do puzzle que continua em construção.

Com efeito, o relato dos acontecimentos relacionados com o ataque ao Enxalé, no qual fui um dos actores, assume uma dimensão particular uma vez que, em termos formais, era eu que estava a comandar o Destacamento em virtude do Alferes José Henriques Araújo [1946-2012]se encontrar de férias e por ser o graduado mais antigo. Ao tempo estava comigo apenas o furriel Benjamim Dias, pois o furriel António Bonito, que era elemento constituinte do 2.º GComb, já tinha sido transferido para o Destacamento de Mato Cão.


Foto 1 – Enxalé 1972 – Da esquerda para a direita: Luciano de Jesus, José Araújo, Benjamim Dias e António Bonito, quadros de comando do 2.º GComb da CART 3494.

No ponto seguinte caracterizarei o período que antecedeu a concretização do ataque, referindo alguns detalhes que poderão ter influenciado essa acção.

II– FACTOS QUE ANTECEDERAM O ATAQUE

Cerca de uma semana antes, Bissau resolveu enviar o Grupo do Marcelino da Mata ao Enxalé para espevitar os dois grupos de “milícia especial” [309 e 310] que até então não apresentavam produtividade significativa.

O Marcelino da Mata trouxe consigo cerca de oito homens do seu grupo. Aterrou, chamou os dois Chefes de Tabanca [balanta e mandinga], mandou suspender o batuque que nessa altura estava a decorrer e começou a preparar a operação.

No outro dia de madrugada lá foi ele para o objectivo, que era a base mais próxima do PAIGC, a cerca de 20 Km de Sara. Fez o seu trabalho… bastante estrago… trouxe documentação e no regresso o IN tentou a perseguição e o envolvimento mas não conseguiu. Ficou ainda por ali [Enxalé] mais uns dias.

Durante essa curta estadia, os dias foram passados com alguma dificuldade do ponto de vista da logística [alimentação], uma vez que eram parcos os recursos aí existentes. Mesmo assim, ele ficou muito agradecido e reconhecido pelos esforços que fizemos para que lhes não faltasse nada.

Ficou entre nós uma amizade pessoal e mais tarde, em Bissau, encontrei-o e até andei de mota com ele.

Entretanto os hélis vieram recolher o grupo e tudo regressou à normalidade.

Quanto à dimensão do ataque, penso ter sido o maior que o BART 3873 sofreu não só em relação ao número de elementos envolvidos por parte do PAIGC [150 = 3 bi-grupos] como pelos meios utilizados. Se bem me lembro os meios que o IN fez deslocar para esta acção foram: 1 canhão s/r, dois morteiros pesados, mais de uma dezena de RPG e um grupo de assalto.


Foto 2 – Enxalé 1972 – Edifício do comando… e à esquerda a enfermaria.

III– O ATAQUE AO ENXALÉ COM ARMAS PESADAS E LIGEIRAS

- 19 DE JULHO DE 1972 -

Eram vinte horas e vinte minutos da data supra, estava eu a jantar na companhia do furriel Benjamim Dias, quando rebentou o fogachal que logo fez estoirar com toda a iluminação do quartel. No céu via-se o rasto das balas tracejantes que tinham por missão orientar o fogo das armas pesadas em direcção do quartel. O furriel Dias saltou de imediato para o abrigo do nosso morteiro e fez um trabalho exaustivo de bater toda a zona circundante. 


Foto 3 – Enxalé 1972 – Espaldar da bazuca, com protecções e respectiva vala. As casas eram utilizadas como dormitórios.

Eu fui ao gabinete buscar o mapa dos pontos marcados pela nossa bateria de obuses do Xime com o objectivo de orientar o nosso fogo pesado, logo que se localizassem os pontos de origem do fogo pesado IN. Nesse percurso entrou uma canhoada a cerca de dez metros de mim que entrou pelo depósito de géneros causando alguma destruição. Entretanto, o nosso posto mais acima no quartel, onde tínhamos alguns elementos utilizando também um morteiro pesado, fazia o seu trabalho de contenção, respondendo em conformidade.

O ataque durou cerca de vinte minutos.

O grupo de assalto IN movia-se perto do arame farpado, fazendo fogo. O nosso pessoal despejava metralha. Uns enchiam carregadores e outros disparavam. A bazuca não funcionou.

Esperámos nova vaga… mas ela não aconteceu… porque eles tiveram algumas baixas, graças à competência do nosso camarada furriel Josué Chinelo, do Pelotão de Artilharia [obuses 10,5] instalado no Xime, onde este observava perfeitamente, em posição privilegiada da margem esquerda do rio Geba, o desenrolar dos acontecimentos. 

Com a sua experiência e saber, ainda que a olho nu, apontou ao ponto de origem do fogo pesado IN (canhão s/r) e… foi na muche. Acertou no posto de comando e fez algumas baixas entre os quais o comandante. Entretanto eles já tinham despejado o fogo todo. 

Nessa altura chegou a milícia da tabanca com um ferido grave, um sargento de um dos pelotões. Ainda enviamos um grupo até ao rio para evacuar o ferido e recolher mais munições pois o stock tinha ficado muito em baixo. O ferido entretanto faleceu durante a caminhada. 


Foto 4 – Enxalé 1972 – Panorâmica da Tabanca… com o Geba pelas costas. Ao centro da imagem era a pista do Heli.

IV– DEPOIS DO ATAQUE

No dia seguinte, como seria de esperar, fizemos o reconhecimento do terreno. Encontrámos um ferido IN junto ao arame farpado; tinha um ferimento grave nas costas e outro na perna e estava em mau estado, crivado de estilhaços. É de assinalar que este ferido pertencia ao grupo de assalto; tinha vindo da zona do Morés. Estava ferido, mas que eles julgaram morto por isso levaram a sua arma. Vestia uma farda de nylon verde azeitona, calçava bota de lona francesa e as calças tinham elásticos nas bainhas para passar por baixo do pé.

Ainda nesse dia recebemos a visita do nosso comandante, Ten. Cor. António Tiago Martins [1919-1992], que tentou interrogar o ferido mas sem grande sucesso, sendo este evacuado, depois, para Bissau.

A primeira questão colocada pelo nosso comandante foi: “gastaram muitas munições” …. !!!!???? [fiquei aparvalhado].

Viemos a saber dias depois, por informantes privilegiados, que o IN tinha feito a sua aproximação durante o dia. Ficou na orla da bolanha e quando anoiteceu montou o dispositivo.

O esquema foi o seguinte: 

1) A força principal na mata do lado da tabanca. 

2) Alguns atiradores dispersos à volta do quartel para dividir o nosso potencial de fogo para zonas sem importância. 

3) Um grupo de assalto [o do ferido] oriundo de um mangal e outro arvoredo do lado esquerdo do quartel [para quem está de costas para o Xime, logo a seguir ao final da bolanha).

O mais curioso é que montaram o canhão s/r na bolanha, junto a uma árvore isolada, e que não era visível do quartel mas amplamente observado do Aquartelamento do Xime e que foi [bem] aproveitado pela experiência do Josué Chinelo.

Entretanto eu fui de férias e foi aí que o Jorge Araújo se deslocou ao Enxalé até à chegada do Alferes José Henriques Araújo.


Foto 5 – Enxalé 1972 – Entrada da Tabanca.


Foto 6 – Enxalé 1972 – A casa ao centro era a habitação do antigo fazendeiro do Enxalé antes da Guerra. No nosso tempo aí funcionava a Sala do Comando e o refeitório. À direita era o abrigo das transmissões e na retaguarda estava localizado o abrigo do morteiro. 

Quando aconteceu a tragédia no Rio Geba [em 10 de Agosto de 1972] eu já estava por cá, em Lisboa.
Em suma, esta é a minha versão dos acontecimentos relacionados com o ataque ao Enxalé, visto tê-los vivido de forma especial e muito intensa. Outros pormenores devem existir, justamente para engrossarem este esqueleto, mas só com a contribuição dos meus companheiros desse dia.

A História faz-se com a recolha de informação de várias fontes.

Concluo recordando o que consta, a este propósito, na História da Unidade:

- “Em 192030, o Destacamento do ENXALÉ foi intensamente atacado e durante 20 minutos. A nossa reacção surgiu pronta e ajustada. Sofremos 1 morto [Milícia] e 2 feridos [Milícias]. O inimigo: 4 mortos, 7 feridos e 1 prisioneiro. Salienta-se o tiro acertado de Artilharia do XIME em apoio às forças atacadas” [p.74].

– O GRUPO DO MARCELINO DA MATA


Foto 6 – O Marcelino da Mata, o 2.º da esquerda, acompanhado de elementos do seu grupo em 26MAR1973, no momento em que o Ten. Miguel Pessoa é resgatado depois da sua aeronave ter sido atingida, na véspera, por um míssil Strela [P12265-LG, com a devida vénia]. Provavelmente alguns dos elementos na foto participaram, também, nas missões do mês de Julho/1972 efectuadas no Enxalé.

Espero ter contribuído com alguma coisa.

Um abração.
Luciano de Jesus
ex-Fur. Mil., CART 3494.
06DEC2014
___________
Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em: 


5 comentários:

Abílio Duarte disse...

Formidável foto da recolha do piloto aviador.Situação que deve engrandecer e honrar os homens que como Marcelino da Mata, e outros militares guinéus, incluindo a minha CART.11, souberam dignificar a farda que vestiam.

José Nascimento disse...

No dia 13 de Maio de 1970, o 2º. pelotão da Cart 2520, viveu uma situação semelhante. O Enxalé sofreu um ataque com 1 canhão S/R, morteiros e várias armas ligeiras, causando 1 morto à população. O IN sofreu 4 mortos. O destacamento era comandado pelo Fur Mil Rogério Vaz.

Luís Graça disse...

Luciano, com este relato circunstanciado e detalhado, feito na primeira pessoa, do ataque do PAIGC ao Enxalé, em julho de 1972, e da valente resistências das NT, tens direito a passadeira vermelha para entrar na Tabanca Grande.

Com mais um elemento a integrar a Tabanca Grande, ou seja, este blogue que é de todos, construído por todos nós e acarinhado por todos nós, ex-combatentes da Guiné. a CART 3494 destaca-se à frente de todas as outras unidades que passaram pelo CTIG...

Graças também à "militância" de camaradas como o Jorge Araújo e o Sousa de Castro, que eu saúdo com um alfabravo especial nesta quadra festva.

Luciano, és bem vindo. Passas a ser o grã-tabanqueiro nº 675. E depois do Natal traz outro camarada contigo!

Conheci o Enxalé onde fui várias vezes, no meu tempo (CCAÇ 12, jul 69/mar 71). A operação mais dramática que lá fiz foi a Op Tigre Vadio, em março de 1970, se não erro, na região de Mandina/Belel. Está aqui descrita no blogue.

Boas festas, e que o novo ano seja de esperança para ti e demais camaradas da CART 3494.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Já dei a minha opinião (favorável) e tanto quanto possível complementar, noutro lugar.
Não há dúvida da relação entre a acção do grupo do Marcelino e o contra-ataque do PAIGC.
Um Ab
António J. P. Costa

Anónimo disse...

Camaradas,

Para completar os factos narrados pelo camarada Luciano de Jesus, informo que o milícia das NT que morreu neste ataque chamava-se DICOR EMBALÓ, era natural de Aliu Zai (Bambadinca), n.mec 873/71, do GEMil 309 (in. ultramar.terraweb - mortos na guerra naturais da Guiné - com a devida vénia).

Um abraço,
Jorge Araújo.