quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15040: Os nossos seres, saberes e lazeres (112): Un viaggio nel sud Italia (3): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Às vezes talhamos as nossas viagens e cometemos a leviandade de querer meter o Rossio na Betesga.
Nápoles é tão jubilosa, magnífica desde o período greco-romano até às ousadias da modernidade, tem o impressionante Vesúvio, o seu peculiar bulício nas ruas compactadas de gente e trânsito, o seu museu arqueológico é magnífico, há a catedral e dezenas de igrejas e praças, que até quase sinto vergonha pela insignificância que mostro.
Espero voltar a ter outra oportunidade para acariciar Nápoles como deve ser.

Um abraço do
Mário


Un viaggio nel sud Italia (3) 

Beja Santos

Ver Nápoles por um canudo

Tivesse eu seguido à letra todas as propostas para conhecer os tesouros artísticos de Nápoles e arredores, muito provavelmente ainda lá estava, a passear-me entre palácios, igrejas, museus, catacumbas, a coscuvilhar todo o casco histórico.

Levo o “Kaputt” de Curzio Malaparte debaixo do braço, vem a propósito fazer referências a Nápoles. Malaparte encontra a princesa do Piamonte (mulher de Umberto de Itália, viveu muito tempo em Cascais, na Villa Italia) no hall da gare de Nápoles, pouco depois de um bombardeamento. E escreve: “Os feridos jaziam em cima de macas alinhadas no cais, aguardando as ambulâncias. A princesa o Piamonte mostrava no seu rosto a palidez mortal da angústia – mas não apenas da angústia: qualquer coisa de mais profundo, de mais secreto. Emagrecera, tinha umas olheiras enormes e as têmporas floridas de uma ligeira tatuagem branca de rugas. Para todo o sempre, aquele puro esplendor que a iluminava quando fora a Turim pela primeira vez, alguns dias depois do seu casamento, apagara-se. Tornara-se mais lenta, mais pesada e parecia estranhamente envelhecida”. Cumprimentam-se, a princesa procura palavras tranquilizadoras. Malaparte responde. “Nós já perdemos a guerra; todos nós perdemos a guerra. Vós também”.


Saio da gare de Nápoles e presto esta homenagem a Malaparte, nada resta desse passado, 70 anos é muito tempo e esta estação ferroviária está cercada de arranha-céus. A obra-prima absoluta de Malaparte termina em Nápoles, ele concluiu o livro em Capri, no mês de Setembro de 1943. Há bombardeamentos, multidões em pânico, fome e sede, mas essa multidão só fala no sangue, o sangue do santo padroeiro de Nápoles, San Gennaro, que se liquefaz periodicamente. Tinha-se espraiado pela cidade o boato segundo o qual uma bomba atingira a catedral e fizera desmoronar-se a cripta onde se conservam os dois relicários com o precioso sangue. E Malaparte dá-nos um parágrafo prodigioso: “Era a primeira vez, depois de quatro anos de guerra, a primeira vez no decurso da minha cruel viagem através dos massacres, da fome, das cidades destruídas, a primeira vez que ouvia pronunciar a palavra sangue com sagrado e misterioso respeito. Em todas as partes da Europa, na Sérvia, na Croácia, na Roménia, na Polónia, na Rússia, na Finlândia, essa palavra soava com ódio, medo, desprezo, alegria, horror, cruel e bárbara complacência, prazer sensual – num tom que sempre me causara horror e nojo. A palavra sangue tornara-se para mim mais terrível que o próprio sangue. Ora em Nápoles, precisamente em Nápoles, na mais infeliz, na mais esfaimada, na mais humilhada e torturada cidade da Europa, na mais desgraçada cidade da Europa, que eu ouvi a pronunciar a palavra sangue com um religioso respeito, sagrado tumor e profundo sentido de caridade, na voz clara, pura, inocente e amável que tem o povo italiano ao pronunciar as palavras mamma, bimbo, cielo, Madonna, pane, Gesú, a mesma inocência, a mesma pureza, a mesma amável candura”.
Fatalmente, e sempre a pensar em Malaparte, avancei para a catedral, três quilómetros a pé num calor insuportável e a ver as maiores montureiras que imaginar se pode, nunca vi tanto lixo na rua.


Fachada de gótico italiano, concluída por Roberto de Anjou, em 1313, muitas vezes alterada. Celebrava-se missa, sorrateiramente fui até à capela do tesouro de San Genaro, é muito faustosa, ficamos embasbacados com os enormes relicários com bustos de prata. É aqui que se expõe durante duas semanas o relicário para ocasião do milagre da liquefação. Na véspera, e durante a viagem de comboio de Salerno até aqui, angustiei-me a ler o património que a cidade oferece, só o museu arqueológico tem acervo para um dia inteiro, o melhor de Pompeia e Herculano, por exemplo, expõe-se aqui. Estava tomada uma decisão: vamos ver Nápoles pela imagem que nos dão os viajantes há muitos séculos.






O núcleo histórico de Nápoles conserva a sua antiga estrutura greco-romana e prossegue em espaços medievais e renascentistas. O comércio estava aberto, pedi licença ao quinquilheiro para mostrar a fachada da sua loja, autorizou sem hesitação. Seguem-se as ruas do umbigo da cidade, dá gosto ver a reciclagem de tudo quanto é antigo nas habitações e mobiliário urbano atuais. É pena que as imagens em certos casos não tenham som, asseguro-vos que se ouviria o bater do coração napolitano, até canções se misturam nestas ruas de trânsito caótico, com grandes fachadas de palácios, árvores, praças, sente-se uma irrecusável alegria de viver, todos se falam, param frente às montras cheias de iguarias, também eu não resisti, entrei para comer uma babá, um dos doces tradicionais da cidade. É nisto que dou com o complexo monumental de Santa Clara, ao longo da via Benedetto Croce, um sábio italiano que estudei em Teoria da História. A igreja é austera, em gótico provençal, foi bastante afetada pelos bombardeamentos de 1943, o restauro é magnífico. Quando ouvi a palavra majólica em profusão nos claustros, não resisti, entrei todo lampeiro.




Só para ver este claustro valeu a pena vir a Nápoles. É gigantesco mais harmonioso, tem uns belos jardins, as paredes estão cobertas por frescos do século XVIII, representando santos, alegorias e cenas do antigo testamento. Mas a azulejaria a toda a volta, os bancos primorosos com cenas da vida quotidiana da época que nos fazem palpitar, nada vira nesta policromia azulejar de tão belo, num edifício religioso. O cansaço era enorme, fiz dois em um, contemplava os frescos e os azulejos e aproveitei para passar pelas brasas. E depois entrei no museu, mal sabia que ia ter um encontro inesperado, inesquecível.


A Idade Média deu enorme destaque a um encontro entre a Virgem e a sua prima Isabel, é a imagem da afetuosidade familiar e da hospitalidade. Cativou-me este mármore do século XIV, a singeleza do drapejamento e as mãos a abraçarem-se, os corpos a acolherem-se. É tão tocante não preciso de saber como eram os seus rostos, que o tempo erodiu.



Estou a despedir-me de uma cidade que teve vice-reis de Espanha entre os séculos XVI e XVIII, vieram depois os Borbons e o seu reino de Nápoles até 1860, quando surgiu a Itália. Foi um simples passeio, ainda irei até ao porto e até viajarei no moderníssimo metropolitano. Vi o Vesúvio, impressionante. Fica o sabor amargo de uma pálida amostra, que teria valido a pena organizar as coisas para estar mais tempo. Agora é tarde, hei de voltar. As casas palácio têm dimensões medonhas, fiz quatro ou cinco fotografias desta entrada apalaçada, até me acocorei para que tudo coubesse na imagem, em vão, o leitor que suponha como é tudo vasto, para impressionar. E mais adiante avistei uma casa de bicos, a rivalizar com a nossa, ali no Campo das Cebolas, onde se comemora Saramago. Para que conste. A dormitar em pé, regresso a Salerno. Preparei as coisas para ter amanhã um dia agitado. Será todo o dia a percorrer a Costa Amalfitana.

(Continua)
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Nota do editor

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