sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15050: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (17): De 8 a 21 de Julho de 1973

1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

17 - 08 a 21-07-1973 


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/08 – Forças da 1.ª e 2.ª CCAÇ durante a acção “ORGULHO” detectaram e destruíram parcialmente em (GUILEGE 3 F 9-68), 1 palhota celeiro contendo arroz estimado em 2 TON e várias palhotas abandonadas provavelmente há 1 ou 2 meses.

Na região (Guilege 3 F 7-62) e (Guilege 3 F 4-52) detectaram e destruíram um conjunto de palhotas abandonadas na ocasião provável das anteriores. Na região (Guilege 3 F 4-47) foi detectado à distância 1 elemento IN que perseguido se pôs em fuga abandonando 10 cargas de RPG-2, 10 cartuchos de granadas do morteiro 82 e 2 petardos de trotil. Entre as regiões (Guilege 3 F 9-68 / 3 F 4-47) foram detectados diversos trilhos de utilização IN muito recentes. [No meu caderno, nesta data, nada registei.]

Nhala com vento ciclónico momentos antes do dilúvio.

Do meu caderno de memórias: 

10 de Julho de 1973 – (terça-feira) – Nhala; Cumbijã a piorar. 

Hoje houve coluna. Como sempre, vêm notícias, mas nunca agradáveis. A situação em Cumbijã é horrível, embora a actividade IN, até agora, tenha sido quase nula. É horrível pelo excesso de esforço exigido ao pessoal que se encontra subalimentado e sem os requisitos indispensáveis para recuperar desse esforço. As saídas, quase sempre a nível de duas ou três companhias, têm sido para longas distâncias e bastas vezes. Numa dessas incursões chegaram a estar a 700 metros [?] do Unal, base IN de grande potencial.

O número de elementos por pelotão, decresce a olhos vistos: o meu grupo, que já andava reduzido a 21 homens, agora conta 16, havendo outros grupos com menos ainda. Mesmo os que ficam inoperacionais, regra geral por doença, são obrigados a fazerem reforços durante a noite, qualquer que seja o seu estado de saúde.

Em Aldeia Formosa houve mais um acidente que encurtou a comissão a um soldado. Não se sabe bem como, pois há várias versões, um soldado matou sem intenção um seu camarada com um tiro de G3. Quer expliquem o acidente assim ou assado, o que é certo, é que já são dois os mortos do meu Batalhão, com apenas três meses e pouco de Guiné e, ambos, sem ser em combate. Hoje, na coluna, passou o caixão com o cadáver do infeliz rapaz.

A minha estadia em Nhala deve estar prestes a findar, e lá terei que voltar para o inóspito Cumbijã, onde se avolumam pessoas e problemas. Mais dia, menos dia, dar-se-á o colapso: todo o pessoal, incluindo graduados, está a acumular tensão e indignação perante a realidade, penosa e opressiva, que se vive naquela base. Agora, para além das más condições já várias vezes referidas, impera um regime disciplinar muito semelhante ao de qualquer quartel da Metrópole, tanto no referente ao aprumo e fardamento, como no referente às normas de procedimentos como, por exemplo, as apresentações formais dos grupos chegados do mato, mesmo que lá tenham dormido e passado todo o dia anterior. O Capitão (...) já ameaçou o Major D. M. de que, qualquer dia, se recusa a sair com a sua Companhia para o mato. No que pode ser visto como um caso de indisciplina, eu só vejo atitude digna, na defesa dos seus homens e coerência com atitudes anteriores que lhe são atribuídas no mesmo sentido. O vapor força cada vez mais o testo da panela e, agora, são vários os vapores que se juntam. Adivinha-se o salto do testo. Veremos.

[Estas foram as últimas linhas dos meus Cadernos de Memórias da Guiné. Como já referi antes, os restantes cadernos ficaram com o meu espólio em Nhala aquando da minha vinda de férias, sem regresso, em Agosto/74, faz agora 41 anos. Oficialmente, desde essa data, ainda não sei que o meu Batalhão regressou definitivamente à Pátria. É uma história lamentável que não cabe aqui, mas que devia mexer com a consciência de quem tinha responsabilidades. 

De ora avante, socorrer-me-ei da História da Unidade do BCAÇ 4513 para relembrar datas, nomes, factos, locais, etc., e das minhas notas dispersas. O resto virá dos fundos da memória até que se esgote o arquivo. Poderá ser que estranhem a fluência e o estilo da escrita, ou as histórias mais pobres de detalhes mas, se isso acontecer, apenas se deve à escassez da informação e ao “português mais moderno” mas sempre com a antiga ortografia. 

Passarei a referir “Das minhas memórias” em vez de: “Dos meus cadernos de memórias”].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/11 – Em 110915JUL73 grupo IN não estimado flagelou BRICAMA (GUILEGE 3 F 3-51) com 10 granadas de canhão S/R (sem recuo) da direcção SALANCAUR JATE (GUILEGE 3 C 4-23) sem consequências.

Em 111835 e 1850JUL73 grupo IN não estimado flagelou o Destacamento de Cumbijã com 20 granadas de morteiro 82 da direcção do R. COEL, sem consequências.

JUL73/12 – Forças da 2.ª CCAÇ patrulharam a região (GUILEGE 3 E 6-85), onde emboscaram durante a noite. Sem contacto.

JUL73/13 – Forças da CCAV 8351 patrulharam a região de NHACOBÁ, TUNANE, R. TEMUDE, não encontraram vestígios IN.

(Da H. da Unidade do BCAÇ 3852, Cap. II / Pág. 75) - Registou-se um acidente durante a realização duma coluna entre A. FORMOSA-BUBA, do qual resultou a morte dum soldado da CCAÇ 18.


Das minhas memórias: 

13 de Julho de 1973 – (sexta-feira) – De Nhala para Cumbijã: o regresso.

Sexta, 13: dia de azar para um soldado da CCAÇ 18 que faleceu num acidente na mesma coluna em que eu seguia de Nhala para Cumbijã. Ao fim de 19 dias em Nhala como Comandante Interino da Companhia, eu sei que vou para o inferno. Desse soldado, só Deus, Alá ou outro qualquer deus saberá.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/14 – (...). 

JUL73/15 – Forças da 2,ª CCAÇ durante a acção “OLEADO” patrulharam novamente a região de SAMBASÓ, sem contacto.

JUL73/16 – Forças da CCAV 8351 patrulharam a região de SANBASÓ e emboscaram durante a noite em (GUILEGE 3 H 9-65). Choveu torrencialmente.

JUL73/17 – Forças da 2.ª e 3.ª CCAÇ durante a acção “ONDINA” patrulharam a região de SAMENAU, sem contacto. Regressou de BISSAU o CMDT INT do BATALHÃO.


Das minhas memórias: 

17 de Julho de 1973 – (terça-feira) – Cumbijã; Carta para a Metrópole; Regresso às origens?

“ (...). Esta carta, no fim da segunda linha foi interrompida por, de repente, ter ouvido rebentamentos no mato e está lá a minha Companhia. (Eu estou com o meu grupo de serviço ao aquartelamento). Afinal, apesar de não se ter conseguido ligação via rádio, supõe-se tratar-se de Guileje a “embrulhar”. [??? - Suponho que Guileje foi abandonado em 22 de Maio desse ano]. O resto da carta foi escrito ao som dos rebentamentos do ataque do PAIGC. Soube de Bissau que, finalmente, as Companhias do meu Batalhão ocuparão definitivamente as suas posições iniciais”.

[Iria para Nhala, sim, só que ainda correria muita água sob as pontes!].

Nesta data, a meio da noite, sou acordado pelo Major D. M., assim:
- Alferes Murta! Você não tem o pelotão de serviço? - Sento-me de um salto na cama e, confuso, só vejo uma sombra na minha frente. Respondo que sim.
- E não ouviu estes tiros? Vá já ao posto do lado da estrada saber o que se passa.

Enfio o camuflado e as botas sem meias, e corro de G3 em punho para os lados da entrada do aquartelamento, para os fundos da noite, vociferando impropérios e maldições contra o major e a minha sorte.
- Então?! O que é que se passou para estares a dar tiros? - O soldado, embora calmo, via-se que estava apreensivo e com os olhos cravados na mata escura para além da estrada em frente.

Disse:
- Ali mesmo na borda da mata eu vi luzes a mexerem-se e a andarem para o lado de Colibuia. E eu mandei umas rajadas.
- Fizeste bem. A seguir voltaste a vê-las?
- Não, não. Não vi mais nada. - Fixei bem os olhos para onde ele tinha apontado e segui com o olhar a orla para o lado direito. Mas, apesar da proximidade, mal se vislumbrava a mata na noite escura.
- Ok! Vou ficar aqui a fazer-te companhia e a ver se voltam a aparecer.

Estivemos assim quase toda a noite mas não se viu mais nada nem eu esperava ver. Se passaram, passaram e, se regressassem não arriscariam o mesmo caminho, a menos que estivessem a desafiar-nos. Só escuridão e silêncio. Julgo que nem mosquitos havia nessa noite.

“Só luzinhas e mais luzinhas! Os rapazes andam cansados e têm alucinações. Visões! Só pode ser. Olha que não sei, isto tem acontecido às sentinelas de todos os grupos! Tás parvo? Achas que os gajos arriscavam passar aqui mesmo nas nossas barbas? Quer dizer: as sentinelas mandam rajadas para cima deles e eles, uns tempos depois, voltam aqui a fazer fosquinhas?! Achas? Eu não acredito”. Eram os comentários correntes.

No dia 17 de Agosto/73, entre Mampatá e Colibuia, a estrada foi cortada pela quarta vez. Agora, numa extensão de 40 metros, entre os dois pontões destruídos anteriormente. Não restavam dúvidas de que faziam por ali muitas passagens a transportar o material com que, mais tarde, cortavam a estrada. Mas convenhamos que era um grande desaforo.

Aspecto do aquartelamento de Colibuia, provavelmente em 1973.

Eu, de passagem por Colibuia, provavelmente em 1973.

18 de Julho de 1973 – (quarta-feira) – Cumbijã; Aerograma para a Metrópole. 

“ (...) Finalmente irei para Nhala com toda a certeza. Só vamos esperar que chegue aqui o novo Batalhão que está a fazer a IAO em Bolama. Devem chegar, daqui a mais ou menos 3 semanas. Eram para ficar nas localidades que nós ocupámos à chegada, (Buba, Nhala e Aldeia Formos), mas, diz-se, ficarão na zona da “porrada”, apesar da sua inexperiência. Amanhã sairei daqui às 7 horas da manhã para o mato, onde passarei a noite”.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUL73/19 – Forças da 2.ª CCAÇ durante a acção “OLIMPO”, encontraram um porta-granadas de canhão R/S vazio. Verificou-se a destruição pelo IN do pontão do R. HABI. Continua a chover torrencialmente e os rios apresentam já grande caudal e as bolanhas em estado pantanoso pelo que impossibilita a passagem das NT. [Estive nesta acção mas não recordo nada, embora, como escrevi na data anterior, ela implicasse uma dormida no mato naquelas condições atmosféricas].

JUL73/20 – Forças da 3.ª CCAÇ durante a acção “OLINDA” dirigem o seu esforço ao longo do R. LENGUEL a fim de detectarem uma passagem no mesmo. Emboscam durante a noite. Continua a chover torrencialmente.

JUL73/21 – Na madrugada deste dia, são ouvidos uma série de rebentamentos para Sul, sabendo-se mais tarde que se tratava de uma flagelação ao destacamento de CHUGUÉ. As forças da 3.ª CCAÇ regressaram da acção “OLINDA”, sem terem conseguido detectar qualquer passagem no R. LENGUEL.


Das minhas memórias:

21 de Julho de 1973 – (sábado) – Cumbijã: Carta para a Metrópole. 

[Depois de informar que os “crânios” têm intenções de nos mandar ao UNAL, base do PAIGC ainda mais importante do que Nhacobá, refiro com entusiasmo uma novidade]. “(...) tenho aqui um novo camarada que também já foi teu colega de curso. É um furriel e chegou aqui a Cumbijã no dia 15 deste mês, vindo directamente da Metrópole, até passou aí o S. João na Figueira. Chama-se Leiria e é de Buarcos, e eu lembro-me perfeitamente dele de quando tinha aulas contigo. Temos conversado horas seguidas. Ele já sabia que eu estava na Guiné, (disse-lho uma miúda daí), mas não imaginava que me vinha encontrar precisamente na Companhia onde fora colocado. Vou ver se consigo que ele fique no meu pelotão, pois sempre tive apenas dois furriéis e os soldados estão-se a apagar a olhos vistos: o meu grupo passou de 25 para 13 a 14 homens, porque a maioria está doente e, mesmo assim, o meu grupo é o maior. (...)”.

[O referido furriel nunca chegou a integrar o meu grupo. Mesmo na Companhia, acho que esteve pouco tempo, desconhecendo o rumo que levou. Muitos anos depois, já em Portugal, encontrei-o como Comandante. de um posto da GNR aqui perto da Figueira. Depois disso nunca mais o vi].

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

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2 comentários:

Anónimo disse...

Caros combatentes:

Eu continuo a realçar o rigor, a verdade ou, pelo menos, a verosimilhança dos relatos do Murta, sobre a actividade operacional e as condições de grande sofrimento a que estávamos a ser sujeitos, em 1973/74. Quando o Murta fala em grupos que saíam com 13 militares, está a dizer a verdade porque isso ocorreu algumas vezes com grupos da 6250. Mais ainda, eu saí, uma vez, com um pelotão constituído por 13 militares, sendo que um era asmático e foi preciso trazer-lhe a arma e arrastá-lo no regresso até Mampatá. Quem esteve lá sabe como era: paludismos, gastrites, gastroenterites, diarreias, astenias, amebíases, odontalgias etc etc. Estamos a falar de uma grande maioria de combatentes que viviam em condições de alojamento e alimentação absolutamente miseráveis. Quando se fala nos bifes com ovo a cavalo e batatas fritas, de Pelicanos e Bentos, é preciso que se diga que isso era só para alguns e por pouco tempo.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Hélder Valério disse...

Caro Murta

Continuas a relatar as tuas memórias de uma forma muito interessante, pois fica-se não só a perceber melhor o que se passa(va), em termos 'práticos', como também se entende (quem quiser) muito bem o enquadramento físico, psicológico e até 'operacional' em que as coisas aconteciam.

Abraço
Hélder S.