1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2014:
Queridos amigos,
Creio que há no depoimento de Nhoma-Bitchofula Na Fafe alguns descontos a fazer, aspetos da narrativa serão excessivos ou até mirabolantes. Mas foi uma vida de peripécias, de fidelidades que acabaram em dissabores. É um homem de crenças, um Balanta orgulhoso do sangue e dos seus credos, e dos seus deuses. A escrita luso-guineense tem parágrafos luminosos, que nos dão conta que o português está a dilatar-se, a mudar de look e de natureza, neste caso na Guiné. E aproveito para lembrar que a primeira biografia de um ex-guerrilheiro do PAIGC registada na Guiné. Mais uma peça que a historiografia não pode descurar.
Um abraço do
Mário
Nhoma, um combatente em várias guerras da Guiné-Bissau (2)
Beja Santos
Um ex-guerrilheiro do PAIGC, alguém que muito jovem, obstinadamente, quis combater ao lado do Kabi, entrega a história da sua vida a dois biógrafos. É um Balanta que se adorna de amuletos contra os maus-olhados. Lutou no sul até à independência e depois experimentou muitas guerras até ao assassinato de Nino. O que narra assombra e os biógrafos passam a limpo este extraordinário registo na língua luso-guineense, que não nos assombrará menos. É importante conhecer “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër, Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013.
Nhoma está em Guileje, vai de novo encontrar-se com Osvaldo Vieira. Osvaldo está furioso porque os guerrilheiros não conseguem tirar os tugas de Gadamael, oferece-lhe a missão de os combater, de os afugentar. Nhoma explica que nunca esteve em Gadamael: “Camarada Osvaldo, quando vens a Guileje tens de passar por outra margem, do lado de Sangonhá para poder chegar a Gadamael, mas eu nunca fui lá… Nem Sangonhá conheço direito”. Põe-se à frente dos guerrilheiros, incrédulo irá descobrir que os seus camaradas nunca ali tinham posto os pés. Vai com eles um conselheiro cubano. Metem-se pela mata, descobrem tropa portuguesa na praia, fazem fogo. E nada mais se fica a saber, assim se chega à independência, agora vemos Nhoma no Leste, a integrar o batalhão do comandante Paulo Malú. Depois esteve em Cabo Verde, mais adiante Buscardini (que será morto no 14 de Novembro de 1980) nomeia-o para adjunto de operações na polícia, será mais tarde inspetor-chefe da prisão da 2.ª Esquadra, em Bissau. É chamado por Nino que lhe confessa que está um plano em marcha para matar, a acusação maior é que ele defende os Balantas. Nhoma está atónito, há muitos anos que não ouvia falar em tribalismo. Em casa, reflete-se sobre esta conversa, recorda as diferentes ficções entre as alas na cúpula do partido. Temos depois, Nhoma adere ao golpe de 14 de Novembro. Nhoma, um ano depois, é nomeado pelo ministro do interior para ir controlar o Cacheu.
Seis anos depois do golpe de Estado, Nhoma é acusado de estar na tentativa do golpe de Estado de Paulo Correia, não demora muito tempo a perceber que se trata de uma maquinação reles, destituída de qualquer fundamento. E vê indefetíveis combatentes a serem torturados, a serem sujeitos às sevícias mais degradantes. Nhoma é condenado a sete anos de prisão e a prestar serviço social na ilha de Caraxe. Relata os sofrimentos que ele e os seus camaradas irão ali padecer. E em 1990 serão indultados, Nino anuncia a reconciliação, é nessa sessão que ele desabafa em voz alta e acusa o Kabi de ditador, desmonta a cabala dos Balantas quererem dar golpes contra o poder constituído, lembra-lhe as fidelidades do passado e grita-lhe: “Gostas de fabricar inimigos. Os Balantas protegeram-te e deram-te o nome de Kabi. A luta não pode ter gerado mortos. Dizem também que não sabemos ler, mas uma coisa é certa, a prioridade era estar na linha da frente e combater, cara-a-cara com os tugas. Não tenho mais nada a dizer”. E chegamos à guerra civil de 1998-1999. Temos aqui um parágrafo delicioso: “Nhoma parecia ter visto, em sonho, toiros negros com cabeça de kabaró, ruborizados, com as tranças de um escuro pardacento, dois chifres longos e afiados e enormes ráfias, também negras e vermelhas, caídas de cada lado, com uma espécie de garras de grifo, furiosas, correndo em sua direção”. Acordou e ouviu disparos de AK-47, depois disparos de bazuca. Viu a população em fuga, à varanda assistiu à explosão de uma granada bem perto de sua casa. Chegou-lhe a notícia de que Ansumane Mané capitaneava a revolta. Vai ao mercado, tranquilamente, e é detido. No interrogatório, esbofeteiam-no e espancam-no. É levado para marinha, metido numa prisão fétida, guardado por senegaleses. Arranja material para escavar um buraco, ele e vários presos políticos são bem-sucedidos. É encontrado pela tropa da Junta, e assim chega à base aérea e depois vai até Canchugo para fazer tratamentos. Irá encontrar os seus captores, é uma cena pungente. Estamos agora em Maio de 1999, pelo que se lê no seu relato, as tropas fiéis a Nino, os “aguentas” ou “anguentas”, são acusados de reatar a guerra. Nhoma é nesta altura diretor-geral adjunto do Ministério do Interior. Descreve: “Ao cair da noite, a frente comandada por Bubo Na Tchuto chegou à Chapa de Bissau. Antes do galo da madrugada, atingiram o mercado de Bandim. Ao espreitar o sol matinal, surpreendidas, as milícias anguentas receberam ordem para se renderem. Alguns desfaziam-se das fardas com medo das represálias. Começou a caça às bruxas. Houve execuções sumárias. Era urgente a Junta Militar assumir o controlo da situação para não haver um verdadeiro banho de sangue”. Nino refugia-se na Embaixada de Portugal. Nhoma murmura: “Cabral, aqui estamos de novo… Ainda não nos cansámos! Não parámos porque as instruções que nos deixaste para defender a nossa terra e o nosso povo não estão a ser cumpridas”.
Bissau ficou com as suas feridas, que vão demorar décadas a sarar. Entrámos no derradeiro capítulo. Nhoma fora promovido a tenente-coronel. Ansumane Mané revolta-se contra Kumba Yalá. Acabará morto perto de Quinhamel, na tabanca de Blom. Nhoma vai buscar Kumba e leva-o par o palácio presidencial. O sangue derramado não pára, Veríssimo Seabra será assassinado, um amigo dos dois, Tagme Na Waié, sucede-lhe. O Kabi vem do exílio. Tagme Na Waié jurara vingança a Nino Vieira. Tagme acusa Nhome de conspiração, Tagme rompe com Bubo Na Tchuto. Nhoma encontra-se com Nino e pede-lhe para não se candidatar à presidência, sabia-se que Nino tinha criado um partido, o PRID, exclusivamente para suporte da sua candidatura. Nhoma recrimina-o: “Lembra-te bem do que se passou em Conacri, depois da morte de Cabral. Que nome terá esse partido que vais criar? A tua fama, a tua história é no PAIGC. Volta para lá, mesmo como simples militante”. Os ódios estão à solta, e com ajustes de contas. Tagme morre numa explosão no Estado-Maior. No dia seguinte é a vez de Nino. Nhoma foi até à residência do Kabi, na rua Angola. Ao aproximar-se da casa viu gente a saquear os móveis. Encontrou o corpo do Kabi estendido no chão. Lá estavam as cartas, sobretudo do naipe de espadas. Nhoma chora, curva-se perante o chefe da guerra que muitos anos antes admirara. Por tudo quanto se passou na sua vida, Nhoma entendeu dar a sua contribuição contando o que viveu, como e com quem viveu, a sua alma anseia uma paz verdadeira para a Guiné-Bissau.
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Nota do editor
Poste anterior de 24 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15034: Notas de leitura (750): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
BS com mais uma novidade de se tirar o chapéu.
Talvez agora comece a aparecer alguma literatura daquela nossa guerra vista do outro lado, tanto do PAIGC, que é este o caso, e que nos é dado a conhecer mais amiúde, até pelo anticolonialismo "tuga", mas também por outros prismas guineenses, que são muito diversos.
Mário, nunca contradigo as tuas opiniões, mas não vou contigo quando apresentas: "Creio que há no depoimento de Nhoma-Bitchofula Na Fafe alguns descontos a fazer, aspetos da narrativa serão excessivos ou até mirabolantes".
Para mim não são nem mirabolantes nem excessivos, são uma pequena amostra de uma realidade que existe no PAIGC e que é vivida intensamente e com todas as superstições em toda a Guiné Bissau e na cabeça de cada um.
O PAIGC não é um partido político, em África não há "política", há "intriga" tribal assassina ou suicida, como se queira chamar.
NHOMA é também uma aldeia muito simpática balanta perto de Nhacra à beira da estrada Bissau Mansoa.
Mário, como se puderá adquirir esse livro? está dentro do meu hoby.
Cumprimentos
Muito curiosos estes parágrafos sobre os homens do PAIGC em Guileje e Gadamael, Maio de 1973. Cito:
"Nhoma está em Guileje, vai de novo encontrar-se com Osvaldo Vieira. Osvaldo está furioso porque os guerrilheiros não conseguem tirar os tugas de Gadamael, oferece-lhe a missão de os combater, de os afugentar. Nhoma explica que nunca esteve em Gadamael: “Camarada Osvaldo, quando vens a Guileje tens de passar por outra margem, do lado de Sangonhá para poder chegar a Gadamael, mas eu nunca fui lá… Nem Sangonhá conheço direito”. Põe-se à frente dos guerrilheiros, incrédulo irá descobrir que os seus camaradas nunca ali tinham posto os pés. Vai com eles um conselheiro cubano. Metem-se pela mata, descobrem tropa portuguesa na praia, fazem fogo. E nada mais se fica a saber, assim se chega à independência."
Então a superioridade militar dos guerrilheiros nesses horríveis meses de Maio e
Junho de 1973, onde está? E mais não digo. Ai, Guilege, Guilege!...
Abraço,
António Graça de Abreu
Há diversos comandantes do PAIGC, que vão escrevendo as suas histórias, mas as folhas vão sendo escondidas no fundo do quintal.
Na Guiné este assunto ainda não foi desclassificado, “ainda há os donos da verdade”.
Dizia-me o nosso amigo Pepito, que com a morte do Nino, deviam começar a sair alguns livros.
Os livros estão a ser escritos, mas infelizmente algumas destas pessoas vão falecendo, e a sua escrita não vai ser editada.
Outros livros são editados, mas rapidamente são recolhidos… falta-lhe a desclassificação e não passaram, nos donos da verdade que afinal ainda existem.Felizmente tenho lido alguns ás escondidas.
Abraço
Patrício Ribeiro
Caros amigos,
O Cmdt Bitchofala faz parte daqueles que a guerra colonial encontrou no mato ainda criancas e os arrastou para a luta a fim de combater por uma causa que mal conheciam. Dessas pessoas, que depois foram decisivos na continuacao dos esforcos da guerrao, o argumento mais forte e convincente que se houve eh o de que os seus familiares teriam sido mortos ou assassinados no decurso de ataques e bombardeamentos dos "Tugas" nos primeiros anos da guerra.
Antes da Guerra de 7 de Junho de 1998, era um complete desconhecido for a das FARP, e quando se juntou aos rebeldes do que viria a ser a Junta Militar, foi entrevistado pela radio da rebeliao onde o Bitchofala chorou e se justificou afirmando ser ser perseguido e persecatado por agentes do regime e que sentia muito mal pelo facto de ter de lutar contra o Cmdt Nino que era seu amigo e camarada em relacao ao qual nutria grande respeito e admiracao. Eh dificil de saber se seriam ou nao lagrimas de crocodilo e/ou encenacao teatral de camaleoes a que o PAIGC ja nos habituou desde que assumiu os destinos deste pais com a ajuda dos ultimos guerreiros do imperio portugues.
O Bitchofala conseguiu manter ate ao fim da sua carreira a candura e a aparente inocencia dos combatentes da liberdade de patria, dos verdadeiros, claro, e ao mesmo tempo conseguiu adaptar-se as diferentes mutacoes dentro do pais, do PAIGC e do seu perigoso braco armado que eram as FARP.
Um abraco amigo,
Cherno AB
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