sábado, 29 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22232: Antologia (78): Estereótipos coloniais: os fulas, "maus criadores de gado e piores agricultores"... (excerto de Geografia Económica de Portugal: Guiné / coordenado por Dragomir Knapic. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1966, 44 pp)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > 
Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social, dizia a ideologia da "psico"...







Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Já aqui temos utilizado algumas estatísticas económicas relevantes para a compreensão do passado colonial da Guiné-Bissau, extraídas de uma das famosas sebentas de  Dragomir Knapic (1926-2006):

Geografia económica de Portugal : Guiné / coordenado por Dragomir Knapic. - Lisboa : Instituto Comercial de Lisboa, 1966, 44 pp., brochura policopiada.

Trata-se de uma "sebetenta", para uso dos seus alunos do Instituto Comercial de Lisboa, baseada na conpilação de fontes primárias, com algumas citações mas sem referências bibliográficas. Não sabemos se o autor, geógrafo, pedagogo, grande divulgador da geografia económica de Portugal, "continental, insular e ultramarino", alguma visitou a  Guiné ou outros territórios como Angola. 

Nesta brochura, o autor deve ter utilizado, como fontes, além das estatísticas económicas, os relatos dos etnógrafos coloniais. Embora em 1966 já estivesse ao rubro a guerra colonial ou guerra do ultramar, o autor (ou compilador dos dados), é parco em referências ao conflito que teve efeitos negativos na demografia e na economia do território. 

Talvez por autocensura, nunca refere também os efeitos perversos das culturas comerciais impostas às populações locais pelos europeus, como era o caso da "mancarra" e outras oleaginosas. Bem pelo contrário, já defendia a extensão da cultura do caju: " O caju poderá vir  a assumir no futuro um papel de primeiro plano no desenvolvimento agrícola e industrial da Província" (p. 28).

A descrição, que se segue (*),  deve ser devidamente contextualizada e lida com olhar crítico. Não tem qualquer intenção polémica.  Há, obviamente, "estereótipos coloniais" neste retrato do fula enquanto "homo oeconomicus", estereótipos que eram também partilhados e replicados, com muita ligeireza, na caracterização socioeconómica feita nas nossas Histórias da Unidade, e pelos militares da "psico"... Se por um lado os fulas eram aliados, "tradicionais e leais", das autoridades portuguesas da época na luta contra o PAIGC, o fula saia sempre mal na comparação das "qualidades de trabalho" com outros grupos étnicos como os balantas, por exemplo. Os balantas eram orizicultores, por excelência, com técnicas agrícolas mais avançadas que os fulas. Mas a sociedade fula era mais compleza e hierarquizada. Sabemos que o Amílcar Cabral não morria de amores pelos fulas, e via no balanta o "bom selvagem"... Em c0ntrapartida, os spinolistas  viam  os fulas sobretudo como "místicos e guerreiros"... Enfim, estereótipos sociais...

Esperamos que o texto possa ser enriquecido com os comentários dos nossos leitores, e nomeadamente dos nossos amigos e camaradas de origem fula, como Cherno Baldé (**), bem como por aqueles que, no TO da Guiné, lidaram com as comunidades fulas entre 1961 e 1974.

Sobre os fulas temos cerca de 180 referências no nosso blogue, Sobre os balantas temos uma centena.. Relativamente aos dados de 1950, os balantas eram o grupo mais populoso (31,4%), seguido dos fulas (21,2%), os manjacos (14,0%), os mandingas (12,5%) ... Estes quatro grupos étnicos  representavam cerca de 80% do total da populaçao que era de 510 777 (em 1950).

2. Dragomir Knapic > Notas biográficas
Dragomir Knapic (1926-2006).
Foto: cortesia de
FCSH/NOVA 



(i) Dragomir Janko Edvard Torres Pereira Rodrigues de Lima e Knapič nasceu em Lisboa a 3 de Dezembro de 1925 e faleceu na mesma cidade, a 16 de Outubro de 2006.

(ii) Apesar de, em parte, ter origens familiares eslovenas, Dragomir Knapič viveu quase toda a sua vida em Lisboa, embora na juventude tivesse estado algum tempo na Alemanha, tendo estudado no colégio jesuíta de Koenigswinter, entre 1932 e 1939. 

(iii) No ano seguinte, regressou a Lisboa, onde completou os estudos liceais no Liceu Pedro Nunes, ingressando depois na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1951. Ali cursou Ciências Geográficas, formando-se em 1955, tendo iniciado, em seguida, a carreira docente, que foi a sua actividade principal, ao longo de meio século. 

(iv) Leccionou História e Geografia, no Colégio da Bafureira, Geografia Económica, no Instituto Comercial de Lisboa e Geografia Turística, no Instituto de Novas Profissões, também em Lisboa-

(v)  O ensino foi a sua vocação, encarando a investigação e os estudos que desenvolvia na sua área como meios para ampliar conhecimentos que se destinavam a ser levados por si aos seus alunos.

(vi) Assim, numa outra vertente pedagógica, destacou-se como autor de manuais escolares de Geografia, Ecologia, Biologia e Ciências Sociais, adoptados nos anos 60, 70 e 80 e ainda de outras obras de temáticas afins. 

(vii) "As costeiras de Lisboa : elementos para o estudo da morfologia da região de Lisboa! (1955), foi a sua dissertação de licenciatura e publicou também "Considerações sobre o Comportamento Morfoclimático do Maciço Eruptivo de Sintra" (1965),"Apontamentos de Geografia Turística" (1990), entre outros trabalhos.

(viii) Muito estimado por todos os alunos que passaram nas suas aulas e reconhecido pelos seus pares, foi por isso homenageado três vezes em escolas a que esteve ligado: em 1965, foi-lhe prestada homenagem pelos Alunos do ISCAL, pela sua dedicação ao ensino da Geografia; em 1992, o Instituto de Novas Profissões celebrou os 28 anos da sua actividade ali desenvolvida e o mesmo em 2004, comemorando, desta feita, os 40 anos de ensino nessa Instituição que, à altura, se designava Instituto Superior de Novas Profissões. 

Fonte: Adapt de Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa > BMSC - Biblioteca Mário Sottomayor Cardia > Doação Knapic

PS - Era cunhado do nosso camarada Mário Beja Santos (, sendo casado com uma irmã), e foi este  nosso camarada e colaborador permanente do blogue,  quem ofereceu esta brochura à biblioteca da Tabanca Grande. O livrinho tem informações preciosas sobre a Guiné dos anos 60: (i) condições naturais; (ii) população; (iii) agricultura; (iv) pesca e indústria; e (v) comércio e circulação.

O Instituto Comercial de Lisboa (1918-1976) foi o antecessor do atual ISCAL - Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa, hoje integrado no ensino superior politécnico.

3. Antologia> Os Fulas, por Dragomir Knapic

A área ocupada pelos Fulas é constituída pela zona  mais interior  que se caracteriza sobretudo pelo domínio da savana arbustiva.

Tem-se falado muito nos Fulas como pastores nómadas, mas eles não são verdadeiros criadores de gado. Os bois quase  não lhes servem para nada. Nem sequer são um símbolo de riqueza. O boi não é animal de carga, nem de tracção. Não fornece carne para a alimentação.

O Fula não sabe curtir devidamente as peles. Utiliza o leite, fresco ou “dormido” (coalhado), este com papel importante na alimentação, mas não sabe mungir bem. Não sabe também  desmamar convenientemente os vitelos. Não faz selecção de certas variedades  de vacas Ndama excepcionalmente leiteiras.

Quando castra os vitelos fá-lo de maneira bárbara. Não abriga convenientemente os animais. Na época seca  por falta de pastos a mortalidade entre os animais novos é elevada, tanto mais que  as manadas fulas  estão cheias de vacas velhas que constituem  um peso morto.

O Fula recorre à queimada para renovar os pastos, mas sem qualquer controlo. Assim destrói cada vez mais a vegetação e os solos. “Sinal de nobreza, parece que o boi goza dos próprios privilégios do nobre; nenhum esforço,  nenhum fim utilitário”. Trata-se de uma autêntica bovimania.

Quando se sedentarizaram, os Fulas, que já eram medíocres pastores, tornaram-se maus agricultores. Começaram por pôr os cativos a lavrar  e tiveram eles próprios de o fazer quando se deu a ocupação europeia qur arruinou o feudalismo fula. Esta mudança obrigou-os a trabalhar, quer para  se alimentarem, quer para arranjarem  o dinheiro necessário às suas compras e ao pagamento do imposto.

A ruina em que se encontra o Futa-Jalão, incluindo o Boé,  é atribuída ao primitivismo agrícola dos Fulas, a floresta é derrubada para no seu lugar se fazerem culturas de arroz de sequeiro.

O esgotamento sucessivo leva ao emprego de outras culturas menos exigentes, no final recorre-se ao  fundo (Digitaria exilis) que acaba por deixar o solo arrasado, mas ainda se tenta aproveitar os últimos restos de fertilidade. Faz-se uma monda de todo o capim que é reunido em pequenos montes, aos quais se junta bosta de vaca.  Pega-se-lhes então fogo e espalham-se as cinzas pelo terreno empobrecido. Faz-se assim um sementeira final de arroz de sequeiro.

Ainda que sedentarizado, o Fula denota no seu povoamento um carácter menos estável do que as populações do litoral. São numerosas as designações de Sinchã ou povoação nova, a palhota  é circular, de paredes de terra. Várias constituem a morança familiar. Estas distribuem-se de modo irregular, confinando pelas sebes que as rodeiam. Os  arruamentos  são reduzidos, conduzindo todos à mesquita ou ao suntura, local de reunião.


Fonte: Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, policopiado, pp. 18/19.

Seleção, transcrição, revisão e fixação de texto, incluindo o título do poste, para efeitos de edição neste blogue: LG
___________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 10 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21992: (Ex)citações (393): por que razão é que os fulas não gostavam de vender as suas vacas à tropa (Cherno Baldé, Bissau)

(...) É verdade que os camponeses fulas não gostavam de vender o seu gado e a razão é muito simples, era e continua a ser a única riqueza que têm e com a qual podem contar para se socorrer em casos de necessidade da família e da comunidade ou ainda em casos de calamidades naturais ligadas as suas actividades de sobrevivência.

Só quem (sobre)vive da terra, da agricultura, percebe as dificuldades e incertezas com que se deparam e num pais onde não existem nem subsídios, nem financiamentos ao agricultor.

Para nós, na tabanca, tirar uma galinha já representa um grande sacrifício. E de mais a mais, as manadas representam uma propriedade colectiva onde crianças, mulheres e homens adultos, cada um tem a sua vaquinha para seu sustento (ordenha do leite) e a sua poupança para o futuro a titulo individual e colectivo.(...) 

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O vocábulo "bovimania", utilizado aqui com sentido depreciativo, não existe nos dicionários da Língua Portuguesa...

Para o nosso querido Cherno Baldé o gado enter os fulas faz parte do seu pé de meia: "era e continua a ser a única riqueza que têm e com a qual podem contar para se socorrer em casos de necessidade da família e da comunidade ou ainda em casos de calamidades naturais ligadas as suas actividades de sobrevivência."

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Disse há tempos o Manuel Joaquim;

(...) Dragomir Knapic foi meu professor de Geografia Social e Económica no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa. Um grande e inesquecível professor que tive a sorte de encontrar. Dele guardo uma enternecida e estimulante memória. (...)

6 de novembro de 2012 às 00:24

E acrescentou o Cherno Baldé:

Caro amigo Luís: (...)Em contrapartida, gostei de reencontrar entre as tuas notas de referência o nome do professor Dragomir Knapic, cujos compêndios de geografia foram o nosso pão de cada dia, durante a fase terminal do liceu em Bissau, no principio dos anos 80. Tempos de sonhos em que a juventude guineense ainda tinha fome do "saber". Ainda me lembro do terror que o capitulo da cosmografia causava nos alunos do Liceu Kuame N´krumah (antigo H. Barreto). (...)

6 de novembro de 2012 às 00:24

3 DE NOVEMBRO DE 2012
Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2012/11/guine-6374-p106015-minha-ccac-12-anexos.html

Anónimo disse...

Caro amigo Luis Graça,

Em tempos falei da admiração e gratidão que tinha em relação ao D. Knapic através do seu compêndio de geografia que era de leitura obrigatória para os alunos do Liceu em Bissau em meados dos anos 70/80. Na altura teria 18/19 anos.

Quanto ao texto de antologia sobre os fulas, se calhar já tinha lido, mas não tinha a mesma visão e capacidade analítica de hoje. Visto na sua forma, parece uma narrativa fundada numa boa observação de um estudioso do terreno, mas no fundo acaba por não fugir dos estereotipos coloniais do estado novo, do eurocentrismo tipico, do menosprezo do africano em geral e dos "soit disant" "islamizados" com os quais estavam ligados numa aliança contra-natura e de ambivalência amor/ódio e onde a primazia dos interesses se sobrepunham a repugnância das relações sócio-culturais antagónicas.

A visão económica, profundamente materialista e gananciosa dos europeus, choca aqui com a simplicidade, precariedade e aparente falta de ambição dos africanos em geral e dos fulas em particular.

Numa coisa, o Dragomir tem razão, a relação de afecto existente entre um fula e um camponês europeu relativamente ao gado é muito diferente. O fula granadeiro e criador de animais ( não é a mesma coisa que o pastor) do gado bovino em particular, vê no seu animal uma extensão de si mesmo, da familia e da sua comunidade no seu todo.

Antigamente a morte de um animal representava a mesma dor que a perda de membro da familia, um ente querido, e realizavam-se cerimónias de choro na familia. Portanto não era visto só como economia, mercado, riqueza e crescimento, era muito mais que isso, era algo que dava sentido a própria vida.

Mas, a conclusão mais sensata que se pode chegar hoje é que, provávelmente não será a forma mais eficaz de acumular riquezas, mas, no contexto das convulsões sociais internas, instabilidades e conflitos causados por interferências externas da época, seria muito dificil fazer melhor do que o precário modo de vida descrito pelo autor.

Com o abraço amigo de sempre,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

PS: De referir que os criadores de gado em África não são completamente avessos a inovação e modernização desde que as condições se apresentassem para isso sem colocar em perigo a sua segurança e sobrevivência enquanto ser e agente económico. O exemplo disso podemos encontrar nas antigas colónias francesas e inglesas que mostraram interesse no fomento da agricultura familiar com fornecimento de equipamento de trabalho (a tal tração animal que o Knapic se refere e a introdução de novas raças de animais. No Senegal vizinho isto está a ser praticado desde os anos 60/70, como forma de ajudar os camponeses fulas e outros na transição do sistemo/modelo extensivo que hoje não é mais praticável, para um sistema mais rentável e menos prejudicial ao ambiente e ainda com a possibilidade de uma assistência sanitária mais regular.

Estas ajudas são mais pertinentes e úteis do que qualquer narrativa sem fim útil, posto que os portugueses, com a sua velha vocação e prática puramente mercantilista nunca se mostraram interessados ou não tinham meios/recursos para um verdadeiro incremento e desenvolvimento agro-silvo-pecuário nos territórios que foram obrigados a ocupar (de facto), esperando que as familias indígenas fizessem milagres em benefício da metropole que nem possuia comerciantes e empreendedores dignos desse nome. As evidências disso podem ser encontradas em todos os relatórios feitos pelos administradores e especialistas que visitaram esses territórios no decorrer do século XIX e princípios de XX, que o Bessa Santos incansávelmente nos vem revelando no Blogue da TG.

Mas, falar mal dos outros sempre foi a parte do trabalho mais fácil e tratando-se de sujeitos desprezíveis, ainda melhor.

Cherno AB.

Antº Rosinha disse...

Na Guiné não se colonizou na questão zootécnica.

Não havia veterinários a vacinar/cuidar dos animais bovinos, caprinos, ovinos...ou mesmo caninos.

Não se criaram escolas, ou estações zootécnicas.

Parece-me que nem um aviário havia.

Nos finais do império já havia umas coisinhas destas em Angola, e muito bem feitas.

O que foi uma pena, porque os novos donos (MPLA) diziam que tinham que desfazer tudo para fazerem tudo à moda deles.

Parece que na Guiné, Luís Cabral tinha o mesmo pensamento não queriam nada do Tuga, porque os amigos iam ajudar.

Colonizamos pouco, mas para alguns ainda foi demais.