sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:


Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado!

É tão difícil unir todos os pedacinhos das memórias, os destroços e juntá-los na construção de um todo para os companheiros combatentes que felizmente ainda andam por aqui, mesmo sabendo que traduzindo à letra os nossos pensamentos, corremos o risco de às vezes não sermos lá muito bem entendidos, ou seja, dando a entender que “a liberdade de sermos quem quisermos, agindo ou falando sem filtros é quase uma anarquia”, o que na verdade para nós, não é, pois entendemos que expondo ideias ou expressão nas palavras de diferente maneira é muito saudável e, temos muito respeito por todos vós e pelo que viveram, sobretudo em África.

Continuando, lembramos que na Guerra Colonial, as nossas tarefas eram cifrar e decifrar mensagens. Assim, passáva-nos pelas mãos mensagens contendo substância horrivel e secreta de possíveis operações ou de ataques sofridos pelo contacto com as forças inimigas compostas pelos guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território.

E, tal como alguns de vocês companheiros combatentes, chegámos em Maio do ano de 1964, passando dois longos anos no interior da então província colonial da Guiné Portuguesa, rodeados de savanas e pântanos, participando numa guerra de guerrilha, contra um inimigo armado, treinado e equipado, que sempre recebeu apoio substancial de portos seguros em países vizinhos como o Senegal e a Guiné-Conacri, cuja proximidade eram excelentes para fornecer superioridade táctica nos seus ataques transfronteiriços e sobretudo se reabastecer.

Mas voltando à tal “farda amarela”, que dá o título a este escrito, não sabemos quem foi o “designer” de moda popular ou militar, que a projectou, mas sabemos, porque a usávamos, que era demasiado quente para o clima húmido da então Guiné Portuguesa e, que na altura era usada por outros militares de alguns países, principalmente os envolvidos em conflitos em África!.
Todavia, estar estacionado em África, uma região quente e húmida entre outras anomalias climáticas, dentro daquela “ganga amarela”, onde a princípio, antes de ser lavada, uma, duas, três, talvez só à quarta vez, largava aquela “goma” que parecia “cola” e, quando isso acontecia, pouco mais durava, começando por o tecido se dissolver, principalmente na zona onde a transpiração mais se fazia notar!.

Agora voltando de novo ao conflito armado e como acima já explicámos, dada a nossa especialidade, éramos um soldado desarmado. No entanto, fizémos coisas, passando por momentos horríveis de desespero, angústia e medo quando de ataques e emboscadas ao local onde estávamos estacionados ou passávamos, tomando conhecimento oficial de relatos angustiantes, onde explicavam como iam deixando por lá companheiros enterrados em cenários de combate, porque não os podiam resgatar e, que hoje ainda nos assombram.
Porquê? Porque muitas vezes, as tropas Portuguesas encontravam-se na pior posição para avançar e identificar com precisão a sua localização no terreno, onde ou existia selva cerrada, pântanos ou canais com água, lama e tarrafo e frequentemente, pelo menos quando atravessavam os rios ou canais, havia os “macaréus”, algumas vezes até animais perigosos, como crocodilos, onde em algumas situações o inimigo, tirando vantagem, surgia de todos os lados, atacando, disparando, sem dar qualquer oportunidade para que se recuperasse os nossos mortos ou feridos.
E nós, além de mal alimentados, (cuja alimentação era confecionada à base de alimentos sem proteínas e repetida quase todos os dias, razão pela qual ainda hoje gostamos de amendoins), sem assistência médica, com equipamento militar absoleto, fomos dos primeiros a entrar e ficar estacionados em zona de permanente combate, usando o tal uniforme “amarelo”.

Assim, além de outras, o nosso moral era triste e a desmotivação e o cansaço eram realidades que minavam os alicerces de quem com elas convivia, numa situação “onde podíamos morrer de amarelo”, dentro de uma vestimenta padronizada e regulamentada, diziam “eles”, que contribuía para a elevação e auto-estima, potencializada pela manifestação de força, com que nos educaram num breve treino específico de recruta, convencidos de que éramos a força de combate mais letal do mundo.
Onde, além de irmos para África lutar contra pessoas que não conhecíamos e nada de mal nos tinham feito antes, íamos transmitir a tal manifestação de força mas, talvez sem os responsáveis pelo governo colonial de então em Portugal saberem, que a nossa educação de família era potencializada por um ideal de paz e igualdade, com que fomos quase todos nós, independentemente de origem ou condição, educados no nosso lar.
Enfim, hoje as imagens do possível passam-nos na mente como se tratasse de um filme arrumado no sótão da nossa existência e, aquele aquartelamento militar que ajudámos a construir e que poderíamos considerar um “Posto Avançado”, ou seja, um lugar onde os militares de combate, tomavam conhecimento das primeiras savanas, florestas, rios, riachos e pântanos, que eram as trilhas frescas usadas pelos guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território, continuam bem vivas na nossa memória.
E, tudo isto se passou quando ainda éramos quase crianças, (pois no regime que então se vivia, só éramos adultos aos 21 anos de idade), onde estivémos longe da família, noutro continente e sacrificando a nossa liberdade. E fizémos tudo isto porquê? Porque mesmo sabendo que a desumanização da sociedade continuava uma realidade, onde às vezes parecíamos que éramos todos ilhas à deriva, nós, “éramos quase uns soldados sem um país”, no entanto, fizémos um juramento à bandeira desse país onde nascemos e, viveremos por este juramento até ao dia da nossa morte, porque hoje somos e, seremos sempre um veterano de guerra.

E também acreditamos que às vezes é necessário retornar aos pensamentos da infância, aos amigos ou ao seio da família, o único porto de abrigo, tal como quando regressámos a casa, uns anos depois já como veteranos de guerra, passando por algumas experiências de vida mais traumáticas que se possam imaginar e, os amigos e a família que nos receberam, sabiam, notavam imediatamente que alguma coisa estava mal connosco, pela nossa linguagem, maneira de se comportar, que estávamos diferentes, talvez um pouco loucos e algo agressivos.

Esta é a verdade, que não podemos nunca ocultar.

Tony Borie, Outubro de 2022

____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

1 comentário:

José Botelho Colaço disse...

Olá Tony Borié obrigado pela descrição que fazes do militar sem arma e também da cifra, mas no mato como sabes nas operações no mato nada disso funcionava a farda era o camuflado a cifra era o directo nem o código fonético era utilizado e quando era-mos ouvidos já era uma sorte lembro que sou farda amarela 1963/65 e as mensagens no mato dia 29/01 1964 o soldado António joão Pinheiro Bicho da c. caç 557 que repousa na campa 670 no cemitério de Bissau quando estava a cavar o abrigo e da orla da mata do Cachil um tiro isolado de um ponto estratégico o atingiu no coração e caiu morto em cima do camarada que com ele participava a cavar o abrigo que nem se apercebeu que o camarada caiu morto em cima dele e disse ó pá chega-te pralá
Um abraço e boa saúde.