quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 >
Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor destas imagens...

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Vista geral da povoação e aquartelamento

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O Sesimbra, o Biaia e o José Nunes, posando junto ao temível Morteiro 81

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Junto a um dos abrigos do aquartelamento

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >O Biaia, que presumimos ser um 'protegido' da tropa, quiçá a mascote da companhia (CART 1661), que - como muitos outros miúdos guineenses - cresceram dentro do arame farpado, ao longo da guerra colonial...


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O José Nunes posando para a posteridade com a inofensiva (para os humanos) mas sempre mítica jibóia...

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à v0lta da jibóia - I


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >Todos à volta da jiboia - II

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à volta da jibóia - III

Fotos: José Nunes (2009). Direitos reservados



1. O José Nunes (, de seu nome completo, José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970.


Fez assistências e electrificações em aquartelamentos como Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglês, Bolama e Bissum-Naga.

Esteve em Porto Gole em Março/Abril de 1968, altura em que se procedeu à electrificação do aquartelamento (foto à esquerda). Não tínhamos até agora fotos dele. Finalmente, e a nosso pedido, ele procedeu à digitalização de uma série de fotos, que iremos publicar. Hoje começamos com as suas memórias de Porto Gole.

"Nesse tempo o Comando ficava na Habitação existente, e servia de alojamento aos Oficiais e Sargentos. O restante pessoal ficava no celeiro e nos abrigos, construídos, e nos abarracamentos construídos junto da casa maior" (*).

A tabanca "estava alinhada, formando uma rua até ao cruzamento da estrada que ía pra Mansoa e para Enxalé. De frente para o Geba, junto ao monumento, a pista ficava do lado direito; no esquerdo, no pequeno vale com laranjeiras e uma horta, ficava o poço onde nos abasteciamos de água".

Na altura a CART 1661, a que pertencia o nosso camarada Abel Rei (**), "tinha pessoal em Bissá e em Enxalé"... Acrescenta o José Nunes:

"Sei que tinha um número considerável de baixas. Foi quando apareceram as primeiras minas incendiárias que fustigavam as colunas de reabastecimento a Bissá. Tenho algumas fotos lá tiradas com a malta, impecável. Em Porto Gole foi onde vi a maior jibóia na Guiné, morta quando se ía buscar lenha para fazer a comida.

"Foi aqui que tentaram envenenar toda a Companhia, deitando no poço toda o tipo de restos de vacas mortas, tripas, peles... O poço era tapado com tampo de madeira e na base do gargalo havia um buraco para enfiar a mangueira da bomba, foi por aí que introduziram tudo, nas barbas de um posto de sentinela, mas pela horta era fácil. As flagelações eram feitas do cruzamento, na altura foi construido aí um posto avançado [, um fortim], para evitar as flagelações. Durante a minha estada nunca fomos atacados". (***)

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Notas de L.G.

(*) Vd. postes de:

10 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4492: Memória dos lugares (30): Porto Gole, CART 1661 (1967/68) (José Nunes / Abel Rei)

22 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

22 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)


(**) Vd. postes de:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)

(***) Último poste da série Memória dos lugares:

14 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4682: Memória dos lugares (34): Guiné, Sol e Sangue, de Armor Pires Mota, CCAV 488, 1963/65 (José Marques Ferreira)

Guiné 63/74 - P4866: Bibliografia (30): Eu e os Comandos, artigo de Mário Beja Santos na Revista Mama Sume, da Associação de Comandos

1. Texto enviado por Mário Beja Santos à Associação de Comandos que lhe havia pedido para escrever um artigo a publicar na Revista "MAMA SUME"


Eu e os Comandos
 

por Mário Beja Santos

Fui alferes miliciano na Guiné, onde vivi ininterruptamente entre Julho de 1968 e Agosto de 1970. Contei toda esta história da minha comissão em dois livros publicados em 2008: “Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, 1968 – 1969“ e “Diário da Guiné, O Tigre Vadio, 1969 – 1970”, ambos publicados pelo Círculo de Leitores e a Temas e Debates. Durante 17 meses vivi no regulado do Cuor, como comandante dos destacamentos de Missirá e Finete. A minha principal missão era vigiar e garantir a navegabilidade do rio Geba, indispensável para a continuação da guerra. Comandei, na circunstância, um Pelotão de Caçadores Nativos e dois Pelotões de Milícias. Protegia o rio, emboscava, patrulhava e cuidava de centenas de civis, garantindo-lhes o abastecimento, a segurança, o médico, o professor para as crianças, a correcção nas práticas da justiça, ao lado do régulo.

A segunda etapa da minha comissão foi vivida no sector de Bambadinca, intervindo na área operacional, como comandante de colunas até ao Xitole ou Xime, patrulhando, destruindo canoas do inimigo, apoiando as tabancas em autodefesa, mas fazendo igualmente um pouco de tudo, desde de levar e trazer o correio, levar e trazer doentes, garantindo a segurança dos reordenamentos, protegendo a sede do batalhão num posto avançado infecto, para não dizer desumano. Continuei a combater ao lado dos meus caçadores nativos e na companhia de tropa africana, designadamente a Companhia de Caçadores 12 (foi esse o laço que me transportou, décadas depois, para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde deposito as minhas memórias e o meu indefectível amor àquela terra)

Serve esta apresentação para dizer ao leitor que combati quase sempre com tropa regular que eu apresentei nos meus livros como “alguns dos soldados mais valentes do mundo”, gente que confiou incondicionalmente em mim, a quem confiei missões espinhosas, esgotantes, destemidas.

Os meus soldados ensinaram-me muito, quer os nativos quer os metropolitanos: a crescer entre a solidariedade e a abnegação; e a não fugir ou adiar as missões diárias dos patrulhamentos junto ao Geba, tínhamos nos ombros a responsabilidade de tantas vidas. Eu sei que o leitor considerará inacreditável o que vou dizer: no mínimo dos mínimos, fazíamos 25 km entre Missirá e Mato do Cão, ida e volta, a qualquer minuto de qualquer hora do dia. Missirá ficou praticamente destruída em Março de 1969 e quando partimos, em Novembro desse ano, deixámos um quartel reconstruído, o maior esforço de toda a minha vida. Só foi possível porque contei com dedicação dos meus soldados, que faziam reforços, colunas de reabastecimento, emboscadas nocturnas, não direi sem um queixume (na época das chuvas cheguei a ter 40 por cento dos efectivos acamados) mas com uma elevadíssima capacidade de colaboração. Falo de homens que punham luvas brancas para hastear ou arrear a bandeira portuguesa no mastro três vezes destruído, três vezes renascido, enquanto lá estivemos juntos.

Não combati com os Comandos, dei militares de carácter e de grande valentia para as suas três companhias que se formaram na Guiné:

(i) primeiro, Zacarias Saiegh, meu furriel que comandava Missirá antes de eu chegar. Mantivemos uma relação difícil, mas assente no respeito mútuo, soube em primeira mão da sua decisão em integrar-se na 1ª Companhia de Comandos Africana, que se formou em Fá, e que nos coube proteger durante meses, do lado de cá do rio Geba. Foi fuzilado em 1977, em Porto Gole, nesse estranho drama que foram os fuzilamentos de uma intentona que, enquanto não houver provas, não passou de uma vil purga;

(ii) Mamadu Camará, que quando cheguei a Missirá era o 221, e uma noite, debaixo de fogo, pressentindo que a deflagração de uma morteirada inimiga me ia atingir, atirou-se sobre o meu corpo, tendo ficado com muitos estilhaços nas costas e pernas, foi brutalmente ferido no reencontro na região do Cantanhez, veio em 1972, é cidadão português;

(iii) Cherno Suane, o meu guarda-costas, o mais querido dos meus irmãos, que viveu o inferno do Cumeré, sujeito a prisão arbitrária e às mais horríveis sevícias, entre 1977 e 1980, consegui que viesse em 1992, é também cidadão português, preenche com resignação todos os anos papelada infernal para trazer o filho mais velho, até agora a burocracia delirante é mais forte que o reencontro familiar;

(iv) Queta Baldé, o mais precioso colaborador que tive na preparação dos meus livros, nunca vi memória como a dele, fugiu para o Senegal para não ser morto, em 1974, aqui o temos entre nós, vive na Amadora, tal como o Mamadu e o Cherno subsiste entregue a tarefas humildes para ter os filhos na faculdade;

(v) e Serifo Candé, que fui visitar a Biana, no leste da Guiné, em 1991, e que não acreditou que eu não o tivesse ido buscar para o trazer para Portugal, o Serifo é o meu remorso, é bem provável que eu tenha que voltar à Guiné e trazer este homem de modos tão gentis que nunca percebeu porque é que não volta a hastear, cheio de aprumo, uma bandeira verde rubra que ele prometeu defender até à morte.

Este foi o legado que deixei aos Comandos, este legado é uma das tragédias da minha vida, continuo sem saber aonde arrecadar o sofrimento destes homens que nem sempre puderam refazer o sentido das suas existências.

Deixei para o fim uma sentida homenagem ao meu instrutor em Mafra, já na especialidade de atirador de infantaria. Era pouco mais velho do que eu, um homem seco de carnes, um olhar azul firme e decidido, com uma expressão de rectidão e confiança em tudo o que dizia e fazia. Ensinava com desvelo, era convincente e de bom trato. Tinha uma arte de comunicar, imprimindo sabor, às matérias mais áridas. Ele ficou em Mafra, eu parti para Ponta Delgada, daqui regressei para formar batalhão, fui dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português”, e os meus superiores, à cautela, lançaram-me na rendição individual, acabavam-se assim os incómodos.

Voltei a ver o já então capitão Garcia Lopes num encontro espúrio em Bissau, ele estava nos Comandos, ouviu-o vibrar na descrição de um regresso de operação com os seus soldados feridos: “Custe o que custar, um Comando traz todos os seus camaradas, feridos ou mortos, nem que necessário seja dar a vida”. Guardei esta frase, dolorosamente já tinha trazido nas espáduas o Paulo Ribeiro Semedo, compreendi perfeitamente a mensagem e os sentimentos do capitão Garcia Lopes.

Gostava muito que esta lembrança chegasse aos ouvidos deste distintíssimo oficial. Aprendi na vida que marcamos os outros com uma simples frase, a rectidão de um gesto ou um sopro de coragem.

Os Comandos, por inerência, são gente exemplar na minha vida. Espero que percebam que tenho muito orgulho nestes meus soldados que partiram para outras guerras e que continuam meus compatriotas, heróis anónimos que ganham humildemente o que as pensões não dão para uma vida decente. Tão gente exemplar como aquele capitão Garcia Lopes que aproveitou um encontro espúrio em Bissau para me recordar que a camaradagem é mais exigente nas horas más que nas boas.

[Revisão / fixação de texto: CV/LG]

Guiné 63/74 - P4865: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (4): Abel, o nosso Cabo Maqueiro

Mais um episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


O cabo maqueiro

Naquele dia a manhã corria monótona e sempre igual às de tantos outros dias. Apenas o cozinheiro e o ajudante andavam de um lado para o outro atarefados com a preparação do almoço. O aquartelamento parecia deserto. As duas viaturas, o jeep e o velho Unimog, jaziam adormecidas arrumadas a um canto do telheiro de chapas de zinco. Reinava um silêncio pesado como a chapa de ouro do sol que tudo cobria.

Ainda era cedo para ir buscar água à bolanha e os soldados escondiam-se por aqui e por ali, onde houvesse uma sombra, a jogar às cartas, a dormitar ou a deambular pela aldeia, entrando nalguma casa comercial onde sempre apareciam novidades ou alguma bajuda jeitosa e sorridente para meter conversa de meia pataca.

O malandro do Furriel Coutinho também já se tinha desenfiado a pretexto de ir verificar a cerca de arame farpado lá para os lados do caminho que ia dar à pista de aviação e ninguém mais soube dele.

Dos outros dois furriéis, um estava de cama com paludismo e o restante fazia-lhe uma carinhosa (?) companhia. (Sempre suspeitámos que aquela amizade era talvez mais do que apenas isso. Pelo menos da fama não se livravam, embora o assunto nem fosse assim muito escandaloso e curiosamente bem tolerado naquele aglomerado de homens isolados do resto do mundo).

De modo que, como acontecia quase sempre, sem ter nada que fazer, nem nada com que me entreter, fui até a enfermaria ver o que é que o cabo maqueiro tinha por lá de novo.

O nosso cabo maqueiro, que aqui fazia as vezes de enfermeiro, era um rapaz muito metódico, alegre e falador. A sua presença era sempre motivo de divertimento para os colegas e de um fascínio estranho para os nativos que a ele recorriam para a possível cura das mais diversas maleitas. A todos atendia prontamente com a mesma coragem e tenacidade, quer se tratasse de curar uma dor de cabeça, como cozer um braço rasgado pela poderosa dentada da mandíbula de um burro enraivecido.

A enfermaria, pomposamente assim designada não passava de uma pequena divisão nas traseiras do refeitório dos soldados, onde mal cabia uma mesa, duas cadeiras e uma cama de ferro a servir de marquesa para os ocasionais pacientes que tanto podiam ser os militares do destacamento como os inúmeros civis que todas as manhãs, mulheres sobretudo, faziam fila com os filhos ao colo ou a reboque pela mão, na esperança de serem curados pelo doutor da tropa.

Lembro-me que uma vez, quando na companhia do Chefe de Posto de Pirada, o senhor Barbosa, um simpático velhote com tantos anos de África que mais parecia africano, fazíamos uma ronda pelas tabancas ao sul de Pirada, surgiram umas mulheres que, a chorar, lhe pediam que fosse acudir a um pobre velho que estava prestes a morrer pois já nem se mexia.

O nosso cabo lá pegou no saco dos medicamentos que trazia sempre consigo e resignado, mas sempre galhofando, dirigiu-se com as mulheres para o meio de uma das palhotas mais afastadas, enquanto eu e o Miguel, o condutor do jeep, ficávamos rodeados pela população que se ia aglomerando diante do nosso grupo composto também pelo imponente régulo da aldeia e pelo chefe de Posto, o velho e pacífico Barbosa.

Entretanto tentávamos perceber e deslindar a teia de peripécias e complicações inevitáveis sempre que o chefe de Posto queria proceder a mais um recenseamento dos jovens nativos desta região, pois como sempre, quase ninguém sabia a verdadeira idade que tinha. Regulam-se pelas fases da Lua, pelas colheitas e outros marcos que balizavam as suas vidas e não pelo nosso calendário, claro está. O velho Barbosa pacientemente, com a cabeça apoiada numa das mãos lá ia paulatinamente preenchendo os extensos mapas que a Administração lhe mandava e, que na verdade, só ele entendia.

Mal tínhamos chegado à tabanca, logo tinham aparecido cadeiras e bancos para todos, bem como uma tosca mesa que serviria de secretária. A miudagem, curiosa e irrequieta, espreitava morrendo de curiosidade por nos tocar, fugindo espavoridos quando esboçávamos a mais pequena intenção de os agarrar.

Os nitidamente mais velhos, adolescentes quase adultos, comprimiam-se receosos, num dos cantos do largo principal da aldeia, pois bem sabiam que a nossa presença só lhes poderia dizer respeito. A Administração todos os anos vinha arrebanhar os jovens que estivessem mais ou menos na idade do serviço militar e isso para eles era uma verdadeira tragédia a que no entanto se submetiam resignadamente. O branco é que mandava e o preto tinha apenas que obedecer.

Mas voltemos ao nosso cabo maqueiro, que por sinal tinha o nome de Abel Preto. O que ocasionava situações caricatas quando chamávamos por ele, usando o último nome e ele se encontrava, como de costume, na sua função, rodeados por nativos que, inocentemente, não se apercebiam que estávamos apenas a gozar com a cara deles.

Eis senão quando, surge o nosso cabo maqueiro rodeado por uma pequena multidão de mulheres velhas e novas que o traziam quase ao colo com demonstrações de grande regozijo e veneração, dançando e cantando, saudando-o efusivamente como a um milagroso homem santo. Mais atrás vinha uma jovem amparando um velhote sorridente que muito desembaraçadamente gesticulava e falava sem cessar.

O que tinha acontecido?

Muito simplesmente isto: perante um suposto enigma médico, para ele e para os seus escassíssimos conhecimentos de medicina, o nosso cabo maqueiro, optou por usar todos os medicamentos que tinha que nem eram assim tantos, resumiam-se a umas aspirinas e pomadas para alguma dor ou entorse. Podiam não ser totalmente eficazes mas mal também não fariam. Depois de despir o velhote aplicou-lhe uma valente esfrega de pomada analgésica pelas costas de cima a baixo, deixando o doente mais bem barrado que um frango pronto a entrar no forno. A seguir aplicou-lhe duas aspirinas pela goela abaixo com uma pouca de água. E, ou porque o remédio era mesmo bom, ou por que o paciente nunca tinha tido contacto com as medicinas dos brancos e estava portanto cem por cento receptivo a essas panaceias, o que de facto sucedeu é que ao fim de poucos minutos começava a dar sinais de já se poder mexer e em pouco menos de meia hora levantou-se são como um pêro, beijando as mãos do seu benfeitor, para grande espanto dele e, também de todos os assistentes, que logo ali o consideraram um verdadeiro homem santo.

A notícia espalhou-se num abrir e fechar de olhos e de todos os lados acorria gente para testemunhar a maravilha e querer também beneficiar dos milagrosos dons curativos daquele doutor que tinha vindo com a tropa. E todos traziam algo para lhe oferecer, ovos, laranjas, mandioca, nozes de cola e até galinhas vivas, pois tamanha benesse teria de ser recompensada.

Naquele fim de tarde o bom do nosso maqueiro quase que viu esgotar-se o stock de medicamentos que tinha improvisado quando lhe disse para vir comigo naquele passeio de acção psicológica para cairmos no agrado das populações.

Nos restantes dias viu-se aflito para poder contentar toda a clientela que não o largava em qualquer tabanca onde aparecêssemos.

Ganhou uma reputação tal que, creio ter posto em perigo a continuidade dos curandeiros de aldeia que, não acharam graça nenhuma a tais acontecimentos.
E nós, os que assistíamos a mais uma das prodigiosas façanhas do nosso bom cabo maqueiro apenas tivemos que paulatinamente ir dando vazão aquelas provisões que surgiam de todos os lados e que já não cabiam no jeep da Administração.


Durante vários dias os nossos pequenos-almoços foram ovos cozidos e laranjas! E para o almoço ou jantar, frango de churrasco!

Planta de Pirada

Pirada > Primeira cozinha

O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil

Recenseamento civil no regulado de Propana. O Régulo Serifo Embaló, o Chefe de Posto de Pirada, senhor Barbosa e eu, Alferes Geraldes, como convidado
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios

Guiné 63/74 - P4864: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (14): "A gastronomia guineense em 1969/71 e na actualidade"

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 14ª estória:

Camaradas,

Ao vasculhar os meus apontamentos dei com um texto, que me fez lembrar os sítios e gastronomia que na época, 1969/71, existia em Bissau.

Só de lê-lo faz-me crescer a água na boca!

Como profissional de hotelaria, não poderia deixar de tecer alguns comentários à deliciosa e variada gastronomia guineense nos dias de hoje.

Gastronomia esta que recomendo principalmente aos apreciadores de bons gostos e paladares africanos.

"A GASTRONOMIA GUINEENSE EM TEMPO DE GUERRA"

Em Bissau, local onde só estive de passagem,
esporadicamente, e quando fui hospitalizado em sequência de um ferimento, despertou-me a atenção para o roteiro gastronómico, ou melhor dizendo, locais onde se comesse bem.

A gastronomia da Guiné, na altura, não se podia dizer que despertava o melhor sentido do sabor aos que procuravam uma lauta ou gostosa refeição.

Os melhores restaurantes da época em Bissau, estavam condicionados ao abastecimento de produtos, para a confecção dos típicos pratos guineenses. Resumindo-se basicamente à oferta das célebres ostras, frango à guinéu, piche-pache de ostras, moqueca de peixe e chabéu de galinha.

Para complementarem a sua oferta na Ementa ou Carta, sugeriam pratos de origem portuguesa, onde poderíamos encontrar sabores em conformidade com as nossas raízes.

O restaurante “SOLAR DOS 10”, um dos mais conhecidos, senão o mais famoso, tinha uma Carta onde sobressaíam as lulas grelhadas com piri-piri, e o famoso bife à Solar dos 10.

No “SOLMAR”, além das ostras, serviam um bom bitoque e omoletes de gambas que eram um regalo.

No “PELICANO”, o ex-líbris, era a francesinha que, para a época, era agradável.

Na estrada, entre o QG e Bissau, a seguir à entrada do Pilão, do lado esquerdo, havia um restaurante pequeno que servia um Piche-Pache de Ostras e um Chabéu de Galinha, que era de comer e chorar por mais.

Junto ao Forte de Amura, existia uma tasquinha que servia uns pastéis de bacalhau e vinho verde, que eram um primor.
A Moqueca de Peixe, para os apreciadores, encontrava-se nos restaurantes dos naturais da Guiné, localizados na zona do Pilão.

O Frango à Guineense, que consistia num frango previamente temperado com sal e limão e depois grelhado, com muito piri-piri, coisa comum em todos os restaurantes.

Na época a que me refiro, proliferava o mercado negro de géneros alimentícios em Bissau, o que condicionava a boa gastronomia e a elevava para preços demasiado altos, pouco acessíveis à fraca bolsa dos militares.

"A GASTRONOMIA GUINEENSE ACTUAL"

A actual gastronomia tradicional guineense é caracterizada por paladares intensos e apimentados, onde o limão, a malagueta e o jindungo são condimentos indispensáveis.

O arroz (bianda), é a base principal da alimentação popular, ao qual depois de cozinhado se adiciona o mafé, nome dado aos caldos geralmente feitos com peixe, marisco, galinha ou carne.

O chabéu e o óleo de palma são gorduras vegetais de eleição utilizados por todos os guineenses. A mancarra é outra gordura oleaginosa empregue frequentemente em molhos.

Os legumes mais conhecidos são a baquitche, a candja e o djagatú, muito utilizados para acompanhar o arroz e o mafé.

Saborear o caldo mancarra de chabéu, galinha de terra à Cafreal, bica grelhada, futi, sigá, acompanhados de vinhos de palma, vinho de cajú, refresco de fole, veledé, cabaceira, tambarina, mandiple e miséria, entre outros, são autênticos prazeres gastronómicos da Guiné.

Há ainda uma riqueza alimentar natural naquele país que é constituída pelo famoso marisco e peixe da sua costa marítima.

Toda esta excelente e deliciosa cozinha guineense, hoje, pode-se encontrar em qualquer restaurante da Guiné, bem como em Portugal, em alguns estabelecimentos nas zonas onde se concentram as habitações dos naturais daquela terra.

Para os mais interessados nesta específica gastronomia, recomendo o livro Guiné-Bissau, TERA SABI.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagens: Wikipédia, a enciclopédia livre (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)

Cristina's History / A história de Cristina > Uma exposição do fotógrafo Mikael Levin, primo do Pepito, patente no Museu Colecção Berardo / Centro Cultural de Belém, em Lisboa, de 31 de Agosto a 8 de Novembro de 2009.

Imagens da exposição, que nos foram gentilmente enviadas pelo Pepito e que fazem parte do catálogo da exposição: de cima para baixo: (i) Algures, na cidade de Zgierz, na Polónia central, donde era originário o bisavô materno do Pepito (e trisavô da sua filha Cristina), Isuchaar Szwarc, morto nas vésperas da II Guerra Mundial (foto de 2005, sem título); (ii) A casa da avó materna da Cristina, em Lisboa, cidade onde nasceu em 1915, filha de um engenheiro de minas polaco, judeu, Samuel Szwarc, formado em Paris, na École Nationale des Mines, e que se fixou em Portugal com a I Guerra Mundial; a Clara Schwarz viveu em Bissau desde 1947 até 1966, tendo sido professora no Liceu Honório Barreto (foto de 2004, sem título); (iii) Um recanto da cidade de Bissau, onde nasceu a Cristina, em 1973, filha de Carlos Schwarz e de Isabel Levy Ribeiro, ambos engenheiros agrónomos, co-fundadores da AD-Acção para o Desenvolvimento e membros da nossa Tabanca Grande (foto de 2003, sem título).

Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)

1. Mensagem do nosso amigo Pepito, co-fundador e actual director executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, e que está em Portugal a passar férias na sua casa de São Martinho do Porto (estivémos juntos no dia 15, para mais uma memorável tarde convívio entre as nossas duas famílias) (*):

Caros(as) Amigos(as):

Tenho o prazer de vos convidar a participar no próximo dia 31 de Agosto (2ª feira) pelas 19h30 no Centro Cultural de Belém (Museu Colecção Berardo) à inauguração da Exposição CRISTINA’S HISTORY, da autoria do meu primo MIKAEL LEVIN.

Trata-se da história da minha filha mais velha, Cristina Silva (Pepas), desde a Polónia, Portugal e Guiné-Bissau.

Isuchaar, o trisavô da Cristina, deixa a Polónia durante a Primeira Guerra Mundial. A avó Clara nasceu em Lisboa e foi em 1947 para a Guiné, tendo a Cristina nascido em 1973 (**). O fotógrafo Mikael Levin (nascido em 1954, em Nova York) fez o quadro fotográfico da peregrinação desta parte da sua família.

Mais informaçáo disponível na página de Mikael Levin

A exposição terminará no dia 8 de Novembro de 2009.

Um abraço

Carlos Schwarz
(Pepito)

São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > Imagens da família Schwarz, em férias: em cima, a Clara, a jovem senhora de 94 anos, a sua neta Catarina (irmã da Cristina), a Isabel Levy Ribeiroe o seú marido, Carlos Silva Schwarz, Pepito para os amigos... Nesse dia, almoçámos uma deliciosa cachupa, confeccionada pela Isabel, que é de nacionalidade portuguesa, bem com os filhos (há ainda o Ivan, de férias no Egipto)

Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

2. Comentário de L.G.:

Infelizmente, para meu desgosto, não poderei estar presente na inauguração da exposição, no dia 31 de Agosto, por me encontrar ainda de férias, no Norte. Mas de certo que haverá gente do nosso blogue, nomeadamente a malta da área metropolitana de Lisboa, que quererá (e poderá) estar presente, aceitando o convite pessoal do nosso querido amigo Pepito. e partilhando com ele o privilégio de conhecer esta saga de quatro gerações que vai da segunda metade do Século XIX até aos nossos dias, e que passa pela Polónia, Portugal e Guiné-Bissau. Uma história de reconstrução de memória(s), de procura de raízes, de busca de identidade, um exemplo de capacidade de adaptação, de tenacidade, de coragem,

Segundo li na sua página pessoal, o Mikael Levin, primo da Cristina e do Pepito, nasceu em 1954, em Nova Iorque. Tem a dupla nacionalidade francesa e americana. Cresceu em França e nos Estados Unidos da América, mas também viveu em Israel.

Como ele próprio se apresenta, Mikael Levin é um fotógrafo cujo enfoque principal são "as questões de tempo e lugar de identidade e memória". Está representado em importantes colecções de grandes museus dos EUA e da Europa, tais como: Whitney Museum of American Art, Metropolitan Museum of Art, International Center of Photography, Museum of Modern Art, em Nova Iorque; o Centre Pompidou e a Bibliothèque Nationale, em Paris... E ainda em: o Museu de Israel (Jerusalém), o Moderna Muset (Estocolmo), o Victoria and Albert Museum (Londres) e, por fim, o Museu Judaico de Berlim.

A História de Cristina (em inglês, Cristina's History) é a história de 4 gerações de Schwarz. "Conheci Cristina da Silva Schwarz na Guiné-Bissau em 2003" - conta o autor, na sua página. Ele e Cristina têm,afinal, em comum um antepassado judeu, um homem estudioso e culto, que viveu em Zgierz, na Polónia central. Ao longo da sua vida, Isuchaar Szwarc "viu sua pequena cidade medieval transformada pela industrialização". Julgo que morreu na véspera da II Guerra Mundial, quando o terror nazi já alastrava pela Europa. Ele e grande da sua família não sobreviveram ao holocausto.

Samuel, o filho mais velho de Isuchaar, instalara-se em Lisboa com a I Guerra Mundial. Tinha-se casado com uma jovem russa, de Odessa (hoje, na Ucrânia). Samuel Schwarz (1880-1953) (foto à esquerda, cortesia de Inácio Steinhardt) será um engenheiro de minas, de sucesso, mas também ficará conhecido pela sua erudição, e pelo seu interesse pela história e cultura dos judeus sefarditas (que viviam na Península Ibérica). Foi ele que identificou (e salvou do abandmno e esquecimento) a comunidade cripto-judaica de Belmonte (***).

Foi também ele quem descobriu, comprou e doou ao Estado Português a antiga sinagoga de Tomar... (e a que os tomarenses e os demais portugueses, infelizmente, não parecem dar a devida importância, contrariamente ao que se passa com a sinagoga de Castelo de Vide, cujo notável núcleo museológico acabo de visitar, esta semana).

A filha (única) de Samuel, Clara Schwarz, casada com o advogado e escritor, de origem caboverdiana, Artur Augusto Silva (****), fixou-se em Bissau em 1947. "Lá, ela e o marido tiveram um papel de destaque no movimento anti-colonial", diz-nos o fotógrafo... Formada em letras pela Universidade de Lisboa, Clara Schwarz pertenceu ao núcleo dos fundadores e dos primeiros professores do Liceu Honório Barreto, ao tempo do Governador-Geral da Guiné, Sarmento Rodrigues (1946/49), que tinha duas filhas que também foram colegas (se bem percebi...) da Clara.

Por ela e por outros professores portugueses passou a formação da elite guineense e, portanto, de boa parte dos dirigentes do PAIGC. Clara foi professora de português. Disse-me há dias que "foi o melhor tempo" da sua vida... O Pepito, o mais novo de três filhos, todos rapazes, foi o único que nasceu na Guiné-Bissau.

Foto à esquerda: o antigo liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N'Krumah (cortesia do bogue com o mesmo nome).

Por sua vez, "desde a independência da Guiné-Bissau, Carlos, seu filho mais novo, tem dedicado a sua vida ao desenvolvimento agrícola deste país empobrecido", diz-nos o fotógrafo Mikael Levin... Cristina, filha de Carlos (Pepito, para todo o mundo e não só os amigos), nasceu em Bissau, em 1973. É portuguesa, casada, tem uma filha, é bióloga, com trabalho de investigação na Guiné-Bissau.

Castelo Vide > 21 de Agosto de 2009 > Sinagoga Museu > Vista parcial do painel com os nomes dos castelo-videnses, vítimas da Santa Inquisição. Não se sabe a data da sua construção. No início do Séc. XIV já havia uma judiaria em Castelo de Vide. O edifício foi adaptado para residência no Séc XVII. Foi reconstruído na sua traça primitiva em 1972. Recentemente foi criado o Núcleo Museológico da Sinagoga de Castelo Vide, que deve muito ao trabalho da arquitecta e arqueóloga Susana Bicho. É hoje uma das principais turísticas daquela bela terra do Alto Alentejo. Parabéns ao município e à comunidade de Castelo de Vide pelo belíssimo trabalho feito de preservação e divulgação da memória das suas gentes.

Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > A Joana Graça e a Clara Schwarz, divertidíssimas, a praticar o 'seu' russo... Uma tarde divertidíssima, a que não faltou a música klezmer (género musical cultivada pelos judeus das regiões balcânicas desde o Séc. XV, através do violino do João Graça (do grupo musical Melech Mechaya)

Vídeo (4' 04'' ) : © Luís Graça (2009). Direitos reservados

Acrescenta o autor:

"Eu sempre tinha ouvido falar deste ramo bem sucedido da minha família. Ocorreu-me que as suas vidas eram a personificação da crença positivista da modernidade em matéria de mobilidade e de progresso. As famílias judias são muitas vezes caracterizadas por padrões de errância e migração, padrões de vida que mais tarde vieram a caracterizar a população mundial em geral"...

Embora as imagens do fotógrafo sejam específicas, a sua intenção "é ir além das identificações estreitas de uma determinada comunidade. É a tensão entre o local eo global que me interessa. A condição de multiplicidade, de deambulação e de exílio, tal como mostra esta história, sugere alguns princípios para uma fundamentação alternativa de identidade cultural, com base em padrões comuns de experiência"...

Sobre a exposição, diz-nos o autor que "é apresentada como uma instalação composta por três projecções digitais (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Nas salas sobre a Polónia e a Guiné-Bissau, dois projectores estão montados, de costas um para o outro, sobre um pivô central. As imagens de vídeo giram em torno da sala (como as vigas de uma casa de luz), com alongamento e flexão nas paredes à medida que são distorcidas pela forma da sala. Na sala de Lisboa, três projectores de vídeo projectam as imagens em paredes alternadas. Uma voz off narra a história. O ciclo de cada sala dura aproximadamente 15 minutos e consiste em cerca de 60 imagens".

Há um catálogo da exposição, com 160 imagens a preto e branco e texto em Francês, Inglês e Português, composto por três partes (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Autores do texto: Jean-François Chevrier, historiador de arte e curador independente; Jonathan Boyarin, professor de estudos judaicos modernos; e Carlos Schwarz da Silva, primo do Mikael Levin. (O notável texto do Pepito, A sombra do pau, já foi publicado no nosso blogue) (*****).

____________

Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4836: Agenda cultural (23): Exposição evocativa da participação dos jovens do Seixal, Lourinhã, na guerra colonial (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2977: Recortes de imprensa (6): a cidadã portuguesa, Cristina Silva, expulsa da Embaixada de Portugal em Bissau no 10 de Junho

(***) Sobre Samuel Schwarz, há uma nota biográfica na página pessoal do antigo jornalista português, correspondente, em Israel, de vários jornais, da rádios, da RTP e da agência noticiosa ANOP (hoje, Lusa), Inácio Steinhardt (n. 1933, Lisboa, de origem judaica, a viver em Israel desde 1976), que tomo a liberdade de transcrever parcialmente, com a devida vénia e as minhas saudações bloguísticas ao autor (de quem ainda me lembro perfeitamente):

Completam-se este ano [, 2005,] 90 anos desde a chegada a Portugal do engenheiro judeu polaco Samuel Schwarz.

Foi Schwarz quem descobriu e revelou a todo o mundo judaico a existência de uma comunidade secreta cripto-judaica, em Belmonte.

Nascido em Zgierg, na Polónia, em 1880, Samuel Schwarz era filho de um erudito hebraísta, que tomou parte como delegado, no 1º. Congresso Sionista, convocado por Teodor Herzl.

Com a idade de 18 anos, Samuel deixou a casa dos pais para ir estudar engenharia mineira em Paris. Trabalhou depois na Espanha, na Suíça, na Costa do Marfim e na Rússia, onde conheceu sua futura esposa e se casou.

No princípio da 1.ª guerra mundial, o casal foi viver para Orense, em Espanha, e em 1915 estabeleceram-se definitivamente em Portugal.

O seu primeiro trabalho profissional foi nas minas de estanho de Belmonte. Aí, quando comprava aprovisionamentos para o seu escritório, um comerciante local aconselhou-o confidencialmente a que deixasse de comprar na loja de um seu concorrente.
- Basta que lhe diga que ele é judeu.

Vindo da Polónia, onde existia uma vida judaica pujante, para Portugal, onde a comunidade judaica reconhecida não excedia algumas centenas de membros, a confidência do comerciante de Belmonte causou-lhe obviamente enorme surpresa.
O problema imediato foi que, tanto como os vizinhos cristãos apontavam a dedo os habitantes "cristãos-novos" de Belmonte, estes escondiam as suas práticas religiosas e negavam veementemente serem judeus.

Schwarz necessitou de muita paciência, muitos conhecimentos da liturgia judaica, e de muito poder de persuasão, para ser reconhecido pelos cristãos-novos de Belmonte como seu correligionário.

Revelou então a sua descoberta em inúmeros artigos e entrevistas na imprensa judaica de todo o Mundo, que, por sua vez, deram lugar a visitas de individualidades importantes e novos relatos em livros e jornais. Excelente poliglota, Schwarz dominava nove línguas.

A sua principal obra "Cristãos-Novos em Portugal no Século XX" foi publicada em 1925, como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, de que era membro.

Este livro é considerado ainda hoje um clássico e fonte primária de todos os investigadores da história dos cripto-judeus em Portugal moderno.(...)

Samuel Schwarz foi também um investigador emérito da cultura judaica em Portugal. Entre os trabalhos que publicou, encontra-se a revelação de um documento hebraico, até então inédito, sobre a conquista de Lisboa aos Mouros, vista pelos habitantes judeus de dentro da cidade.

Devem-se-lhe também estudos importantes sobre a localização das judiarias medievais de Lisboa, e uma história da Moderna Comunidade Israelita de Lisboa.

Foi Samuel Schwarz que identificou em Tomar um edifício, que servia de armazém de batatas, e anteriormente de prisão, como tendo sido originalmente uma sinagoga do século XV.

Schwarz adquiriu e recuperou o edifício a suas custas, reuniu nele a maioria das inscrições hebraicas encontradas em território português. Ofereceu-o depois para o acervo cultural português, sob o nome de Museu Abraão Zacuto.

Actualmente a "Sinagoga de Tomar" é um importante atractivo turístico da cidade.

Samuel Schwarz faleceu em Lisboa em 1953.

Este ano foi inaugurado em Belmonte - cuja comunidade cripto-judaica regressou entretanto ao judaísmo normativo - um Museu Judaico, que esclarece aos turistas e visitantes nacionais a história incrível daquela comunidade.

Lamentavelmente, os responsáveis por aquele espaço museológico parece terem esquecido dedicar um sector do museu à figura e história de Samuel Schwarz, a cuja descoberta e obra de investigação Belmonte ficou a dever a divulgação no mundo da sua comunidade judaica.

É uma lacuna imperdoável, que os responsáveis certamente quererão reparar, na altura em que se comemora o 80.º aniversário da chegada de Samuel Schwarz a Belmonte.


In: Blogue Ao Correr da Pena > 31 de Agosto de 2005 > Samuel Schwarz

(****) Vd. postes de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

(****) Vd. poste de 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

É um texto que eu conselho vivamente a ler e reler, em especial aos amigos da Guiné e do povo guineense, e a todos os homens de boa vontade... Aqui vai apenas a última parte:

(...) 4. RENASCER SEMPRE

Em 1948, um ano antes de eu nascer, o meu pai [, Artur Augusto da Silva,] regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e onde, tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.

Com a minha mãe Clara [Schwarz] e meus irmãos Henrique e João, volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.

Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.

No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.

Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha, e logo a seguir com o Ivan, nascido em 1975, e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.

Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer.

(...)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4862: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (5): Como se vivia no abrigo da ponte de Uaque



1. Mais um episódio da série do Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, enviado em mensagem com data de 21 de Agosto de 2009:





Novembro de 1966.
O abrigo de Uaque.
Reviver o homem das cavernas trocando a moca pela G3.


Ali pelo menos aumentei os meus dotes de cultura geral, pois fiquei a saber que:

- Os porcos nadam e de que maneira;

- que com 20 anos pode-se comer tudo e de tudo que tudo engorda (portanto não mata) e que atirando uma granada ofensiva para um rio (passe a selvajaria) os peixes numa fracção de segundo e num raio de 10 metros aparecem todos a boiar de barriga para o ar acabando ali o seu reinado.



Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Foi então aqui no abrigo de Uaque a 5-6 quilómetros de Mansoa e na estrada que ligava aquela a Bissau, um pouco depois do carreiro para Jugudul, que eu vivi das páginas mais interessantes e palpitantes de toda a minha vida na Guiné. Não por ser um sítio maravilhoso, pacífico ou acomodativo, antes pelo contrário, no que diz respeito principalmente aos dois últimos predicados, mas sobretudo pelo insólito da situação.

O abrigo, construído recentemente, em pedra ligada por uma massa espécie de barro escuro, o tal barro que os indígenas usavam na construção das suas moranças, de planta quadrada, tinha seteiras em todos os seus 4 lados o que nos dava a possibilidade de defesa em todos os ângulos. Interiormente, outro quadrado em parede, paralelo ao exterior, formando assim um corredor em quadrado de circuito fechado. Era então aqui no corredor em forma de galeria que tomávamos posições em caso de ataque inimigo. Este corredor servia de tudo: arrecadação de munições, víveres, dormitório, etc. Era a nossa casa.

As paredes do abrigo ficavam metade abaixo do nível do solo (portanto enterrado) cerca de 1,5 m. Visto do lado de fora o abrigo tinha sensivelmente aí uma altura de 1,5m também. Logo as seteiras estavam um pouco acima do nível do solo visto do exterior e à altura adequada do lado de dentro. Estávamos assim protegidos quer pela frente quer pelas costas, quer ainda por cima, pois o dito corredor estava coberto de espessa camada do mesmo material usado nas paredes ou parecido e tal como de um túnel se tratasse. Cada cama estava colocada junto a uma seteira para que a nossa reacção, em caso de ataque inimigo à noite (o mais provável), fosse a mais rápida possível. O número de camas estava dividido pelos quatro lados do abrigo.

No vão deixado pelo quadrado interior em parede, e aqui já a descoberto, ficava a cozinha ou espécie disso: 4 caibros ao alto sustinham uma cobertura em chapa de bidão (esta dava para tudo) por causa da chuva e que cobria então os tachos e as panelas que cozinhavam ao sabor das chamas da lenha, o comer da malta. Mais ao lado, uma mesa comprida de madeira e de construção rudimentar e com bancos corridos um de cada lado e em todo o comprimento da mesa, também em madeira e feitos também de forma tosca à boa maneira da tropa nos seus vinte anos.

Tudo isto dava um ar de guerra e ao jeito do far-west a que o tipicismo e a fisionomia natural da terra africana completava num enquadramento de belo significado.

A lenha que se ia apanhando um pouco por todo lado era empilhada no dito vão interior e devido à sua grande quantidade, ocupava, em alta pilha, mais de metade da área. De lenha para cozinhar estávamos bem fornecidos só que da outra lenha, era só aguardar…

Num do vértices do abrigo e do lado da ponte, portanto da estrada também, e para o lado de Mansoa, destacava-se, numa posição acima aí 1-1,5 metros do tecto do abrigo, uma guarita em jeito de pequena torre mas também de espessas paredes onde permanentemente ficava um homem, o homem que zelava pela vida dos camaradas, mantendo uma atenta vigilância e um ouvido muito apurado principalmente durante a noite: o sentinela. Este posto de sentinela era feito durante a noite normalmente por um milícia indígena.

Uma vez ao meio da noite subi para ver se ele estava tranquilo a dormir, mas não, de olho bem vivo varria com este todo o terreno circundante. Good, pensei eu.
Uma tosca mas segura escada também de madeira fazia o acesso a tal poleiro.
Ali estávamos e ali passávamos dias e dias naquele local um tanto inóspito, vivendo como ciganos acampados algures no mato.

O ambiente era de guerra pura, só guerra e sempre a guerra, pois dentro do abrigo respirava-se pólvora e só pólvora para além de um ar saturado de uma mistura de tudo. O volume do ar no abrigo não era grande e aquele também não corria. Só das seteiras é que se sentia algum ar fresco a entrar. Junte-se a isto o cheiro dos cozinhados(?), das drogas usadas para afugentar os malfadados dos mosquitos, também de alguns cheiros orgânicos, naturalmente, e assim vivíamos em ar interior muito adverso principalmente quando dormíamos. Por todo o lado, no dito túnel, só se viam cunhetes e mais cunhetes, - tropeçávamos neles - espingardas aqui e acolá, granadas de mão, de bazooka e de morteiro nem sempre bem acomodadas, um pouco de ao Deus dará.

Estávamos atolados em munições ou seja armados até aos dentes, e por aqui… O radiotelagrafista também tinha lugar ao seu posto privado. Parecia um escritório, só que depois de um terramoto.

Assim, em tais condições, julgávamos também que muito dificilmente o inimigo levaria a melhor pois estávamos numa autêntica fortaleza e o armamento que nos equipava dava-nos a maior garantia para além de contarmos com um rádio que periodicamente comunicava com Mansoa, e portanto seria fácil pedirmos reforços também. Estes podiam era demorar, estávamos conscientes disso.

A guarnição, (uma Secção reforçada) compunha-se de 10 homens: eu que era o comandante daquele destacamento, de um radiotelegrafista, de um bazookeiro na circunstância o destemido e voluntarioso Chaves que me avisou logo: - Furriel, se eles aparecerem eu vou lá para fora com a bazooka, aqui dentro não estou a fazer nada - , um homem do morteiro, respectivos municiadores e os restantes atiradores. Tínhamos lá medicamentos para as primeiras impressões: pensos, tinturas (a inevitável presença do 1214!), garrotes, ligaduras, etc. O Vizela pôs anti-alérgico na cabeça rachada de uma velha indígena! Dizendo-lhe que ia ficar boa!… e a pobre confiante e a agradecer com sorriso largo a mostrar uma cremalheira já muito desfalcada. O anti-alérgico dava para tudo, dizia ele. Os indígenas passavam por lá a socorrerem-se de qualquer ferimento mas a partir do episódio da velha, o Vizela ficou impedido de fazer curativos (conhecimentos clínicos a mais). A nossa iluminação era feita através de garrafas vazias de cerveja cheias de petróleo e uma tira de gaze a funcionar como pavio. Este era o mesmo tipo de iluminação que era usado exteriormente. Fora do abrigo havia uma cerca em arame farpado e a toda a volta daquele. Esta cerca ficava a uns 30-40 metros do abrigo. Nos dois pontos que atravessava a estrada Mansoa-Bissau, a cerca era substituída por cavalos de frisa que eram desviados sempre ao alvorecer para dar passagem à passagem eventual de viaturas e também ao pessoal indígena que fazia a sua vida necessitando de passar naquele ponto da estrada.

À noite e aquando da altura de se acenderem os exóticos candeeiros pendurados a espaços regulares na cerca, colocavam-se novamente os cavalo de frisa impedindo a passagem de pessoas ou viaturas pela estrada e garantindo assim uma protecção em todo o redor do abrigo. O arame farpado ficava assim em circuito fechado (mais ou menos).

Entre os soldados havia um que cozinhava muito bem, fazendo, e dentro dos condicionalismos existentes, uns pratos bem saborosos.

De manhã tomávamos café com leite com casqueiro, este preparado em torradas(?), principalmente quando ele ficava duro (o que era sempre). Por vezes calhava às outras refeições, frango e até leitão(!), pois os soldados metiam-se pelo mato dentro um tanto ou quanto arriscadamente, diga-se de passagem, e compravam (?) aos nativos aqui e ali a habitarem, os referidos animais.

Ainda me recordo de um belo dia em que o Barrumas saca de cada bolso do camuflado, qual ilusionista, um assustado frango. Diz-me ele orgulhoso e atirando os frangos ao ar. - Sabe quanto custou cada um, meu Furriel? Cinco coroas! - O Barrumas quando contava as façanhas dele até nem gaguejava.

Duma outra vez eis que aparece um porco (?) de focinho bastante comprido, à frente de um pequeno grupo de soldados e amarrado por uma corda e a dar bastante trabalho ao seu condutor. - Custou 30 paus, Furriel. Eles queriam um bocado mais mas fizemos-lhes ver que era 30 paus ou… de graça. Eles optaram pela primeira oferta.

Foi uma risota com o porco, pois este a dada altura soltou-se e tão cedo não deu descanso à malta, pois fugia e deambulava em todas as direcções. Foi um jogo do gato e do rato. A certa altura ele mete-se numa profunda e extensa poça de água e alguém grita: - Lá vai o nosso porco - mas qual não é o nosso espanto, que o porco nada com surpreendente destreza, atravessa o charco e volta à desenfreada correria. - Alto, temos porco outra vez - disse mais que um, de imediato. Após alguns segundos de expectativa e surpresa por o porco nadar, volta a perseguição. A nossa vingança não se fez esperar muito, pois volvidas algumas horas o porco assava numa comprida travessa de engelhado e oxidado alumínio, num improvisado mas eficiente(?) forno. O forno propriamente dito era nem mais nem menos que um bidão de chapa, outrora de óleo ou de qualquer combustível, aqui e ali meio enferrujado, embutido num pequeno combro mesmo junto ao abrigo. Este forno haveria de assar(?) muita coisa dali em diante e que nos iria saber às mil maravilhas. Talvez o cheiro ainda do óleo…

O habilidoso cozinheiro temperava aquilo cá com um jeito! Bem, também se não fosse os temperos esconderem muita coisa, muita coisa por certo ficaria por comer, apesar da fome.

De dia matávamos o tempo indo para o rio ali perto - um afluente do rio Mansoa -, cuja ponte feita com tábuas de madeira grossas e largas dispostas ao través justificava a presença do abrigo e militares ali perto. Nadávamos ou simplesmente saboreávamos da frescura proporcionada pela presença da água do rio. De vez em quando e para quebrar a rotina, levava uma granada e atirava-a à água. Breves segundos após a granada explodir apareciam à superfície diversos peixes a boiar de barriga para o ar. Coitados dos peixes, como se eles tivessem alguma coisa a ver com a guerra…

Agora me recordo de como por vezes nos arriscávamos a sermos cercados sem possibilidades de defesa, pois, se ao princípio nos preveníamos levando as G3 connosco, a partir de certa altura a malta e à boa maneira do Zé português prescindiu de tal empecilho, a ponto de estarmos ali uns poucos sem qualquer arma a acompanhar-nos. Era a tal predisposição para o comodismo e descontracção!... Coisas do diabo, e que só atentávamos nelas depois de acontecer alguma coisa. O que vale é que o inimigo não sonhava com tanto à-vontade da nossa parte e… fez o favor de nunca aparecer.

Acontece que uma vez até tremi dos pés à cabeça pois, ao chegar ao abrigo vindo do rio, verifiquei que não havia lá viv’alma pois uns fiados nos outros, deu em o abrigo ficar completamente abandonado. O abrigo até podia mudar de dono. Toda a malta estava portanto a banhos e longe do abrigo. Os que estavam mais perto era os que estavam na ponte e mesmo assim esta ficava a uma centena de metros do abrigo.

Uma imprevidência - no meio de tantas outras - que nos podia custar bem caro.

À noite, depois de jantarmos, jogávamos às cartas na grande mesa do tacho até o cansaço tomar conta de nós.

Tomávamos banho(?) com um dispositivo de chuveiro soldado a um latão e este pendurado num pau apoiado transversalmente em dois prumos também de madeira.

Enchíamos o latão numa poça de água estagnada ali ao pé - a mesma água que já tinha feito num sei quantos banhos! - pendurávamos então o latão outra vez e abríamos o dispositivo de chuveiro para a água jorrar. A água portanto era sempre a mesma (circuito fechado) e só se chovesse é que se alterava alguma coisa, e interrogava-me eu como é que nós estamos a tomar banho se a água até era cada vez mais suja. Valia pelo efeito psicológico e sabia bem a água a cair no corpo, este sempre muito acalorado. Acresce dizer que este exótico (e o que não era ali exótico?) chuveiro ficava na retaguarda do abrigo e aí a uns vinte metros afastado deste.

Bom, falta falar verdadeiramente da nossa missão ali e o porquê dum abrigo - eu diria fortaleza ou forte ou mina ou até bunker - ali instalado.

Corria o boato e ainda mais a avaliar pelos precedentes, pois já tinham sido vários os pontões por aquela zona a irem pelos ares pelas mãos dos turras neutralizando assim o trânsito de pessoas e carros e que a ponte de Uaque estava também ameaçada de destruição. Esta ponte, de grande importância na ligação Bissau-Mansoa, uma das principais artérias no norte da Guiné, com um razoável movimento de viaturas sobretudo e já se vê, militares. Este tráfego ia-se tornando cada vez mais arriscado pois a actividade terrorista na zona vinha gradualmente acentuando-se. E lembrar que eu, o Baião e o Martins aquando da nossa ida para férias na metrópole, alugamos um Volkswagen (o vulgo carocha) em Bissau a um Sargento e fizemos os três o trajecto Bissau-Mansoa e depois Mansoa-Bissau por causa de um documento qualquer que faltava - o Comandante Operacional em Mansoa até mudou de cor quando soube que tínhamos feito isto e não nos queria deixar sair de Mansoa. E eu que tinha acabado de tirar a carta militar e peguei num carro pela primeira vez…. O que vale a estrada Bissau-Mansoa era praticamente uma enorme recta. A ponte ficava e como já disse, a cerca de 5-6 quilómetros da concorridíssima Mansoa. Mansoa era muito populacional e com muito efectivo militar. Era sede de Batalhão, tinha uma Companhia operacional para além de por vezes também estarem por ali Companhias ou militares isolados em trânsito ou colunas para reabastecimento de quase todas as unidades militares no Oio: Bissorã, Cutia, Mansabá, Olossato e os diversos destacamentos: Encheia, Braia, Maqué.

Mansoa situava-se também num ponto estratégico quer geograficamente quer por estar servida de uma boa estrada para a capital Bissau e ser marginada por um dos maiores e importantes rios da Guiné: o rio Mansoa. Era também, ao que me pareceu, a porta de entrada para todo o norte da Guiné. Por aqui já se pode ver qual o interesse do inimigo em fazer ir pelos ares a ponte em Uaque. Sendo assim, havia a imperiosa necessidade de preservar a existência daquela e assim só com um efectivo militar de presença e vigilância permanente isso poderia ser garantido. A cerca de 100 metros da ponte e para o lado de Bissau e do lado esquerdo da estrada naquela direcção também, construiu-se então um seguro abrigo com um efectivo de 10-12 homens armados de Bazooka, morteiro 60 e todos com a sua G3. Como atrás disse, além de fazerem segurança à ponte, os militares ali presentes - parte deles - patrulhavam de vez em quando os terrenos limítrofes que até dava para trazer (ou pilhar?) frangos e outros animais de criação.

Para além do isolamento, pois estávamos ali como sós no mundo, nada se divisava que denunciasse a existência humana, e as privações, já se vê, eram muitas.

Tínhamos à noite a habitual rotineira e impiedosa visita de milhares de mosquitos. Uma vez o rio ali perto cuja água praticamente sem corrente - esta existia em função das marés (lembra-se que a maior parte dos rios na Guiné são extensões do mar) - e a existência de bolanhas mais ou menos alagadas a toda a volta do abrigo, tudo isto originava a proliferação de mosquitos que com a sua sede sanguinária viam ali em nós pasto a considerar. A vingança dos peixes se calhar…

À noite dava-se uma autêntica invasão e por mais que nos cuidássemos eles faziam-se sempre sentir através das suas desesperantes picadas. Ali o grande problema a seguir à guerra era a praga dos mosquitos. Uma das soluções para dormirmos sem esta indesejável companhia, era de ao deitarmo-nos agitar fortemente uma peça de roupa que estivéssemos a despir na ocasião e sem deixar de agitá-la ao mesmo tempo abríamos uma nesga do mosquiteiro até então hermeticamente fechado, e entrarmos em habilidade qual contorcionista e na máxima rapidez para dentro da cama, e logo sem demora fechar a nesga aberta. Apesar de tudo de todo o esforço e cautela, e para nossa grande arrelia não é que entravam sempre connosco 2 ou 3 daqueles clientes! Estes faziam-se ouvir logo após a nossa quietude para prepararmo-nos para dormir. Que raiva! Filhos da puta! era o que mais se ouvia aqui e ali naquelas alturas.
Havia então quem não se importasse com a presença de 2 ou 3 mosquitos no seu habitat, mas os mais impacientes não desarmavam enquanto o ambiente debaixo do mosquiteiro não ficasse limpo, e então davam-se ao trabalho de tentar liquidá-los espalmando-os entre as mãos. Quem não soubesse do que se tratava julgava que aquilo seria de malucos ou de então de algum intróito para uma peça de ópera. Bate aqui, bate acolá, era uma sinfonia de palmas quase ritmada e um pouco por todo o abrigo. Entretanto num, chegou a entrar um pirilampo que fez com que o hospedeiro dissesse: - Este filho da p… como não me via bem foi buscar uma lanterna.

Tínhamos connosco o Lion Brand, que era um produto de cor verde e em forma de espiral e que ia queimando como o morrão de um cigarro e cujo fumo era fortemente insecticida, mas isto ali pouco funcionava, a não ser deixar um cheiro pestilento naquele corredor quadrado do abrigo. Havia quem dissesse que ali o Lion Brand se calhar até os alimentava.

Colocávamos uns poucos a espaços regulares (2 metros) pendurados nas paredes interiores do abrigo mesmo junto às camas. Portanto ficavam a arder uma boa quantidade deles ao mesmo tempo. Uma unidade de Lion Brand dava em princípio para um quarto de dimensões normais e ali, colocados aos montes, parecia nada adiantar. Portanto a protecção única e válida ali, era ter o mosquiteiro muito bem fechadinho e preso por baixo do colchão e não encostar qualquer parte do corpo ao mosquiteiro pois se havia o azar de durante o sono deixar um braço ou um pé encostado ao mosquiteiro o desgraçado tinha muito que contar e coçar depois. O inimigo, na circunstância, atacava mesmo do lado de fora do mosquiteiro.

Esta guarnição esteve cerca de 3 semanas em Uaque. Acresce dizer que durante a minha estada no abrigo de Uaque nunca fomos atacados ou sequer vítimas de qualquer flagelação ou até dado por qualquer presença inimiga nas imediações. Os mosquitos é que nos davam cabo do toutiço e nos punha a tocar harpa (coça, coça) durante muito tempo.

P.S. - Hoje Uaque, ver fotos seguintes (reproduzidas com a devida vénia do site do Hotel Rural de Uaque”, tem um empreendimento turístico com base em bonitos bungalows com boa piscina e tudo. Como os tempos mudam! Neste caso para muito melhor, penso eu, e ainda bem.



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4656: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (4): CCAÇ 816, Operação faísca em Cansambo