1. Sétimo poste da série Cartas, (JUL65 a SET65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676,
Pirada, Bajocunda e
Paúnca, 1964/66
2.ª FASE: O MATO
Paúnca, 03 Jul. 1965
As coisas estão a alterar-se bastante, quebrando a rotinas dos últimos tempos. Esta semana foi mesmo muito atribulada, mas não para mim que, nela fui apenas espectador.
A Lili (nome familiar da esposa do Castro) acabou por ter uma zanga terrível com o marido.
No início, já tinha notado uma certa frieza da parte dela para com ele. Vim depois a saber que a vida que os dois aqui levavam não era nenhum mar de rosas e que discutiam frequentemente, inclusivamente durante as refeições, feitas juntamente com os furriéis.
Na passada terça-feira, o Castro saiu de jeep para visitar outro alferes de um destacamento aqui próximo, mas de outra Companhia. Almoçou por lá e só regressou ao fim da tarde, demasiado alegre, parecendo vir até com um grão na asa.
Foram os dois logo para o quarto enquanto nós ficávamos a ouvir uns discos que ele tinha trazido.
Passado pouco tempo, repentinamente, a Lili abre a porta e sai a correr espavorida. Pelo que nos pudemos aperceber, ela ter-lhe-ia dito qualquer coisa sobre o estado eufórico dele, resultando daí uma zanga em que se insultaram mutuamente com os piores nomes, chegando mesmo à agressão física.
Nessa altura já era noite cerrada e eu lá fui atrás da Lili, que dominada por forte estado emocional, com choro, soluços e nem sei que mais, foi sentar-se no chão, no meio da enorme parada do quartel de Paúnca. Acorreram alguns furriéis mas afastei-os e fiquei só eu a acalmá-la, a tentar que desabafasse comigo. Quando finalmente vi que parou de chorar e de tremer convulsivamente, deixei-a e regressei à Messe onde ainda todos estavam reunidos, consternados com toda aquela cena.
Entretanto o Castro fez várias tentativas para chegar junto dela mas foi repelido aos gritos.
O jantar estava na mesa e nem um nem outro se decidia a vir fazer-nos companhia, ele no quarto, ela lá fora.
Foi então que faxina, ao entrar no quarto do Castro para o chamar para vir comer o foi surpreender a cortar as veias do pulso esquerdo com uma lâmina de barba. Acorremos imediatamente, o enfermeiro aplicou-lhe logo uma ligadura e nem chegou a haver perigo. O Castro caiu então num estado de completa prostração física e durante os três dias que se seguiram quase nem se levantou da cama, não comendo nem falando com ninguém.
A Lili, essa, nunca mais quis dormir na mesma cama com ele e tem teimado em dormir numa cama de lona na palhota-alpendre que cá fora servia de bar.
À medida que os dias foram passando, investiguei alguns factos passados, na mira de tentar ficar a saber o porquê de se ter chegado àquela situação. No entanto não o fiz apenas com o propósito de bisbilhotar os pormenores escabrosos do escândalo. Precisava de ter em meu poder o conhecimento de todos os factos que me ajudassem à compreensão e possível resolução deste problema.
Sim, porque estava determinado em ajudar estes dois. Ele em primeiro lugar, porque estava a fraquejar de modo lamentável, ela para que não enlouquecesse. E digo, enlouquecer pois é isso mesmo que aqui pode vir a acontecer aos espíritos mais fracos.
Assim constatei que as coisas estariam neste pé: o comportamento da Lili para com o marido era frio e distante já desde a primeira vez que ela cá tinha estado, ainda em Bissau. No entanto, quis vir para Paúnca, com o intuito de animar os soldados e todos os outros que aqui também viviam a sua solidão. Esse impulso levou-a talvez longe demais, pois nem todas as pessoas têm uma boa formação moral e, a maioria, vive dominada pelos mais estranhos e complexos traumas, quase todos de origem sexual.
Começaram logo por surgir os inevitáveis boatos sobre o comportamento dela, que era uma mulher leviana, que atraiçoava o marido, inclusivamente com um dos furriéis, enfim que não passava de uma vulgar libertina.
O Castro, se chegou a suspeitar disso, nunca a soube defender nem resguardar, pois ele tem aquela estranha mentalidade, segundo a qual a verdadeira e única camaradagem leal que existe entre os homens é a que se cria entre os que se embebedam em conjunto. E é também verdade que ele, antes e depois de ter cá a mulher, costumava embebedar-se na companhia dos seus soldados, talvez com a intenção de aumentar a sua popularidade (o que de facto conseguiu). Um dos indícios claros da sua personalidade é ter sempre um desejo incontrolável pelo luxo, o sonho de possuir bons carros, mulheres deslumbrantes, vida de playboy, etc. Mas para além disso tudo, a sua maior obsessão foi e será sempre a de ser popular.
Mas voltemos aos acontecimentos. Todos os dias falo com um ou com o outro, tentando serenar ao ânimos e fazer voltar tudo ao seu lugar.
Ela quer a separação a todo o custo. Ele quer que ela volte para ele e o acarinhe. Ela continua a manifestar total repulsa por ele. Até que ontem (sexta-feira) consegui convencê-lo de que a melhor atitude que poderia tomar, era levantar-se da cama, lavar-se, barbear-se, comer qualquer coisa e deixar de, teimosamente, tentar discutir ou pedir explicações à esposa. Mas logo em seguida, voltou a fazer o mesmo, a pedir que ela voltasse para ele, o perdoasse e contemporizasse com ele.
Mas ela cada vez mais se inteiriçava e se recusava a falar com ele, não querendo nem sequer que ele a tocasse. E o inevitável sucedeu novamente, uma tremenda discussão com um final outra vez grave.
Aproveitando uma distracção nossa, ela cortou-se selvaticamente nos dois pulsos e pelos braços acima em total desespero e descontrolo. Tivemos que a agarrar à força para que deixasse fazer os curativos, pois estava completamente desvairada. E o Castro, sempre de volta dela, massacrando-a insistentemente, perguntando porque é que ela estava assim, o que é que ele tinha feito de mal, numa cegueira tal que tive de empregar a violência para o afastar da mulher.
No fim de muita luta e muita paciência consegui que finalmente, ainda nessa noite, os dois jantassem connosco à mesa. Felizmente agora a crise está a abrandar, mas as coisas nunca voltarão a ser como dantes, nem haverá reconciliação, pois entre eles ficou decidido o divórcio.
Hoje de tarde o Castro não parava de chorar a perda daquilo que ele mais gostava. Pode-se dizer que hoje, tiveram uma recaída psicológica, talvez por cansaço. Ele, num acto de abandono, vagabundeava pela estrada, para baixo e para cima, sob uma enorme chuvada, como para se punir. Ela, não conseguia adormecer, dizendo que o estava constantemente a ouvir gritar e que ouvia também outras vozes a chamarem por ela. Apesar de eu lhe ter cedido por diversas vezes o meu quarto, ela nunca mais quis deixar a palhota-alpendre, teimando sempre em dormir na cadeira de lona. Por lá adormeceu, após o enfermeiro lhe ter administrado uma injecção calmante.
Como se calhar já repararam, a minha actuação aqui tem sido agora como a de um comandante. Por que de facto já o sou. Recebi ontem à noite uma ordem por escrito do nosso capitão a determinar que a partir de hoje (dia 3), o pelotão do Castro regressava a Pirada, vindo o meu para cá, beneficiando já da minha estadia aqui e alegando a tal prometida rotatividade dos destacamentos como teria sido combinado quando viemos para o mato. Aconteceu portanto aquilo que já ninguém esperava, eu vir a ser o comandante de Paúnca, o melhor e o mais cobiçado aquartelamento aqui da zona.
Isto acabou por arrasar ainda mais o Castro. A Lili chegou a pedir-me para a deixar ficar em Paúnca até vir a altura de poder embarcar para a Metrópole, mas por fim decidiu ir também para Pirada na condição de nem ver o marido, nem o capitão, que continua a detestar igualmente.
No entanto continuamos a construir o aquartelamento que querem criar aqui ao lado para um outro pelotão.
Paúnca, 10 Jul. 1965
Agora estou só em Paúnca. O Castro e a mulher foram para Bissau onde arranjou lugar para ela num avião da TAP, segundo contou num aerograma que mandou de lá, para o capitão. Parece também que, depois desta fita toda que aqui fizeram, já se reconciliaram de novo, o que me deixou boquiaberto.
Mesmo no último domingo ainda me deram que fazer, pois ela resolveu fugir, embrenhando-se pelo mato. Um pouco antes da hora do almoço, demos pela falta dela e depois de muito a procurar, soubemos por uns nativos que ela tinha sido vista a correr pela mata já longe do quartel. Fomos todos atrás dela e só a conseguimos agarrar perto das 4 horas da tarde, quando finalmente a encontrámos numa tabanca a 10 km daqui, estafada e cheia de sede. Só com uma grande dose de paciência é que conseguimos convencê-la a voltar para o quartel e tive pelo menos a satisfação que, se não tivesse sido pela minha presença, a crise teria tido contornos muito mais graves, ou vamos lá, até muito mais ridículos.
Mas já nem gosto mais de falar neste assunto, principalmente com quem tanto civis como militares se limitaram a ser simples espectadores, deste caso.
De uma coisa fiquei certo: ninguém está suficientemente autorizado para a poder julgar. Ela era uma pessoa de muito difícil compreensão para esta gente ainda com mentalidade de
bichos-do-mato, chamemos-lhes assim.
Mas ainda não vos falei de Paúnca como deve ser.
O quarto que era do Castro, passou agora a ser o meu. Está dividido a meio por uma cortina verde-escura, comprada por ele mas que ma deixou ficar, pois em Pirada não lhe iria servir para nada. O quarto fica assim dividido em escritório e quarto propriamente dito. Já pendurei o meu
canhangulo na parede e coloquei os tambores a um canto.
A minha lavadeira continua a ser a Ti Clara e até ver será sempre ela.
O quartel tem apenas dois edifícios cobertos de telha, a caserna e a Messe com os quartos dos sargentos e o meu. Os outros edifícios são simples cobertos, ou então, como no caso do Refeitório, edifícios com paredes de cimento mas cobertos com chapas de zinco ou lusalite, mais baixos que a caserna.
O aquartelamento fica logo à entrada da povoação, dominando a estrada que lhe dá acesso. Andando mais um pouco chega-se a um largo formado por cinco casas comerciais dispostas mais ou menos em quadrado. Aí é o centro do povoado, onde se faz o movimento principal.
Esta gente daqui é mais rica que a de Pirada, pois enquanto lá, os quatro comerciantes existentes, vivem principalmente do comércio que fazem com o Senegal, estes aqui (e são cinco!) vivem do comércio que fazem apenas com os indígenas desta região e com os que vêm do interior para se abastecerem.
Estamos agora na época em que se lavra a mancarra e o trigo e é precisamente nesta altura que os agricultores estão sem dinheiro. Mesmo assim ainda conseguem fazer algum negócio, vendendo arroz e tabaco para poderem comprar o que necessitam. É agora que nós aproveitamos também para lhes comprar os ovos e as galinhas que quisermos, pois deixam tudo muito mais barato.
Resumindo, gosto de estar aqui embora me sinta muito só. Mas por outro lado, fico contente por saber que os meus soldados finalmente estão a descansar das canseiras que tiveram em Pirada, sempre a fazerem obras aqui e ali. Quero mesmo que isto se venha a tornar um autêntico sanatório para eles.
Paúnca, 18 Jul. 1965
Ontem, sábado, organizámos um baile para o qual convidámos as duas filhas e a sobrinha de um comerciante negro de alcunha, o “
Passarinhas”, que tem a loja mesmo aqui em frente do quartel do outro lado da estrada.
Elas coitadas, eram só três e nós quase 40, de maneira que acabaram todas derreadas. Mas foi uma noite divertida e alegre, com bebidas à discrição, galinhas à cafreal, batatas fritas, salada de frutas, etc., etc. Foi pelo menos uma coisa inédita aqui na vila, especialmente para os soldados que há muito tempo não davam o seu pezinho de dança…
As raparigas que, por acaso, até não são nada feias, ficaram deslumbradas com as amabilidades de que foram alvo, vestiram as suas melhores roupas e pentearam a carapinha o mais à
europeia possível. Os soldados, obriguei-os a apresentarem-se com a farda n.º 1, ou então à civil e, assim, o baile teve um até um aspecto bastante decente.
Devo acrescentar que ninguém se embebedou, embora tivesse havido um soldado, mais emocionado que não resistiu a recitar o “
Amor de Mãe”. Um sucesso!
---///---
Recebi hoje as camisolas que me mandaram pelo Correio e já dei a dos quadrados à Ti Clara e a outra, a vermelha, à amiga dela, a Cumba. Quase lhes chegam aos pés, mas assim largas é que lhes ficam bem. Ficaram maravilhadas porque nunca ninguém lhes tinha feito tamanha oferta. Não se cansam de agradecer. As restantes vão ser distribuídas aos poucos por aqueles mais necessitados.
Aqui em Paúnca ainda não arranjei grandes amizades, a não ser com um rapaz, de nome Iaia que é o enfermeiro civil de cá. De raça Fula, muito simpático e muito mais culto que o normal sabe ler e escrever correctamente, tanto em árabe como em português. Como fala ainda vários dialectos locais tem sido muitíssimo útil como intérprete.
Paúnca, 25 Jul. 1965
Hoje fui a Pirada assistir a um jogo de futebol entre a equipa do meu Pelotão e a equipa do Comando da Companhia. Afinal o jogo acabou mal. Foi interrompido porque os jogadores envolveram-se à pancada, quando estavam empatados 0-0.
Mas mesmo assim prometemos vingança!
Paúnca, 01 Ago. 1965
De novo em Pirada agora a comandar a própria Companhia!
O capitão foi de férias e como o Cardoso, que é o alferes mais graduado, ainda se encontra na Metrópole, tive de vir eu para o comando das tropas, pois sou o alferes que se lhe segue quanto a graduação.
Assim fiquei instalado no quarto do capitão, nas novas instalações dentro do quartel, com luz eléctrica e quarto de banho privativo. Não é nada mau, embora o ruído do gerador seja um bocado chato. Mas é quase como estar a bordo de um navio. A gente habitua-se ao barulho e depois até deixa de o ouvir.
O quarto é pequeno, atulhado de armários com roupas, sapatos, botas e papelada, quase tudo do capitão. Também tenho uma ventoinha o que é muito bom pois agora, depois de chover, faz sempre um calor húmido e insuportavelmente abafante. Forneci-me de livros e revistas para me entreter e para não andar por aí feito parvo.
Continuo a ir todas as tardes e principalmente depois de jantar, a casa do M. Santos, onde jogamos umas partidas de xadrez, novo entretenimento que descobrimos. Mas perco sempre pois ele é um jogador muito mais forte que eu.
Agora, costumam juntar-se a nós, dois ou três furriéis, de maneira que os serões são muito mais animados. Discute-se política, cinema, literatura e de tudo um pouco, conforme as preferências de cada um.
Quanto às minhas novas atribuições no comando da Companhia, não me preocupam muito porque são poucas ou quase nenhumas. Daqui a poucos dias deve chegar o Cardoso e então regressarei de novo a Paúnca.
Pirada, 08 Ago. 1965
Amanhã entramos no 16.º mês de comissão. Isto está a andar depressa!
Para comemorar, fui com alguns furriéis almoçar a Paúnca a convite do Castro que, está lá agora a comandar o meu pelotão, enquanto eu estiver deslocado em Pirada. Os meus homens parecem ter ficado satisfeitos por me ver. Ao almoço paguei cerveja a todos para também aumentar a minha popularidade. Sinto que de dia para dia, principalmente nestes dois últimos meses (desde que regressei de férias) se tem vindo a criar um elo de amizade e compreensão entre mim e os soldados do meu pelotão. Já não se sente tanto aquela relação crispada de
patrão e escravos, mas sim uma simples camaradagem do chefe com os seus fiéis companheiros.
Agora que estou ausente aqui em Pirada, sei que até têm perguntado bastante por mim, modéstia à parte.
Hoje tivemos também a festa de despedida do Gabriel aquele alferes de Cavalaria meu companheiro em Bajocunda, de quem me tinha tornado amigo e que, foi nada mais, nada menos, nomeado ajudante do Governador!
É claro que delirámos com a notícia e fizemos mais uma grande festa em casa do amigo M. Santos que, coitado, depois do jantar, já abria a boca até às orelhas, cansado e mortinho por se ir deitar.
O nosso médico, o Rafael, continua deslocado lá longe, em Canquelifá, onde está há quase um mês. Apesar das excentricidades dele, já sentimos um pouco de saudades da sua companhia. Mas quem mais sofre são alguns dos nossos soldados que sofrem de paludismo e outras doenças mais graves que, por causa disso não têm o tratamento adequado.
Pirada, 15 Ago. 1965
Continuo a comandar a Companhia e já estou a ficar farto disto!
Os outros alferes, o Carvalho e o Castro começam a evidenciar sinais nítidos de quererem abusar da situação, cientes de que eu, alferes como eles, não lhes poderei exigir uma obediência completa. Julgam que podem fazer tudo o que lhes apetece, dando as ordens que melhor entendem, pensando talvez que eu não ousarei contrariá-los. Claro que poderia e posso mesmo, mas na verdade se o fizesse era só para criar aborrecimentos e chatices.
Quando o capitão cá estava, não eram capazes (como o Carvalho fez anteontem) de pegar num jeep e ir para Nova-Lamego, sem dizer nada a ninguém. Assim vi-me na contingência de proibir todos os condutores de saírem com as viaturas do quartel, sem a minha autorização expressa. Enfim uma série de coisas que só servem para andar quase sempre chateado na maior parte dos dias.
Mas estou a aprender a dominar-me melhor, embora, de vez em quando, surja um
dia não, como hoje foi um deles. Esqueci-me de entregar um envelope, com uma grande quantia, ao 1.º sargento e, quando me lembrei de o ir procurar à minha secretária (onde sabia que o tinha deixado) ele tinha desaparecido. Fiquei um bocado intrigado e ao mesmo tempo assustado com as consequências. Felizmente tudo se compôs, pois tinha sido o próprio 1.º sargento que o vira e o guardara.
Hoje entrei várias vezes na Secretaria para assinar uns papéis. Distraía-me depois com um outro assunto qualquer e tornava a sair sem nunca mais me lembrar do que tinha vindo ali fazer. E só muito mais tarde é que me lembrava do que deveria ter feito.
Pirada, 22 Ago. 1965
Imaginem qual não foi o meu espanto, quando ao entrar na Secretaria deparei com um monte de embrulhos que me eram destinados. A vossa encomenda chegou intacta. O tabaco e os fósforos vou guardá-los como relíquias. Um maço terá de durar dois dias pelo menos!
Os livros do Vilhena (um desenhador humorístico de muito renome, naquela época) foram acolhidos com muitos aplausos, pois não se falava noutra coisa e toda a gente os queria ler.
No outro dia aconteceu um desastre. Uma viatura pesada galgou por cima de um jeep quando regressava de Paúnca. Morreu um soldado e outros quatro ficaram feridos, um dos quais com gravidade. Estava de chuva e por motivos que ainda se desconhecem o jeep travou de repente e o camião passou por cima dele, pois os travões partiram-se e a estrada ainda por cima estava escorregadia. Foi uma grande balbúrdia. Os feridos foram logo evacuados de madrugada para Bissau e parece que se safam desta.
Quanto aos
nossos amigos, continuam a passar cá por perto (pelo Senegal) e a mandar
cumprimentos. A zona que está a ficar mais feia é a de Canquelifá, a mais de 50 kms daqui.
Estou a deixar crescer o bigode para mais tarde tirar umas fotografias. Mas depois, rapo-o, é claro. Aliás fica-me mal.
Pirada, 29 Ago. 1965
Tudo na mesma. Continuo um bocado azedo mas a coisa passa-me.
Só peço que o capitão chegue depressa, para poder regressar a Paúnca. Não fui ensinado para ocupar lugares destes e já estou farto de, quando quero fazer qualquer coisa, ter de andar a perguntar ao 1.º sargento (que também é uma boa bisca) se o posso fazer ou não.
As chuvas ainda não começaram e há já quem diga que este ano vai ser um ano de seca. Reparei que começaram a aparecer uns insectos a que chamam
cáusticos por deixarem no sítio da nossa pele onde pousam, autênticas bolhas parecidas com as que são causadas por queimaduras. Segundo dizem os velhos a chegada destes insectos é, precisamente, o prenúncio do fim das chuvas. Mas pode acontecer que sejam só dois exemplares transviados.
De resto, a vida aqui em Pirada tem-se limitado a uma ida todos os dias ao quartel, assinar umas quantas mensagens que vão chegando e dar despacho a outras.
Depois almoça-se, dorme-se a sesta e se ainda há mais alguma coisa a tratar volta-se ao quartel, senão vai-se até ao balcão da loja do M. Santos dar à língua até a hora do jantar. À noite vai-se outra vez para lá, jogar às cartas com as crianças e também com alguns graúdos que já apanharam o vício.
Pirada, 05 Set. 1965
Agora em Setembro parece que entrámos no rigor da época das chuvas. Elas que até aqui tinham abrandado recomeçaram, não com tanta força, mas com mais persistência. Depressa ficaremos com as estradas totalmente impraticáveis com a lama que se vai formando.
E de cada vez temos menos viaturas. Está tudo a rebentar pelas costuras. Até o motor da luz já avariou e ficámos a chuchar no dedo, quando ontem apareceu por aqui uma equipa com uma magnífica máquina de projectar de 16 mm, dos Serviços de Cinema do Exército, para fazerem uma sessão para a malta e a energia eléctrica, só com o Petromax!
Pirada, 11 Set. 1965
Acabo de vir de casa do M. Santos, onde fui jantar juntamente com o capitão que, felizmente já cá está. Chegou ontem e fui eu próprio buscá-lo a Nova Lamego.
Por enquanto parece ainda um pouco abananado com a mudança da Metrópole para aqui e só me deixa voltar para Paúnca segunda-feira (hoje é sábado). Por um lado, isso até me convém, pois terei mais tempo para arrumar convenientemente todas as minhas coisas quando me mudar de vez para Paúnca. Inclusivamente, vou levar o armário guarda-fatos, feito por aquele carpinteiro daqui de que já vos falei, e que me vai ser muito útil.
Além disso ando a elaborar um auto de corpo delito contra um soldado que, num acto de ódio, bebedeira ou pura estupidez, puxou de uma arma contra o 1.º sargento e a disparou dentro da caserna, felizmente sem atingir ninguém, dos que lá se encontravam, quer deitados a descansar ou a fazer qualquer outra coisa. Imediatamente o dominaram e espancaram violentamente, deixando-o quase sem conserto. Se não fôssemos nós, eu e o 1.º sargento, termos interferido, matavam-no à pancada.
E como tudo isto sucedeu antes do regresso do capitão, ainda tive de ser eu a mandá-lo prender e proceder depois ao respectivo auto, o que certamente lhe trará uns anos de prisão em algum presídio militar. Poder-se-á dizer que vou estragar a vida do rapaz, mas nesta situação não se pode transigir com nada que se assemelhe. Se já receamos as balas do IN, só nos faltava recear também as balas dos próprios camaradas.
Quanto ao capitão continua estranho como sempre, querendo agradar a Deus e ao Diabo. Ficou aflito, quando lhe disse ter deixado de fazer a Ronda nocturna à volta da povoação com uma esquadra (meia Secção). Eu tinha simplesmente resolvido acabar com aquilo, por ter chegado à conclusão que afinal era apenas uma inútil sobrecarga de trabalho para os soldados e que, além disso, em caso de um ataque súbito, esses homens correriam o sério risco de ficarem desligados do quartel.
Mas o capitão, sempre receoso daquilo que só existe na cabeça dele, ontem à noite revogou logo a minha ordem em vez de uma Ronda mandou sair duas. Os soldados já começaram a dizer:
- Pronto, chegou o nosso capitão, começaram as guerras!
Ainda bem que segunda-feira me escapo para Paúnca.
---///---
A filha mais nova do M. Santos fez oito anos e houve grande festa lá em casa. Ficámos todos muito
alegres como não podia deixar de ser. Eu ainda fiz uma retirada a tempo mas o médico e alguns furriéis teimaram em ficar mais algum tempo. Acabaram a cantar e a gritar desalmadamente no meio da praceta. Tive de os mandar calar à força e o furriel enfermeiro tropeçou e deu um valente tombo. No dia seguinte andava de braço ao peito. Foi uma risota.
Paúnca, 19 Set. 1965
Estou em Paúnca morrendo de tédio, pois isto está cada vez mais monótono. Dois dos furriéis foram de férias e quase não tenho ninguém com quem conversar. Passo os dias metido no quarto a ler ou a ouvir os meus velhos discos de jazz.
Mas anteontem e ontem as coisas aqueceram um pouco e a vida quebrou a rotina.
Depois de ter feito um patrulhamento a pé até uma tabanca desconhecida, metida no meio do matagal mais denso que já conheci, quando regressava ao quartel, recebi pela rádio, uma ordem do capitão para que eu, no dia seguinte, passar também a comandar o pelotão do Castro que, ele me mandaria para aqui. Teríamos como missão fazer o reconhecimento de umas regiões a Sul de Paúnca. Como o combinado, logo de manhã bem cedo estava à espera deles. Fomos até à tabanca de Mansajã, mas as picadas não possibilitaram o trânsito das nossas viaturas (dois camiões pesados) e começámos a ficar atolados de tal maneira que não pudemos prosseguir mais. Ficámos imobilizados de vez.
Para maior azar recomeçou a chuva e quando digo chuva, quero mesmo dizer chuva. Chuva diluviana que transformou tudo no mais vasto, profundo e viscoso lamaçal. Para continuação da desgraça a porcaria do rádio avariou-se e só na manhã do dia seguinte, depois de ter conseguido enviar, por um portador, um bilhete escrito ao nosso capitão, é que finalmente nos foram buscar, pois os nossos carros ficaram de tal maneira enterrados na lama que só foi possível arrancá-los de lá com um guincho.
Tivemos de passar a noite na tabanca, cujo
jarga, decerto amedrontado com a presença de tanta tropa, desfez-se em amabilidades connosco. Cedeu até a cama dele para eu dormir. Pôs a palhota à minha disposição e foi dormir para outra. Todos os habitantes tomaram como ponto de honra, acolher em cada uma das suas casas, um dos nossos, pelo menos. Molhados até aos ossos como estávamos, completamente estafados, não demorámos a aceitar.
Logo de manhã apareceram a oferecer laranjas e a mim chegaram a oferecer leite fervido com açúcar e ovos cozidos que, ainda reparti pelos quatro furriéis que me acompanharam. Como só tínhamos levado ração de combate para o almoço, pois contávamos estar de volta, ao princípio da noite, o facto de ficar sem comer, sem rádio, completamente exaustos com o esforço de desatolar as viaturas, completamente encharcados debaixo daquela chuva diluviana estava a deixar-nos numa situação muito precária, agravada ainda mais pela sensação de estarmos a participar numa movimentação totalmente gratuita. Ninguém conseguia descortinar qual o interesse ou o motivo de tão inusitado patrulhamento.
Quando conseguimos regressar, eu a Paúnca e os restantes, a Pirada, já eram 10H00 de hoje.
Portanto imagine-se a sofreguidão com que devorámos as laranjas e os ovos cozidos que aquele pobre, mas acolhedora gente, nos ofertou no meio de tantas vénias e sorrisos Ficámos tão sensibilizados que, na despedida resolvemos retribuir o melhor que podíamos.
Foi um belo e comovente espectáculo, ali no meio de uma clareira, no meio de uma mísera e ignorada aldeia, perdida algures do interior do mato mais negro da Guiné, ver um pequeno grupo de soldados brancos, desgrenhados, enlameados e sujos, alinhar-se com todo o garbo e aprumo para, em formatura e, perante o espanto de toda a população, proceder à cerimónia de apresentar armas, enquanto eu abraçava o régulo que embaraçado agradecia também, extraordinariamente comovido, a oferta que eu lhe fazia da minha camisola interior, um bem que ele considerou como a coisa mais valiosa que já lhe tinham dado.
Após a ordem de destroçar, com um forte batimento do pé esquerdo, com toda a
cagança, foi então um correr desenfreado para a única viatura operacional, após termos finalmente recebido socorros de Pirada. Com jeito, coubemos todos e foi quase com aquele alívio que sentíamos quando regressávamos a Bissau, depois de mais uma daquelas operações de triste memória que, nos fizemos de novo à estrada, de regresso a
casa, aos nossos aquartelamentos.
A primeira coisa que fiz quando cheguei a Paúnca, foi despir-me, lavar-me e deitar-me a dormir. Dormi quase todo o dia e agora à noite ainda tenho o corpo dorido, efeito também dos outros 15 km a pé de anteontem.
- Que rico fim-de-semana, disseram os soldados.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965