Caros Camaradas, Luís Graça, Virgílio Briote, Carlos Vinhal, Eduardo Magalhães:
Apresenta-se o ex-1.º Cabo Manuel Alberto Costa Marinho, do 1.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, comissão em Nema/Farim, Binta, em 1972/74.
É com enorme sentido de gratidão, extensível aos restantes colaboradores do blogue e a todos os tertulianos da Tabanca Grande, que me dirijo, pela primeira vez.
Mais vale tarde que nunca.
Como ex-combatente da Guiné, não posso ficar indiferente ao que de melhor temos neste País para testemunhar o que foi a Guerra Colonial, mais concretamente a da Guiné, vivida e contada pelos seus protagonistas, por isso mais uma vez, um muito obrigado pelo excelente trabalho que podemos testemunhar.
E antes de mais peço a admissão na “Tabanca”, certo que já o poderia ter feito, mas só agora julgo oportuno, pelo facto (se calhar egoísta) de estar a ajudar uma sobrinha a fazer um trabalho sobre a Guerra Colonial, foi a miúda, que me incentivou a contar as minhas vivências na Guiné, depois de consultar muitas vezes o blogue, e sabendo que estive no inferno de Guidaje, praticamente em todas as suas incidências.
Como muitos de nós já o disseram, é penoso lembrar o que já estava na penumbra da memória, mas acho valer a pena este esforço, porque entendo que uma parte muito importante das nossas vidas ficou para sempre na Guiné, numa Guerra da qual eu não me envergonho de ter participado, e sou dos que sabiam minimamente para o que iam.
Depois porque ao longo destes anos (e já são 35), somos vergonhosamente ostracizados por todos os poderes instituídos neste País, que foram coniventes com o apagar da memória colectiva, de tudo o que diga respeito à Guerra Colonial, e mais grave do que isso, transformando os que por razões várias desertaram, em heróis, e nós que combatemos, só nos falta pedir desculpas por ainda estarmos vivos a contar (dissecar) esta guerra.
Pessoalmente, sinto-me ofendido com a imagem redutora que tem sido dada às gerações que se seguiram, não quero louvores, mas exijo respeito pelos que morreram, e por todos os que ficaram marcados por ela para sempre.
Desculpa, camarada Luís, este desabafo, corta tudo o que achares necessário, porque sinto esta revolta surda sempre que abordo esta questão.
Quero saudar muito especialmente os camaradas Amílcar Mendes (*) da 38.ª de Comandos, Victor Tavares da 121 dos “Páras” e o Albano M. Costa da CCAÇ 4150, os dois primeiros que descrevem operações de combate e o Albano que me fez rever Binta, peço desculpas ao omitir mais camaradas, sei que os há que viveram Guidaje e escreveram sobre esse fatídico mês, os Fuzileiros por exemplo.
Como também não desejo que outros contem a Guerra por mim, vou descrever o ataque à primeira coluna para Guidaje, que como é sabido não chegou ao destino.
A nossa Companhia estava sediada desde meados de Janeiro em Nema, aquartelamento avançado de Farim, com dois GComb, o 1.º e o 2.º os outros dois, 3.º e 4.º em Binta.
No dia 8 de Maio, o 1.º GComb recebe ordens para juntamente com um Grupo da Companhia 14.ª de Farim, escoltar uma coluna de abastecimento, 2 Berliet mais 2 Unimogs com armamento e mantimentos para socorrer um aquartelamento que era Guidaje, e do qual apenas sabíamos que era flagelada com bastantes ataques de morteiros.
De noite, em Nema avistavam-se os clarões dos rebentamentos e ouviam-se, ainda que remotamente, os estrondos das explosões.
Deslocámo-nos de tarde para Binta, fortemente armados, escoltando as viaturas carregadas. O trajecto foi feito sem problemas e quando começava a findar o dia, a ordem de avançar para Guidaje foi dada já começava a anoitecer, quando esperávamos seguir apenas ao raiar o dia seguinte. Havia apreensão, porque escoltar viaturas de noite era complicado já que nos retirava a mobilidade necessária em caso de ataque.
Avançamos com os picadores na frente da coluna para a detecção de minas enquanto foi possível, depois foi dada ordem para a subida para as viaturas, porque já não se via para fazer a picagem, e foi a primeira viatura, a fazer de rebenta-minas.
O roncar dos motores das viaturas, com as luzes acesas, fazia-nos temer o pior, até que aconteceu o rebentamento da mina na primeira Berliet, cerca das 19 horas e não às 15 como publicação recente editou, causando desde logo dois feridos, entre os quais o nosso Alferes que comandava a coluna.
Depois dos saltos para o chão dos que seguiam nos Unimogs após o rebentamento da mina, ficamos emboscados, e apenas víamos o camarada à nossa esquerda e o outro à direita. Cerca de 10 a 15 minutos depois, o restolhar de passos no mato, vindo do nosso lado esquerdo obrigou muitos de nós a fazer a respectiva rotação, porque de imediato começou o primeiro ataque, e único desse dia.
O IN avançou até à picada, disparando rajadas curtas e, dada a proximidade, chegando eu a divisar na noite a silhueta dum IN de tão próximo eles se aproximaram, provávelmente esperando o efeito de desorientação da nossa parte, (posteriormente soubemos que estavam emboscados mais à frente com a picada cortada por abatises), o rebentamento da mina A/C, apenas precipitou os acontecimentos, a julgar pelo que aconteceu depois, ainda podia ser pior.
Também RPGs LGFOGs e MORTs foram utilizados no ataque.
Depois de intenso fogo de resposta da nossa parte, houve a retirada estratégica do IN para logo de seguida lançarem very-lights e granadas que iluminaram a picada, no sentido de medirem a extensão da nossa coluna.
Este primeiro contacto foi de 15 a 20 minutos. Tivemos de pernoitar no local sem possibilidades de retirada, pois não era possível retirar as viaturas, ficando com a desvantagem de o IN ter tempo de montar a sua estratégia de ataque durante a noite para nos emboscarem, com mais precisão.
Ao raiar o dia 9 de Maio somos novamente atacados, sofremos logo o primeiro morto, e durante cerca de 4 a 5 horas os ataques foram ininterruptos, atacavam-nos revezando-se, ora do lado direito, ora do esquerdo da picada, causando-nos mais 3 mortos e bastantes feridos e, como no local o mato era denso, os estilhaços dos RPGs e LGFs fizeram-nos muitos estragos.
Era um cenário desolador e trágico o que nos rodeava, até pelo facto de estarmos rodeados de camaradas feridos, alguns com gravidade, eu apenas fui carimbado com pequenos estilhaços sem gravidade, mesmo perante esta situação limite, resistíamos, já tínhamos experiência de combate, mas isto era inimaginável.
Nem o apoio de fogo aéreo conseguiu aliviar a pressão. Sem munições e muito desgastados física e psicológica, e já no limite, fomos socorridos por forças de Binta que nos ajudaram a retirar e resgatar os feridos, aguentamos até onde foi humanamente possível, e é com mágoa que relembro a impossibilidade da retirada dos nossos mortos, 1 do meu Grupo, 1 da 3.ª do meu Batalhão, e 2 da 14.ª.
Hoje tenho a impressão que o IN, já nesta fase, esperava a nossa retirada para o saque das viaturas.
A demora na chegada de reforços contribuiu, na minha opinião, para que tal acontecesse, e a prioridade eram os feridos, a ordem de destruir as viaturas, de imediato (?)... é ainda hoje um mistério para mim, porque havia feridos junto às viaturas.
Mas é a agonia e o sofrimento atroz do meu camarada, que atingido gravemente, por duas vezes, acabou por morrer, mau grado todos os esforços, feitos debaixo de fogo do IN pelo nosso enfermeiro para atenuar o seu sofrimento, e perante a nossa impotência para o retirar. É o meu maior pesadelo de guerra até morrer, honra à sua memória.
Infelizmente fomos nós a sofrer esta emboscada, que se não foi a maior, seguramente foi das piores que aconteceram na Guiné, e deu início ao fatídico mês de Maio de Guidaje.
Mais tarde se o entenderem, direi o que penso sobre o resgate dos corpos.
Omito os nomes dos meus camaradas mortos por razões de respeito.
Algumas clarificações que valem o que valem a esta distância quando a memória começa a falhar, mas este testemunho é o de quem viveu praticamente todas as incidências de e em Guidaje, que apenas e só, pretende dar mais um passo na reconstituição dos factos.
Depois falarei sobre a minha chegada a Guidaje integrado na última coluna, do dia 29, e de alguns episódios que ocorreram nesse mês.
Nota pessoal
Todos nós sabemos a importância das forças especiais de combate na resolução do conflito Guidaje, concretamente dos Comandos, dos Páras e Fuzileiros (acompanhamos todos eles durante esse mês), mas foi a 38.ª de Comandos, com 2 GComb que na coluna seguinte, dia 10, também com a presença do nosso 2.º Grupo, foi a primeira força de tropa especial a chegar a Guidaje e a tomar contacto com o que se tinha passado connosco.
O camarada Amílcar Mendes tem razão, aproveito para o felicitar pela coragem (não fosse ele comando), e pela forte carga emocional ao descrever o que viu no dia 10, e pelas suas crónicas de guerra, na minha modesta opinião, são de consulta obrigatória para quem viveu Guidaje, ou para estudar esse período. Mais tarde, se assim o entenderem, darei o testemunho do que vi quando voltaram, dia 13.
Um forte abraço para todos vós.
Porto, Setembro de 2009-09-01
2. Comentário de CV:
Caro camarada Manuel Marinho, sê bem-vindo à nossa Caserna Virtual e aceita as minhas desculpas por demorar tanto tempo a franquear-te esta porta que afinal nem existe.
A descrição que fazes dos acontecimentos em Guidaje, vividos pessoalmente por ti, fazem arrepiar, tal é a imagem que consegues passar. Muitos de nós vivemos situações mais ou menos parecidas, mas como essa emboscada do dia 9 de Maio de 1973, penso que não. Foram uns dias terríveis para as NT, pois o IN quis fazer ronco nos três Gs, Guidage, Guileje e Gadamael.
Acabei a minha comissão no primeiro trimestre de 1972, e vim convencido que me estava a livrar de uma guerra que caminhava no pior sentido, na hora certa.
Que me desculpem aqueles que me precederam, mas foi com alívio que vi o avião que me (nos) trouxe de volta à Metrópole, a levantar o trem do chão da Guiné.
É minha convicção que não havia desfecho possível para aquela guerra, a não ser uma saída política, como aliás veio a acontecer.
Caro Manuel, tudo o que possas contar desse tempo e da tua vivência em Guidaje, será bem-vindo, porque, como quem vai à guerra dá e leva, também tivemos os nossos maus bocados, e esses devem ser do conhecimento daqueles que por algum motivo não viveram o mesmo que nós, naquele território tão pequeno, mas de guerra tão intensa.
Com o meu renovado pedido de desculpas pela demora, que não denota falta de consideração da minha parte, mas impedimento por afazeres caseiros (manutenção do Blogue), recebe um abraço em nome da tertúlia.
CV
__________
Notas de CV:
(*) Vd. postes de Amílcar Mendes de:
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
24 de Outubro de 006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4915: Tabanca Grande (172): Carlos Azevedo, ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)