1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 13 de Março de 2013:
Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.
Votos de muita saúde e bem-estar, sempre, só que desta vez desta vez acompanhados de mais um Salpico que foi buscar às minhas memórias.
Passem bem, muito bem mesmo.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
24 - O Sampaio bem soube armadilhar os seus tomates,… e não é que deu mesmo estouro!
O amigo do Sampaio, o cabo fiel da arrecadação, e a quem bem podíamos de alcunhar de “mão para toda a obra”, pois passava a vida a engendrar isto e aquilo, e diga-se de passagem, que as suas obras saíam sempre perfeitas e sobretudo de boa utilidade.
Era realmente possuidor de muita habilidade e sobretudo de grande poder de imaginação. Uma espécie de self made man. Na arrecadação nada falhava.
Muita habilidade para tudo, só que a sorte nem sempre o acompanhou, como veremos adiante.
Entre as diversas engenharias dele, sobressaiu a armadilha nas suas plantações de tomates, plantações estas que ele tinha ali mesmo ao lado da arrecadação. Soube ele bem aproveitar aquela meia dúzia de metros quadrados, com muito esmero e dedicação, e então aquela terra era tão fértil!… Quantas vezes por ano pensava o Sampaio fazer a safra!
Mas, assim que os tomates começaram a aparecer maduros (e até mesmo ainda longe disso), começaram também a aparecer os seus apreciadores, oportunistas e amigos do alheio, e que, a coberto da noite, vinham lá de visita e… principalmente de colheita.
Então o amigo Sampaio vê a improficuidade do seu trabalho e arranja lá maneira de pregar um grande susto a tal clientela e, vai daí armadilha a plantação com detonadores, a começar pela pequena cancela de madeira que era a porta (?) da horta, já que em toda a volta havia uma sebe que tornava mais difícil o acesso à pequena mas cuidada plantação. Os detonadores não demoraram a estoirar apanhando os mais incautos e os tomates foram assim preservados; os que ficaram, naturalmente.
Quase se pode dizer que o Sampaio mal virou as costas após montar os detonadores, eles estouraram…
Meter-se com o bom do Sampaio não era assim tão fácil sair a ganhar.
Recordo-me de uma pequena mesa em madeira que ele fez para o meu quarto, e do Luís José, ainda em Bissorã, ainda nós com muito pouco tempo de Guiné, mesa essa toda feita à mão com ajuda de rudimentar ferramenta, o que logo ali mostrou toda a sua habilidade.
Então o Sampaio, numa das suas engenhocas, havia de pagar um alto tributo, pois aconteceu o que ele menos esperava, e que também passo a contar:
O Sampaio, na qualidade de responsável pela arrecadação do diverso material, incluindo munições, era amiudadas vezes incomodado de noite, quando já se deleitava com um sono retemperador. Isto já no Olossato (tínhamos estado um tempo em Bissorã). Assim, de vez em quando, lá aparecia um “fora d’horas” a importuná-lo, ou a pedir óleo para limpar a arma, ou a pedir munições para a operação no mato que se ia fazer, ou isto ou aquilo. Às vezes parecia que o objetivo era alvoraçar o bom do Sampaio
O Sampaio, às vezes, primeiro que se visse despachado era um dia de juízo. Acordar em sobressalto e por coisa que não se justificava, a maior parte das vezes, não, não podia continuar. Até parecia que faziam de propósito, até parecia…
Então o Sampaio há que pôr a imaginação a trabalhar e tratou de arranjar o antídoto para aquele estado de coisas e pôs mãos à obra. Coloca um latão, daqueles de 25 litros, cheio de água em cima da porta da arrecadação e ata-lhe um fio que se estendia até à sua cama, o que ainda distava uns bons metros.
Assim, ele, sem se levantar, e até sem ter que se movimentar muito, comandava por meio do dito fio, o movimento do latão. Assim que alguém o viesse chatear a horas impróprias e desadequadas, ele, da sua cama, sem se levantar, puxava primeiro o fio que abria a porta (este sempre existiu) e depois já com o ilustre e inoportuno visitante do lado de dentro, puxava um outro fio que fazia virar o latão e despejar toda a água pela cabeça abaixo do insolente cliente. Bom, até aqui tudo muito certo, até porque o Sampaio tinha direito ao seu descanso como qualquer comum dos mortais, e alguém teria de levar uma ensinadela, agora o que nunca passou pela cabeça do Sampaio era que o primeiro cliente a levar com a água pela cabeça abaixo seria, nem mais nem menos e, vejam lá (!)… o Capitão!!
Isso mesmo: O Comandante da Companhia.
De perto de 200 homens havia de aparecer o que ele menos contava.
O Sampaio naquela noite de estreia, com tudo preparadinho e afinadinho ao pormenor, como só ele o sabia fazer, deitou-se concerteza com um sorriso a aflorar-lhe os lábios, imaginando o que queria gozo, todo encharcado.
Aconteceu porém, que naquela noite, que já tinha principiado há muito, o Capitão, em pijama tropical, resolve ir à arrecadação para dar um recado ao Sampaio, o que nunca aconteceu ou muito raramente acontecia. Bateu à porta, uma, duas vezes, esta abre-se e de seguida catrapus, temos o Capitão molhado dos pés à cabeça. E ele que ia só com um fino pijama sobre a pele.
Foi mesmo em cheio ou aquilo não fosse projeto do Sampaio. Eu, claro, não vi, mas faço uma pequena ideia da cara do Sampaio ao constatar quem foi o primeiro a morder o isco.
O Capitão, é que não gostou da brincadeira, e trata logo de saber quem fez aquilo e no final das contas também constatou que havia cúmplices. O castigo foi fazer alinhar o Sampaio e os seus acólitos em duas operações ao mato, entre eles o bom do Zé corneteiro
O Cabo Zé corneteiro, (falecido cá já há alguns anos - paz à sua alma-), que também tomava conta da nossa messe, e que tinha sido um dos colaboradores do Sampaio, nunca mais deixou de tremer, ao saber da sua sorte.
O quê?, ir para uma operação no mato, coisa que tal nunca tinha acontecido, nem estava previsto acontecer? Afinal ele era só corneteiro: "Oh meu Furriel, como é que eu faço?” - pergunta o sobressaltado do Zé.
Apanhou por tabela o engenho mal sucedido, embora moralmente bem intencionado, do “engenheiro” e seu colega de apartamento, o Sampaio
O Zé até fez sandes de ovos estrelados para levar para o mato com o “medo de poder enfraquecer!…” (palavras dele)
Pois é verdade, o Capitão não condescendeu e eles cumpriram mesmo o castigo.
Aquela engenhoca desta vez tinha ficado cara ao habilidoso do Sampaio.
O Sampaio, esse, de sorriso simples e constante, esqueceu-se deste por uns dias. Mas só por aqueles que andou por o mato.
O sorriso que o Sampaio ainda hoje o tem (semelhante ao da Gioconda) e que logo se amplia quando eu lhe lembro o episódio dos tomates, nos Convívios que ainda hoje e sempre fazemos.
À hora da partida para o mato, já pela noite dentro, era vê-los aos dois ali alinhadinhos junto ao “cavalo-de-frisa” e metidos bem debaixo dos capacetes, como bons operacionais. Muita gente à frente deles na fila indiana. Pelo menos puderam escolher a posição. Impressionou-me eles a tremerem quando frio era coisa que não existia naquelas paragens, e a cor deles também não era das melhores para além, claro, da inusitada tremedeira.
Mas voltaram sãos e salvos às lides do Aquartelamento: o Zé volta a tocar a gaita com todo o vigor ao alvorecer e com rara mestria, e o Sampaio voltou a sorrir e a atender o pessoal na Arrecadação mas aqui já com cuidados recíprocos.
Quanto à plantação dos tomates não mais valeu a pena. Agora só dava para coçar… a história.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 19 de março de 2013
Guiné 63/74 - P11277: Do Ninho D'Águia até África (59): A saída de Mansoa com destino ao cais de embarque (Tony Borié)
1. Quinquagésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
O Cifra tinha feito pelo menos quatro vezes a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, pois as dobradiças e fechadura, há muito que se tinham partido e desfeito com a ferrugem, pois naquela altura sempre havia falsas notícias de regresso, mas um dia, o comandante reúne todo o comando, que está na foto em baixo com o Cifra a dizer se será desta que regressa, que foi tirada pouco antes de deixarem o aquartelamento de Mansoa, como podem ver era um comando sem armas, mas que infelizmente directa ou indirectamente dava ordens para matar, junto do carro da psico-social, e emocionado, diz entre outras coisas:
- Obrigado a todos, e vamos regressar na próxima semana. O comando que nos vai substituir, já saiu de Portugal e regressaremos no mesmo barco.
Dois dias depois volta a reunir o comando e diz, ainda mais emocionado:
- Já não iremos para a semana que vem, pois o comando que vem a caminho foi destacado para outra zona, onde a guerra se está a desenvolver cada vez com mais intensidade, mas prometo-vos que iremos na próxima viagem que o navio “Uige” fizer, têm a minha palavra.
Todos ficaram desolados, menos o Curvas, alto e refilão, quando o Cifra lhe contou, que murmurou:
- Aqui, estou na guerra, mas tenho a vossa companhia, são a família que nunca tive, mas agora que nos vamos separar, é que dou o valor ao que é uma família. Lá, sem vocês, vou ser um desgraçado, sem amigos nem ninguém.
Mas continuando, agora essa mala estava feita, feita de vez.
Estava ao lado da cama e só usava o saco de lona do exército. Ai colocava o resto dos trapos, que era a sua farda do dia-a-dia, tinha uns calções com algumas nódoas, que não eram visíveis a olho nu, pois eram nódoas do medo que o Cifra sentiu algumas vezes, quando eram atacados durante a noite por granadas de morteiro e rajadas de metralhadora, uma camisa e um par de meias rotas na frente, assim como as botas melhores, no fundo do saco, tudo para o tão desejado dia. O resto por cima, era só trapos, e alguns sujos.
Neste momento, tal como os seus companheiros, só pensava em Portugal, na sua aldeia, no seu lugar, era melhor que não se metesse com ele, ou o provocasse, era melhor assim, pois de contrário, iria haver um desastre, pois a sua mente já estava cansada do aquartelamento, do arroz com peixe da bolanha, dos tiros, dos rebentamentos, dos estilhaços, dos abrigos cheios de lama e água suja, da farda camuflada e rota, das ordens, da obediência, onde não podia haver um simples não, em caso de uma provocação, não sabiam como ia responder, pois ainda vivia num cenário onde havia armas e granadas por tudo o que era lugar, que usadas, podiam matar pessoas, e o Cifra, às vezes pensava só para si: Estou com um fraco carácter, estou muito pior que o Curvas, alto e refilão.
No meio de todo este desespero, o tão esperado e desejado dia chegou finalmente e foi ele próprio quem decifrou a mensagem. Não ficou contente nem triste, uma onda de nostalgia percorreu-lhe todo o corpo, fechou os olhos, ergueu as mãos para cima e exclamou emocionado: OBRIGADO!
No dia seguinte, por volta das dez horas da manhã, a coluna militar estava pronta a seguir para a capital, houve alguns abraços de despedida, deu algumas moedas a alguns africanos, que foram seus companheiros, e um último olhar pelo que ajudou a construir, e que nunca lhe pareceu tão selvagem, tal qual um campo de concentração, como na hora da despedida. Os nossos companheiros combatentes têm mostrado fotografias do aquartelamento, mas na altura em que o Cifra o deixou, tinha só cinco pavilhões, ou seja três e mais dois, todos na direcção de Este/Oeste, todo cercado de arame farpado, só com uma porta pequena onde circulavam militares a pé, e uma abertura maior, sem qualquer protecção, virada para a vila, onde entravam ou saíam viaturas militares.
A coluna militar, foto em baixo, antes da ponte de Mansoa, percorreu os setenta quilómetros até à capital, largando o grupo do Cifra no cais. Aí permaneceu dois dias, tempo que durou o desembarque das tropas novas e o embarque das velhas, que era feito em lanchas pequenas do cais para o barco.
O comando a que o Cifra pertencia não chegava a trinta militares, sendo mais de dois terços os militares graduados. Enquanto esperavam pelo embarque, alguns dormiram na fortaleza de S. José da Amura, onde estava a polícia militar estacionada e onde o Governador da província se deslocou, com todo o seu aparato militar, para dar a todos umas insígnias com as cores da bandeira portuguesa, dizendo que representavam a medalha da campanha militar da Guiné, pois não havia medalhas para todos, o Cifra ainda hoje guarda essas insígnias como um “amuleto de boa sorte”.
Todos os haveres dos militares do seu comando estavam num grande monte, quase à entrada do cais de embarque e eram guardados por militares que faziam a sua guarda por turnos, pois iam regressando do interior outras unidades para embarcar, que faziam o mesmo, e deste modo, antes do embarque, quase todo o cais estava ocupado por diversos montes de malas e sacos, era um pandemónio, mas era um pandemónio feliz, pois avistava-se o barco ao longe, que os havia de levar de regresso a Portugal.
Chegou o grupo do Furriel Miliciano, a fumar um cigarro feito à mão, onde vinha o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Marafado, o Mister Hóstia e outros, e a partir daí, o pandemónio, passou a ser maior, estavam vestidos e rodeados de equipamento militar, mas já se sentiam pessoas civis, e andavam pela cidade, bebendo, passeando, e fazendo algumas compras, onde o Cifra comprou uma boina nova, e uns sapatos à sua medida, o Curvas, alto e refilão, caminhando sempre na frente, procurando ser o chefe, dizia:
- É tudo muito lindo, para vocês, mas eu vou perder a minha família, que são todos vocês!.
E num momento em que devia de haver alguma alegria, chorava, e fazia chorar o Cifra e os seus companheiros.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 59
O Cifra tinha feito pelo menos quatro vezes a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, pois as dobradiças e fechadura, há muito que se tinham partido e desfeito com a ferrugem, pois naquela altura sempre havia falsas notícias de regresso, mas um dia, o comandante reúne todo o comando, que está na foto em baixo com o Cifra a dizer se será desta que regressa, que foi tirada pouco antes de deixarem o aquartelamento de Mansoa, como podem ver era um comando sem armas, mas que infelizmente directa ou indirectamente dava ordens para matar, junto do carro da psico-social, e emocionado, diz entre outras coisas:
- Obrigado a todos, e vamos regressar na próxima semana. O comando que nos vai substituir, já saiu de Portugal e regressaremos no mesmo barco.
Dois dias depois volta a reunir o comando e diz, ainda mais emocionado:
- Já não iremos para a semana que vem, pois o comando que vem a caminho foi destacado para outra zona, onde a guerra se está a desenvolver cada vez com mais intensidade, mas prometo-vos que iremos na próxima viagem que o navio “Uige” fizer, têm a minha palavra.
Todos ficaram desolados, menos o Curvas, alto e refilão, quando o Cifra lhe contou, que murmurou:
- Aqui, estou na guerra, mas tenho a vossa companhia, são a família que nunca tive, mas agora que nos vamos separar, é que dou o valor ao que é uma família. Lá, sem vocês, vou ser um desgraçado, sem amigos nem ninguém.
Mas continuando, agora essa mala estava feita, feita de vez.
Estava ao lado da cama e só usava o saco de lona do exército. Ai colocava o resto dos trapos, que era a sua farda do dia-a-dia, tinha uns calções com algumas nódoas, que não eram visíveis a olho nu, pois eram nódoas do medo que o Cifra sentiu algumas vezes, quando eram atacados durante a noite por granadas de morteiro e rajadas de metralhadora, uma camisa e um par de meias rotas na frente, assim como as botas melhores, no fundo do saco, tudo para o tão desejado dia. O resto por cima, era só trapos, e alguns sujos.
Neste momento, tal como os seus companheiros, só pensava em Portugal, na sua aldeia, no seu lugar, era melhor que não se metesse com ele, ou o provocasse, era melhor assim, pois de contrário, iria haver um desastre, pois a sua mente já estava cansada do aquartelamento, do arroz com peixe da bolanha, dos tiros, dos rebentamentos, dos estilhaços, dos abrigos cheios de lama e água suja, da farda camuflada e rota, das ordens, da obediência, onde não podia haver um simples não, em caso de uma provocação, não sabiam como ia responder, pois ainda vivia num cenário onde havia armas e granadas por tudo o que era lugar, que usadas, podiam matar pessoas, e o Cifra, às vezes pensava só para si: Estou com um fraco carácter, estou muito pior que o Curvas, alto e refilão.
No meio de todo este desespero, o tão esperado e desejado dia chegou finalmente e foi ele próprio quem decifrou a mensagem. Não ficou contente nem triste, uma onda de nostalgia percorreu-lhe todo o corpo, fechou os olhos, ergueu as mãos para cima e exclamou emocionado: OBRIGADO!
No dia seguinte, por volta das dez horas da manhã, a coluna militar estava pronta a seguir para a capital, houve alguns abraços de despedida, deu algumas moedas a alguns africanos, que foram seus companheiros, e um último olhar pelo que ajudou a construir, e que nunca lhe pareceu tão selvagem, tal qual um campo de concentração, como na hora da despedida. Os nossos companheiros combatentes têm mostrado fotografias do aquartelamento, mas na altura em que o Cifra o deixou, tinha só cinco pavilhões, ou seja três e mais dois, todos na direcção de Este/Oeste, todo cercado de arame farpado, só com uma porta pequena onde circulavam militares a pé, e uma abertura maior, sem qualquer protecção, virada para a vila, onde entravam ou saíam viaturas militares.
A coluna militar, foto em baixo, antes da ponte de Mansoa, percorreu os setenta quilómetros até à capital, largando o grupo do Cifra no cais. Aí permaneceu dois dias, tempo que durou o desembarque das tropas novas e o embarque das velhas, que era feito em lanchas pequenas do cais para o barco.
O comando a que o Cifra pertencia não chegava a trinta militares, sendo mais de dois terços os militares graduados. Enquanto esperavam pelo embarque, alguns dormiram na fortaleza de S. José da Amura, onde estava a polícia militar estacionada e onde o Governador da província se deslocou, com todo o seu aparato militar, para dar a todos umas insígnias com as cores da bandeira portuguesa, dizendo que representavam a medalha da campanha militar da Guiné, pois não havia medalhas para todos, o Cifra ainda hoje guarda essas insígnias como um “amuleto de boa sorte”.
Todos os haveres dos militares do seu comando estavam num grande monte, quase à entrada do cais de embarque e eram guardados por militares que faziam a sua guarda por turnos, pois iam regressando do interior outras unidades para embarcar, que faziam o mesmo, e deste modo, antes do embarque, quase todo o cais estava ocupado por diversos montes de malas e sacos, era um pandemónio, mas era um pandemónio feliz, pois avistava-se o barco ao longe, que os havia de levar de regresso a Portugal.
Chegou o grupo do Furriel Miliciano, a fumar um cigarro feito à mão, onde vinha o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Marafado, o Mister Hóstia e outros, e a partir daí, o pandemónio, passou a ser maior, estavam vestidos e rodeados de equipamento militar, mas já se sentiam pessoas civis, e andavam pela cidade, bebendo, passeando, e fazendo algumas compras, onde o Cifra comprou uma boina nova, e uns sapatos à sua medida, o Curvas, alto e refilão, caminhando sempre na frente, procurando ser o chefe, dizia:
- É tudo muito lindo, para vocês, mas eu vou perder a minha família, que são todos vocês!.
E num momento em que devia de haver alguma alegria, chorava, e fazia chorar o Cifra e os seus companheiros.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)
Guiné 63/74 - P11276: Convívios (501) 14º almoço/convívio da CCS do BCAÇ 1861 (Buba, 1965/67): Sertã, 27 de abril de 2013 (Boaventura Videira)
1. Mensagem de Boaventura Alves Videira, que foi enfermeiro no BCAÇ 1861, Buba, 1965/67 [, foto à esquerda], enviada através do endereço do nosso camarada Júlio César [membro da nossa Tabanca Grande desde Julho de 2007, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 / BCAÇ 2905, Cacheu, 1970/71]:
Agradeço publicação no nosso blogue
Um abraço
Boaventura Videira
“Realiza-se no próximo dia 27 de Abril, o 14º almoço/convívio da CCS do Batalhão de Caçadores 1861.
O almoço/convívio será no Ponte Velha Restaurante, na Sertã.
Os interessados em participar devem contactar Boaventura Videira, pelo telefone 964534332
Participa”
Contactos:
Participa”
Contactos:
Boaventura Alves Videira
Praça da República, 26
4815-475 Vizela
Telemóvel 964 534 332
Praça da República, 26
4815-475 Vizela
Telemóvel 964 534 332
2. Comentário do editor
Camarada Videira: Espero que o vosso encontro seja mais uma grande oportunidade de reforçar os laços de amizade e camaradagem do pessoal da tua CCS/BCAÇ 1861, que passou por Buba, entre 1965/67. Vejo, com pena, que não há nenhum representante do teu batalhão - salvo erro - na nossa Tabanca Grande. Vou pedir ao Júlio César que formalize o teu pedido de ingresso nesta grande família dos amigos e camaradas da Guiné. Tu mereces, de resto. Tens sido o organizador dos convívios dos últimos dos teus camaradas da CCS. Fico à tua espera. Manda as duas fotos da praxe mais um história do teu tempo de Buba. Um Alfa Bravo. LG
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PS - Já agora diz-nos onde e quando tiraste a foto que reproduzimos acima (e é a única que temos de ti). Terá sido em 1965, em Cufar ? A "bicha" que tu trazes pendurada ao pescoço parece tratar-se de uma pitão africana, uma "Pyton sebae", popularmemte conhecida como "irã cego". na Guiné-Bissau... Pode atingir os 6 metros de comprimentos, não é venenosa e não constitui um perigo real para os seres humanos... A nossa malta na Guiné chamava-lhe erradamente jibóia... As jiboias só existem no Novo Mundo (América Central e do Sul).
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PS - Já agora diz-nos onde e quando tiraste a foto que reproduzimos acima (e é a única que temos de ti). Terá sido em 1965, em Cufar ? A "bicha" que tu trazes pendurada ao pescoço parece tratar-se de uma pitão africana, uma "Pyton sebae", popularmemte conhecida como "irã cego". na Guiné-Bissau... Pode atingir os 6 metros de comprimentos, não é venenosa e não constitui um perigo real para os seres humanos... A nossa malta na Guiné chamava-lhe erradamente jibóia... As jiboias só existem no Novo Mundo (América Central e do Sul).
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Nota do editor:
Último poset da série > 12 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11245: Convívios (500): Reportagem da reunião da magnífica Tabanca da Linha levado a efeito no passado dia 7 de Março (José Manuel M. Dinis)
Guiné 63/74 - P11275: Meu pai, meu velho, meu camarada (37): Memórias do Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, no dia do pai...
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > "Depois da pareada, o desfile das viaturas. No dia 14 de agosto de 1942. Algumas das tantas autoambulâncias e outras viaturas. Mindelo. São Vicente". [Marca, modelo e ano... Alguém sabe ?]
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > Igreja de S. Vicente [, julgo chamar-se N. Sra. da Luz]. À esquerda, a Casa do Leão, na época uma importante casa comercial. Edifício hoje classificado e recuperado [LG].
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "A antiga cãmara [municipal] de Mindelo que hoje é hospital de soldados. Julho de 1942. Luís Henriques". [É hoje de novo, o edifício da Câmara Municipal do Mindelo, LG]
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > "Homenagem do Mindelo a Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Cabos da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do R.I. 5. Luís Henriques" [`, último do direita, na primeira fila]. [Há quem confunda este monumento com a Àguia do Benfica...].
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1941 >"Lazareto em festa. 1/12/1941. Canto coral no dia da Restauração de Portugal. Lazareto. São Vicente. Luís Henriques".
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1941 > "Uma das partes mais brilhantes do programa da festa da restauração: a ginástica. No dia 1 de dezembro de 1941. Lazareto, São Vicente, Cabo Verde. Luis Henriques".
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "Um aspeto da missa campal no dia da nossa festa no Lazareto, 23 de julho de 1942. Luís Henriques"
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1941 > "Apresentando armas à Bandeira Nacional no dia da Restauração. 1/12/1941. Lazareto. Ao fundo, o Monte Cara. São Vicente. Cabo Verde. Luís Henriques"
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "Um número de ginástica, feito pela 2ª Companhia, que deixou boa impressão à assistência. Lazareto en festa, aos 23 de julho de 1942. Luis Henriques".
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Lazareto > 1942 > "Um dos números representados pela minha companhia no dia da festa do aniversário da nossa chegada a São Vicente. 23/7/1942. Luís Henriques".
Lourinhã, estrada Lourinhã-Peniche, 7/9/1942... Uma fotografia com amigos, contemporâneos do m,eu pai... Nenhum deles está hoje vivo, se bem os reconheço. O segundo do lado esquerdo, é o tio, irmão do meu pai (dois anos mais novo) e meu saudoso padrinho, Domingos Henriques Severino. O quarto é o Carlos Fidalgo e o quinto o José Frade. A foto, enviada para Cabo Verde, está assinada pelo Domingos Severino.
1. Lembrando o meu saudoso pai, meu velho e meu camarada, Luís Henriques (1920-2012), e em homenagem a todos os nossos pais, no dia do pai, 19/3/2013.
[Foto à esquerda: Luís Henriques, em Candoz, c. 1988/89, com o seu neto, João Graça. Foto de L.G.].
Luís Henriques (1920-2012) foi 1º cabo inf, nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão, Regimento de Infantaria nº 5 (Caldas da Rainha), mais tarde integrado no RI 23. Esteve no Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, entre Julho de 1941 e Setembro de 1943. Alguns dos sítios da ilha de que ele se recordava bem, até ao fim da sua vida: Mindelo, Lazareto, Matiota, São Pedro, Calhau, Monte Verde, Monte Cara, Ribeira São João... Falava sempre com muita ternura e saudade deste seu tempo de vida, apesar das duras condições em que viveu na ilha (26 meses, 4 dos quais hospitalizado). As fotos (e as legendas) que reproduzimos acima, são do seu álbum.
Fotos: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
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Nota do editor:
Último poste da série > 11 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10924: Meu pai, meu velho, meu camarada (36): Fotos recentes do Mindelo, em memória do meu avô Luís Henriques (1920-2012) (João Graça)
Guiné 63/74 - P11274: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (5): Farim (Poema de saudade e nostalgia), K3 (Homenagem às mulheres que tratam da seara da mancarra), Bissau (À janela do HM 241)
Bajuda no Cais de Bambadinca. Quadro a óleo pintado, em 2007, por Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70, e membro da nossa Tabanca Grande. Edição e reprodução, com a devida vénia.
Foto: © Jaime Machado (2008). Todos os direitos reservados.
1. Três poemas Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)... Três poemas de amor e guerra... Para celebrar a primavera que chega e o Dia Mundial da Poesia (21 de março de 2013).
escrito em Farim,
no regresso duma operação arriscada
Como barco naufragado,
Encalhado,
Rolando ao sabor das ondas,
Vou procurar-te ao passado,
Fracassado,
Onde quer que tu te escondas.
Voo nas asas do vento
Porque o amor neste momento
Clama por ti.
Quero-te:
Quero beijar tua boca
E, por saber-te aqui,
Quero beijar teu corpo,
Teus cabelos e teu rosto;
E deixando-te louca,
Inundando-te de amor.
Quero beijar teus seios.
O teu ventre,
E sentir no ar o teu odor a canela!
Quero beijar o teu ninho de langor
E, sem pudor
Provar-te inteira.
Homenagem às mulheres que tratam da seara da mancarra,
no K3
Uma rosa vem beijar-me
Ao peitoril da janela,
E diz que vem beijar-me
Porque eu não vou com ela.
Neste queixume sentido,
E seu perfume diluído
Em nuvens de solidão,
Vai entrando devagarinho,
Até com certo jeitinho,
P'ra não acordar meu coração.
Diz que ele pode ser de outra
Mas que isso não importa,
Que foi quem me viu primeiro,
E estar em lugar cimeiro
Na ordem da sedução;
E, até se eu quiser,
Para mais vezes me ver
Muda-se para outro canteiro...
À janela do Hospital Militar 241,Bissau
Vi-te passar apressada,
Nem chegámos a falar
Mas ias muito calada,
P'ra quem gosta de cantar!
E teu coração abrasado
De tanto amor desperdiçado,
Sendo por mim tão amado,
Que ás vezes chego a pensar
Ser castigo lá do alto!
Por de ti tanto gostar,
E viver em sobressalto
Porque não sei se é reciproco...
Este amor tão verdadeiro,
Deste ser tão altaneiro,
Que não gosta de te ver
tão apressada passares
E, por um momento olhares,
Mesmo sem gostares,
Não passes tão apressada!!!
Como barco naufragado,
Encalhado,
Rolando ao sabor das ondas,
Vou procurar-te ao passado,
Fracassado,
Onde quer que tu te escondas.
Voo nas asas do vento
Porque o amor neste momento
Clama por ti.
Quero-te:
Quero beijar tua boca
E, por saber-te aqui,
Quero beijar teu corpo,
Teus cabelos e teu rosto;
E deixando-te louca,
Inundando-te de amor.
Quero beijar teus seios.
O teu ventre,
E sentir no ar o teu odor a canela!
Quero beijar o teu ninho de langor
E, sem pudor
Provar-te inteira.
no K3
Uma rosa vem beijar-me
Ao peitoril da janela,
E diz que vem beijar-me
Porque eu não vou com ela.
Neste queixume sentido,
E seu perfume diluído
Em nuvens de solidão,
Vai entrando devagarinho,
Até com certo jeitinho,
P'ra não acordar meu coração.
Diz que ele pode ser de outra
Mas que isso não importa,
Que foi quem me viu primeiro,
E estar em lugar cimeiro
Na ordem da sedução;
E, até se eu quiser,
Para mais vezes me ver
Muda-se para outro canteiro...
À janela do Hospital Militar 241,Bissau
Vi-te passar apressada,
Nem chegámos a falar
Mas ias muito calada,
P'ra quem gosta de cantar!
E teu coração abrasado
De tanto amor desperdiçado,
Sendo por mim tão amado,
Que ás vezes chego a pensar
Ser castigo lá do alto!
Por de ti tanto gostar,
E viver em sobressalto
Porque não sei se é reciproco...
Este amor tão verdadeiro,
Deste ser tão altaneiro,
Que não gosta de te ver
tão apressada passares
E, por um momento olhares,
Mesmo sem gostares,
Não passes tão apressada!!!
Nota do editor:
Último poste da série > 17 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11265: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (4): Já não sei quem sou
segunda-feira, 18 de março de 2013
Guiné 63/74 - P11273: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): É guerra é guerra... (será?)
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > À esquerda o nosso tertuliano Silva da CART 1689 com o protagonista desta história, o camarada Dionísio
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > Nesta foto, parece que o Dionísio conta a sua aventura ao Silva, enquanto que de pé, seguem atentamente a narrativa, os camaradas Antero, à esquerda, e o (outro) Silva, à direita.
Fotos (e legendas): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013)
Outras memórias da minha guerra
16 - É guerra é guerra… (será?)
Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, destinava à próxima quadra natalícia.
Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:
– Quem está doente?
Logo a resposta veio célere:
– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.
E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:
– Onde andaste?
– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.
– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.
O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.
Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.
E foi assim:
É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom. Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª Classe, uma vez que já sabia ler.
– Quem está doente?
Logo a resposta veio célere:
– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.
E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:
– Onde andaste?
– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.
– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.
O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.
Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.
E foi assim:
É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom. Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª Classe, uma vez que já sabia ler.
Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.
Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano, no sector dos componentes eléctricos.
Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:
– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.
– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.
– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.
– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.
– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.
– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.
–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.
E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.
Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “LIVRE”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “APURADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR!” Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.
Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um Aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal Ten Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.
Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no Ralis de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.
E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.
Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “LIVRE”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “APURADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR!” Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.
Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um Aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal Ten Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.
Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no Ralis de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.
– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.
E ele iniciou:
– Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.
Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“OP Azimute”), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximamo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.
Avançavam as equipas de 2 de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.
Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?
Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o Sub-Cmdt Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos.
O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:
–Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.
Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça.
Estávamos aquartelados em Brá – Bissau e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o Navio Uíge, que havia trazido mais militares (Bat.1913) e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.
Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.
As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.
Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.
Quando cheguei a Lisboa fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.
Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.
Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.
Avançavam as equipas de 2 de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.
Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?
Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o Sub-Cmdt Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos.
O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:
–Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.
Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça.
Estávamos aquartelados em Brá – Bissau e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o Navio Uíge, que havia trazido mais militares (Bat.1913) e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.
Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.
As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.
Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.
Quando cheguei a Lisboa fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.
Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.
Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.
- *
Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: – O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras.
Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre, programa do conhecido Manuel Alegre.
Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.
Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre, programa do conhecido Manuel Alegre.
Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.
Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.
Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:
–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.
– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.
No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:
– Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!
Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.
Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:
–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.
– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.
No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:
– Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!
Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.
Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:
– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.
Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:
– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?
– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.
– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu Alferes Sampaio Faria.
–Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou 2 vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor/Comando Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo Sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó.
Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op. Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.
– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.
Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:
– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?
– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.
– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu Alferes Sampaio Faria.
–Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou 2 vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor/Comando Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo Sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó.
Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op. Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.
Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta Op., o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.
O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-Furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.
– Entretanto, o Sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra Comissão de serviço.
O Dionísio, chateado, ainda perguntou:
– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?
– Foi a informação que chegou do Quartel-General. – Respondeu o Sargento.
O Dionísio, saiu ao encontro do Capitão.
– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.
– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – Perguntou o Capitão.
– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.
– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação. – Disse o Capitão.
Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rollis Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.
(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).
Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última Operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.
O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.
– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.
_________
- * -
Notas do autor:1 - Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.
2 - Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:
– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.
– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?
– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?
– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.
Foi então que o Dionísio rematou:
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.
Silva da Cart 1689
____________
Nota do editor:
Vd. último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9650: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Promessas
Guiné 63/74 - P11272: Notas de leitura (466): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (4) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2012:
Queridos amigos,
Estamos quase a chegar ao fim desta coletânea de textos sobre a história dos Mandingas, suas lendas e canções, no fundo reproduz-se um conjunto de textos que foram editados pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa.
E esta canção de Cherno Rachide é uma pequena joia de que a Guiné se deve orgulhar.
Um abraço do
Mário
A canção de Cherno Rachide
Beja Santos
Foi minha primeira intenção limitar este pequeno trabalho às 15 lendas que antecedem. Elas tentam esclarecer algumas facetas da mentalidade dos povos Fula e Mandinga na época das lutas tribais.
O símbolo mais válido dessa época era o “judeu”, o trovar que cantava o heroísmo, a valentia e a fidelidade, ao mesmo tempo que vituperava a traição, a cobardia e a fraqueza.
O trovador, na véspera das batalhas, tocava as canções dedicadas a cada um dos guerreiros, convidando-os a declararem as proezas que se propunham cometer no dia seguinte. No momento dos combates, elogiava os intemeratos e insultava os indecisos, sempre tocando, sempre cantando, e levava assim os combatentes à morte, quase diríamos alegremente, arrebatando-os e enlouquecendo-os.
Os tempos mudaram.
O “judeu” cedeu o seu lugar ao educador e, como se trata de povos islamizados, em que a religião domina todos os aspetos da vida das sociedades, o económico como o político, o social como o educativo, o educador é simultaneamente o teólogo.
Se procura dar uma ideia da mentalidade antiga, dominada pelo trovador, é natural que pretenda agora mostrar a mentalidade nova, plasmada pelo “cherno”, o Fula, ou pelo “caramó” Mandinga.
Por isso achei necessário reproduzir aqui um artigo intitulado “A canção de Cherno Rachide”, que publiquei em 10 de Dezembro de 1961, num simpático jornalzinho de Bissau, “O Arauto”.
Ei-lo:
- “Tive há dias ocasião de conhecer uma das mais interessantes personalidades africanas desta Província. O meu colega de Fulacunda falara-me em termos de muito interesse de um educador Fula cuja fama e influência, dizia ele, seriam imensas em todo o Sul da Guiné portuguesa e muito para além da nossa fronteira.
Fomos a Aldeia Formosa, onde reside Cherno Rachide, o nosso homem, e confesso que no primeiro contacto ele me desconcertou.
No físico não tem nada da debilidade ascética de certos letrados muçulmanos nem da obesidade de alguns outros, originada aquela nos exagerados jejuns e esta por uma vida demasiado sedentária. Ele, pelo contrário, tem mais o aspeto do trabalhador manual. Robusto sem ser gordo, realiza o equilíbrio de uma mente sã habitando um corpo são.
Nas maneiras e no vestuário, foge igualmente à regra.
Nenhuma pose nas atitudes nem presunção no trajar. A longa cabaia era já bastante usada e enquanto durou a nossa conversa manteve-se descalço. Aliás, preparava-se para ir com os seus alunos cultivar o campo que os sustenta a todos. Este facto mostra que não se entrega a um marabutismo parasitário, que é algo corrente. Dias depois, disse-me em Empada um saracolé nada pronto a elogiar os Fulas que o Cherno, contra a opinião dos seus familiares, que o desejariam ver confinado ao ensino religioso e literário, persiste em trabalhar pessoalmente a terra para que os alunos nunca tenham a falsa noção de que o labor físico é degradante e só é nobre a atividade intelectual.
Nos primeiros momentos da conversa, sente-se que Cherno Rachide se entrega cautelosamente a estudar as intenções e o caráter do seu interlocutor. Depois de ganhar certa confiança, anima-se e é então extraordinariamente vivo e simpático.
Mostrou conhecimentos profundos da história e da etnografia dos povos sudaneses e citou muitas das suas máximas favoritas.
Uma delas explica a reserva que habitualmente usa ao fazer um novo conhecimento.
Há três coisas – diz ele – de que um homem reto se arrepende imediatamente: praticar uma ação indigna, dar consideração a quem não a merece e conversar com um tolo.
Quando nos despedimos, manifestei-lhe o desejo de levar comigo, e como recordação da nossa conversa, algumas conversas por si escritas sobre o tema que preferisse.
Recebeu com visível satisfação o meu pedido e escreveu em carateres árabes (o que é vulgar entre Fulas e Mandigas) e em língua árabe (o que já não é comum) a letra de uma canção que compôs para os seus alunos.
É esta canção que vou reproduzir e peço ao leitor desculpa de o fazer em maus versos. Há, porém, uma razão que me leva a cometer semelhante imprudência.
A composição de Cherno Rachide tem ritmo na língua original e eu gostaria que ele, ao ouvi-la ler, notasse também na versão portuguesa alguma musicalidade.
Esperando que esta boa intenção me absolva inteiramente de meter foice numa seara que nunca foi minha, aqui deixo a canção:
Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida vos vai dar
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.
Raparigas, sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.
A vós, rapazes, dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, ainda mais sábio, Logomane,
Que outrora assim falou:
— Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.
— Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros bons te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar
— A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.
— A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.
— Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.
— A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol-posto à manhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração
Terás feliz porvir
— Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher de outro. Não nego, o casamento
Traz desgosto profundo.
Mas se a fêmea procuras fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois.
Neste e noutro mundo.
Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.
Esta canção entoada diariamente pelos seus alunos define Cherno Rachide, o homem que se confessa profundamente grato ao governo da Província por haver possibilitado a realização do sonho da sua vida: a peregrinação a Meca.
Como português e como cristão, só me regozijo que lhe tenhamos dado tal alegria”
____________
Nota do editor:
Vd. postes anteriores da série de:
1 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)
4 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)
e
15 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Estamos quase a chegar ao fim desta coletânea de textos sobre a história dos Mandingas, suas lendas e canções, no fundo reproduz-se um conjunto de textos que foram editados pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa.
E esta canção de Cherno Rachide é uma pequena joia de que a Guiné se deve orgulhar.
Um abraço do
Mário
A canção de Cherno Rachide
Beja Santos
Foi minha primeira intenção limitar este pequeno trabalho às 15 lendas que antecedem. Elas tentam esclarecer algumas facetas da mentalidade dos povos Fula e Mandinga na época das lutas tribais.
O símbolo mais válido dessa época era o “judeu”, o trovar que cantava o heroísmo, a valentia e a fidelidade, ao mesmo tempo que vituperava a traição, a cobardia e a fraqueza.
O trovador, na véspera das batalhas, tocava as canções dedicadas a cada um dos guerreiros, convidando-os a declararem as proezas que se propunham cometer no dia seguinte. No momento dos combates, elogiava os intemeratos e insultava os indecisos, sempre tocando, sempre cantando, e levava assim os combatentes à morte, quase diríamos alegremente, arrebatando-os e enlouquecendo-os.
Os tempos mudaram.
O “judeu” cedeu o seu lugar ao educador e, como se trata de povos islamizados, em que a religião domina todos os aspetos da vida das sociedades, o económico como o político, o social como o educativo, o educador é simultaneamente o teólogo.
Se procura dar uma ideia da mentalidade antiga, dominada pelo trovador, é natural que pretenda agora mostrar a mentalidade nova, plasmada pelo “cherno”, o Fula, ou pelo “caramó” Mandinga.
Por isso achei necessário reproduzir aqui um artigo intitulado “A canção de Cherno Rachide”, que publiquei em 10 de Dezembro de 1961, num simpático jornalzinho de Bissau, “O Arauto”.
Ei-lo:
- “Tive há dias ocasião de conhecer uma das mais interessantes personalidades africanas desta Província. O meu colega de Fulacunda falara-me em termos de muito interesse de um educador Fula cuja fama e influência, dizia ele, seriam imensas em todo o Sul da Guiné portuguesa e muito para além da nossa fronteira.
Fomos a Aldeia Formosa, onde reside Cherno Rachide, o nosso homem, e confesso que no primeiro contacto ele me desconcertou.
No físico não tem nada da debilidade ascética de certos letrados muçulmanos nem da obesidade de alguns outros, originada aquela nos exagerados jejuns e esta por uma vida demasiado sedentária. Ele, pelo contrário, tem mais o aspeto do trabalhador manual. Robusto sem ser gordo, realiza o equilíbrio de uma mente sã habitando um corpo são.
Nas maneiras e no vestuário, foge igualmente à regra.
Nenhuma pose nas atitudes nem presunção no trajar. A longa cabaia era já bastante usada e enquanto durou a nossa conversa manteve-se descalço. Aliás, preparava-se para ir com os seus alunos cultivar o campo que os sustenta a todos. Este facto mostra que não se entrega a um marabutismo parasitário, que é algo corrente. Dias depois, disse-me em Empada um saracolé nada pronto a elogiar os Fulas que o Cherno, contra a opinião dos seus familiares, que o desejariam ver confinado ao ensino religioso e literário, persiste em trabalhar pessoalmente a terra para que os alunos nunca tenham a falsa noção de que o labor físico é degradante e só é nobre a atividade intelectual.
Nos primeiros momentos da conversa, sente-se que Cherno Rachide se entrega cautelosamente a estudar as intenções e o caráter do seu interlocutor. Depois de ganhar certa confiança, anima-se e é então extraordinariamente vivo e simpático.
Mostrou conhecimentos profundos da história e da etnografia dos povos sudaneses e citou muitas das suas máximas favoritas.
Uma delas explica a reserva que habitualmente usa ao fazer um novo conhecimento.
Há três coisas – diz ele – de que um homem reto se arrepende imediatamente: praticar uma ação indigna, dar consideração a quem não a merece e conversar com um tolo.
Quando nos despedimos, manifestei-lhe o desejo de levar comigo, e como recordação da nossa conversa, algumas conversas por si escritas sobre o tema que preferisse.
Recebeu com visível satisfação o meu pedido e escreveu em carateres árabes (o que é vulgar entre Fulas e Mandigas) e em língua árabe (o que já não é comum) a letra de uma canção que compôs para os seus alunos.
É esta canção que vou reproduzir e peço ao leitor desculpa de o fazer em maus versos. Há, porém, uma razão que me leva a cometer semelhante imprudência.
A composição de Cherno Rachide tem ritmo na língua original e eu gostaria que ele, ao ouvi-la ler, notasse também na versão portuguesa alguma musicalidade.
Esperando que esta boa intenção me absolva inteiramente de meter foice numa seara que nunca foi minha, aqui deixo a canção:
Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida vos vai dar
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.
Raparigas, sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.
A vós, rapazes, dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, ainda mais sábio, Logomane,
Que outrora assim falou:
— Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.
— Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros bons te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar
— A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.
— A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.
— Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.
— A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol-posto à manhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração
Terás feliz porvir
— Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher de outro. Não nego, o casamento
Traz desgosto profundo.
Mas se a fêmea procuras fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois.
Neste e noutro mundo.
Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.
Esta canção entoada diariamente pelos seus alunos define Cherno Rachide, o homem que se confessa profundamente grato ao governo da Província por haver possibilitado a realização do sonho da sua vida: a peregrinação a Meca.
Como português e como cristão, só me regozijo que lhe tenhamos dado tal alegria”
Bilhete postal da era colonial, mostra os pais de Braima Galissá
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Nota do editor:
Vd. postes anteriores da série de:
1 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)
4 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)
e
15 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P11271: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (22): A guerra no setor de Mansoa, ao tempo do BCAÇ 4612/72, entre fevereiro e junho de 1973
1. O António Graça de Abreu esteve em Mansoa, no CAOP1, entre inícios de fevereiro de 1973 e meados de junho de 1973… Foi lá fazer os seus 26 anos. [Foi "apanhado na rede" no 3º ano da Faculdade de Letras, daí a diferença de idade em relação à média etária dos milicianos...]. Em Mansoa conheceu a guerra por perto, mas ainda não teve o seu batismo de fogo, que só chegaria aos 17 meses, em Cufar, no sul, na região de Tombali.
No seu Diário da Guiné (Lisboa: Editora Guerra e Paz, 2007), o António Graça de Abreu dá-nos conta do recrudescimento da atividade operacional do PAIGC, no setor de Mansoa, com (i) ataques ao destacamento de Cussaná, nas imediações de Mansoa; mas também às guarnições de (ii) Braia, Infandre, Jugudul e Bissá; assim como (iii) emboscadas na estrada Mansoa-Mansabá-Farim e ainda (iv) emboscadas e flagelações na estrada Jugudul-Bambadinca (em construção)…
O nosso camarada esteve lá, em Mansoa, no tempo do BCAÇ 4612/72,do Jorge Canhão e do Agostinho Gaspar. Em finais de junho de 1973, o CAOP1 é transferido para Cufar. A 38ª CCmds [, do Amílcar Memdes,] estava nessa altura afeta ao CAOP 1, tendo vindo de Teixeira Pinto para Mansoa, com o António Graça de Abreu e o pequeno staff do CAOP1, que era comando pelo cor pára Durão. Eis aqui a descrição, no seu diário, de escaramuças entre o PAIGC e as NT, no setor de Mansoa, de que resultarão diversos mortos e feridos.
[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu, CAOP 1, junto ao obus 14, Mansoa, 1973. Foto: António Graça de Abreu ]
(...) Mansoa, 3 de Fevereiro de 1973
As minhas mãos doem, estão inchadas. Tanto trabalho! A cabeça está boa, a laborar em pleno na aprendizagem das novas coisas da guerra.
Carregámos vinte e quatro Berliets com os materiais do CAOP 1 e da 38ª. de Comandos. Tanta tralha, dos armários e secretárias aos dossiers, aos cunhetes de balas! Foi empacotar, levar para as viaturas, chegar aqui, descarregar tudo, conferir o destino de cada peça, instalar.
O Tomé, que também teve de transferir o material das Transmissões – rádios, antenas, sei lá que mais! – dorme sossegado a um metro de mim. Temos um quarto minúsculo, o Cravinho safou-se da mudança, está de férias em Portugal. Quando regressar, vai abrir a boca até à nuca ao saber que tem Mansoa à sua espera.
A viagem correu bem. Saímos de Teixeira Pinto às sete e meia da manhã. Viemos com dois pelotões da 38ª. de Comandos - cerca de sessenta homens, - que nos deram segurança durante o percurso. Vim sentado num Unimog, a meio da coluna, de camuflado, a espingarda entre os joelhos, com bala na câmara. Só entre o Pelundo, Có e Bula era possível uma emboscada. Mas tudo sossegado.
Atravessámos o rio Mansoa de jangada, num lugar chamado João Landim e depois, já não muito longe de Bissau, em Safim, cortámos para a estrada até Mansoa. Três quilómetros antes de Mansoa fica uma aldeia chamada Jugudul onde os guerrilheiros, há dez dias atrás, destruíram cem tabancas acabadas de construir pela NT, destinadas a realojar população. A povoação está num estado miserável, toda a gente fugiu. Isto aconteceu por causa da estrada em construção que começa exactamente no Jugudul, vai até Porto Gole e irá terminar em Bambadinca, uns sessenta quilómetros a leste. As estradas novas, alcatroadas dão sempre problemas, os guerrilheiros tentam obstar à sua construção.
Mansoa é diferente, mais pequena, pobrezinha e feia do que Teixeira Pinto. O quartel também é mais fraco. Tive uma surpresa, vivem cá cinco ou seis mulheres de oficiais e dez de sargentos. Connosco, na coluna trouxemos a mulher do capitão Pancada e a esposa com os dois filhos, quatro e dois anos de idade, do capitão da 38ª. de Comandos. (...)
[Foto à esquerda: O alf mil António Graça de Abreu CAOP 1, em Teixeira Pinto, setembro de 1972. Foto de António Graça de Abreu]
Mansoa, 9 de Março de 1973
O general Spínola encontra-se aqui próximo, em Jugudul a três quilómetros de Mansoa. Esta manhã há cerimónia de imposição de insígnias a novos milícias africanos. Jugudul precisa de ser defendida. A 10 e 23 de Janeiro deste ano, os guerrilheiros foram lá e quase arrasaram a povoação, queimaram tabancas, entraram nas casas dos que mais colaboravam connosco e limparam-nos. Ainda estávamos em Canchungo e esta terá sido uma das razões que motivou a nossa transferência para Mansoa, com carácter de urgência.
Fotos (e legendas): © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados
Mansoa, 12 de Março de 1973
Bissá, um pequeno aquartelamento doze quilómetros a sul de Mansoa, foi atacado sábado passado às nove e meia da noite, estava eu a beber um café na esplanada do Simões, o restaurante. Foi um ataque a sério que se prolongou por quarenta e cinco minutos, apesar da distância ouviam-se os disparos e rebentamentos com muita nitidez. Os dois obuses de Mansoa ajudaram ao barulho e dispararam cinquenta e sete granadas de canhão sobre as zonas prováveis de retirada do IN. Só hoje soube os números.
Resultado, o IN destruiu e queimou oitenta e sete tabancas, houve três mortos entre a população, muitos feridos e gente intoxicada. As NT de Bissá não sofreram nada, além do desgaste psicológico que uma flagelação tão dura como esta costuma provocar.
Mantive-me tranquilo, mas se em vez de Bissá a ser atacada tivesse sido Mansoa diria, por certo, adeus à pacatez e à calma. Estar dentro de um quartel cercado de arame farpado e experimentar as sensações fortes de ouvir os foguetões, as granadas de morteiro e canhão sem recuo a vir em nossa direcção ou a cair não muito longe de nós, faz com que os rebentamentos comecem a ficar cá dentro. Agora entendo melhor porque é que, depois do regresso a Portugal, um ex-combatente ouve um foguete rebentar na romaria da aldeia e corre, tremebundo, a esconder-se no primeiro buraco que lhe aparece. (...)
Mansoa, 19 de Março de 1973
Foi a vez de Infandre “embrulhar”, um aquartelamento com quarenta militares e cerca de mil habitantes, dez quilómetros a norte daqui. Levaram com foguetões, canhão sem recuo, RPGs, morteiros, armas automáticas, foram atacados com um enorme potencial de fogo. No destacamento, não houve feridos, apenas os usuais estragos materiais. A pobre da população é que pagou as favas. Em Infandre, como em muitos outros lugares da Guiné, os negros tanto fazem o nosso jogo como apoiam o PAIGC. Mas a população é sempre infeliz. Nas flagelações à distância, os guerrilheiros não acertam na tropa portuguesa e acabam por provocar mortos e feridos nos habitantes negros que tantas vezes até não lhes são adversos. É a guerra impiedosa, cruel. (...)
Mansoa, 13 de Maio de 1973
Esta manhã, dia 13 de Maio, na hora da missa e do adeus à Virgem de Fátima, tivemos uma surpresa. Todas as noites estamos à espera do tal ataque das tropas do PAIGC e ele não vem. Agora, em pleno dia, com todo o descaramento, resolveram chatear. Canhão sem recuo e morteiro 82 contra Cussaná, a 800 metros do centro do nosso quartel. Daqui reagiu-se com as armas do costume, obuses e morteiros. Eu, muito calmo entre a tropa, a ver a movimentação dos soldados, a nossa capacidade de resposta numa flagelação deste tipo. O ping-pong não teve consequências, nem eles acertaram, nem nós. Escrevo quase a brincar, hoje tudo isto foi inofensivo, não passou de barulho.
A vida sexual das NT. Dizem-me que aqui em Mansoa há uma puta negra que a troco de comida, ou algum dinheiro, abastece todo o Batalhão. (...)
[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu CAOP 1, de G3 e máquina fotográfica, na estrada Mansoa-Porto Gole, 1973. Foto de António Graça de Abreu]
Mansoa, 21 de Maio de 1973
Eu não quero, mas só oiço guerra, vejo guerra, sinto guerra. Hoje foi pior - já não sei bem o que é pior! - do que os três comandos mortos pela explosão dos dilagramas, em Teixeira Pinto. Atacaram, emboscaram a coluna de Mansabá para Mansoa, aqui abaixo de Cutia. Ainda há menos de duas semanas lá passei quando acompanhei os nossos condutores e os dois grupos da 38ª de Comandos na viagem sem regresso para o David Viegas. Todos os dias a tropa se desloca para cima e para baixo, armada, evidentemente, mas quase à vontade.
_______________
Nota do editor:
25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11000: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (21): A morte de Amílcar Cabral e a mudança do CAOP1 para Mansoa
[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu, CAOP 1, junto ao obus 14, Mansoa, 1973. Foto: António Graça de Abreu ]
(...) Mansoa, 3 de Fevereiro de 1973
As minhas mãos doem, estão inchadas. Tanto trabalho! A cabeça está boa, a laborar em pleno na aprendizagem das novas coisas da guerra.
Carregámos vinte e quatro Berliets com os materiais do CAOP 1 e da 38ª. de Comandos. Tanta tralha, dos armários e secretárias aos dossiers, aos cunhetes de balas! Foi empacotar, levar para as viaturas, chegar aqui, descarregar tudo, conferir o destino de cada peça, instalar.
O Tomé, que também teve de transferir o material das Transmissões – rádios, antenas, sei lá que mais! – dorme sossegado a um metro de mim. Temos um quarto minúsculo, o Cravinho safou-se da mudança, está de férias em Portugal. Quando regressar, vai abrir a boca até à nuca ao saber que tem Mansoa à sua espera.
A viagem correu bem. Saímos de Teixeira Pinto às sete e meia da manhã. Viemos com dois pelotões da 38ª. de Comandos - cerca de sessenta homens, - que nos deram segurança durante o percurso. Vim sentado num Unimog, a meio da coluna, de camuflado, a espingarda entre os joelhos, com bala na câmara. Só entre o Pelundo, Có e Bula era possível uma emboscada. Mas tudo sossegado.
Atravessámos o rio Mansoa de jangada, num lugar chamado João Landim e depois, já não muito longe de Bissau, em Safim, cortámos para a estrada até Mansoa. Três quilómetros antes de Mansoa fica uma aldeia chamada Jugudul onde os guerrilheiros, há dez dias atrás, destruíram cem tabancas acabadas de construir pela NT, destinadas a realojar população. A povoação está num estado miserável, toda a gente fugiu. Isto aconteceu por causa da estrada em construção que começa exactamente no Jugudul, vai até Porto Gole e irá terminar em Bambadinca, uns sessenta quilómetros a leste. As estradas novas, alcatroadas dão sempre problemas, os guerrilheiros tentam obstar à sua construção.
Mansoa é diferente, mais pequena, pobrezinha e feia do que Teixeira Pinto. O quartel também é mais fraco. Tive uma surpresa, vivem cá cinco ou seis mulheres de oficiais e dez de sargentos. Connosco, na coluna trouxemos a mulher do capitão Pancada e a esposa com os dois filhos, quatro e dois anos de idade, do capitão da 38ª. de Comandos. (...)
[Foto à esquerda: O alf mil António Graça de Abreu CAOP 1, em Teixeira Pinto, setembro de 1972. Foto de António Graça de Abreu]
Mansoa, 9 de Março de 1973
O general Spínola encontra-se aqui próximo, em Jugudul a três quilómetros de Mansoa. Esta manhã há cerimónia de imposição de insígnias a novos milícias africanos. Jugudul precisa de ser defendida. A 10 e 23 de Janeiro deste ano, os guerrilheiros foram lá e quase arrasaram a povoação, queimaram tabancas, entraram nas casas dos que mais colaboravam connosco e limparam-nos. Ainda estávamos em Canchungo e esta terá sido uma das razões que motivou a nossa transferência para Mansoa, com carácter de urgência.
Os ataques de Janeiro foram muito bem planeados. Mansoa tem o grosso da tropa, antes de nós chegarmos e trazermos a 38ª. de Comandos já eram cerca de 400 homens, depois à nossa volta encontram-se 70 militares em Jugudul, 40 em Braia, outros tantos em Infandre, na estrada para Bissorã. Pois nos dois ataques de Janeiro, os guerrilheiros atacaram simultaneamente Mansoa, Braia e o Jugudul, com uma finalidade simples, fixar a tropa de Mansoa dentro do quartel enquanto, com sucesso, concentravam meios sobre Braia e o Jugudul.
Nesta última povoação visitada hoje pelo Spínola, queimaram mais de cem casas das cento e cinquenta existentes, e provocaram uma dezena de mortos entre a população. Nos nossos aquartelamentos, o costume, nem mortos nem feridos, só estragos materiais. Os homens do PAIGC não são capazes de tomar um aquartelamento português, mesmo pequeno e relativamente isolado como Braia ou o Jugudul. Atacam e fogem.
Esta zona aqueceu muito por causa da construção da estrada alcatroada que ligará a Bambadinca e a Bafatá, a segunda cidade da Guiné. Os guerrilheiros tentam impedir a construção de estradas e intimidar as populações que estão com as NT. A segurança nos trabalhos da estrada é levada a cabo por grupos de combate do Batalhão 4612, estacionado em Mansoa, e este nosso pessoal anda naturalmente nervoso, preocupado. (...)
Esta zona aqueceu muito por causa da construção da estrada alcatroada que ligará a Bambadinca e a Bafatá, a segunda cidade da Guiné. Os guerrilheiros tentam impedir a construção de estradas e intimidar as populações que estão com as NT. A segurança nos trabalhos da estrada é levada a cabo por grupos de combate do Batalhão 4612, estacionado em Mansoa, e este nosso pessoal anda naturalmente nervoso, preocupado. (...)
Foto s/ nº > Constantino Veira da Rocha, sold cond auto, da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72
Foto s/ nº > Constantino Veira da Rocha com outro camarada
Foto s/nº > "O troféu" [presume.-se que este grupo seja de militares da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72]
Foto s/ nº > "A tempestade" [ Instalações militares de Mansoa, depois de um temporal]
Foto s/ nº > "Guerrilheiro morto" (1)
Foto s/ nº > "Guerrilheiro morto" (2)
Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74) > Fotos do álbum do Jorge Canhão, ex-fur mil, da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72 (Mansoa e Gadamael, 1972/74)-Foto s/ nº > "Guerrilheiro morto" (1)
Foto s/ nº > "Guerrilheiro morto" (2)
Fotos (e legendas): © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados
Mansoa, 12 de Março de 1973
Bissá, um pequeno aquartelamento doze quilómetros a sul de Mansoa, foi atacado sábado passado às nove e meia da noite, estava eu a beber um café na esplanada do Simões, o restaurante. Foi um ataque a sério que se prolongou por quarenta e cinco minutos, apesar da distância ouviam-se os disparos e rebentamentos com muita nitidez. Os dois obuses de Mansoa ajudaram ao barulho e dispararam cinquenta e sete granadas de canhão sobre as zonas prováveis de retirada do IN. Só hoje soube os números.
Resultado, o IN destruiu e queimou oitenta e sete tabancas, houve três mortos entre a população, muitos feridos e gente intoxicada. As NT de Bissá não sofreram nada, além do desgaste psicológico que uma flagelação tão dura como esta costuma provocar.
Mantive-me tranquilo, mas se em vez de Bissá a ser atacada tivesse sido Mansoa diria, por certo, adeus à pacatez e à calma. Estar dentro de um quartel cercado de arame farpado e experimentar as sensações fortes de ouvir os foguetões, as granadas de morteiro e canhão sem recuo a vir em nossa direcção ou a cair não muito longe de nós, faz com que os rebentamentos comecem a ficar cá dentro. Agora entendo melhor porque é que, depois do regresso a Portugal, um ex-combatente ouve um foguete rebentar na romaria da aldeia e corre, tremebundo, a esconder-se no primeiro buraco que lhe aparece. (...)
Mansoa, 19 de Março de 1973
Foi a vez de Infandre “embrulhar”, um aquartelamento com quarenta militares e cerca de mil habitantes, dez quilómetros a norte daqui. Levaram com foguetões, canhão sem recuo, RPGs, morteiros, armas automáticas, foram atacados com um enorme potencial de fogo. No destacamento, não houve feridos, apenas os usuais estragos materiais. A pobre da população é que pagou as favas. Em Infandre, como em muitos outros lugares da Guiné, os negros tanto fazem o nosso jogo como apoiam o PAIGC. Mas a população é sempre infeliz. Nas flagelações à distância, os guerrilheiros não acertam na tropa portuguesa e acabam por provocar mortos e feridos nos habitantes negros que tantas vezes até não lhes são adversos. É a guerra impiedosa, cruel. (...)
Mansoa, 13 de Maio de 1973
Esta manhã, dia 13 de Maio, na hora da missa e do adeus à Virgem de Fátima, tivemos uma surpresa. Todas as noites estamos à espera do tal ataque das tropas do PAIGC e ele não vem. Agora, em pleno dia, com todo o descaramento, resolveram chatear. Canhão sem recuo e morteiro 82 contra Cussaná, a 800 metros do centro do nosso quartel. Daqui reagiu-se com as armas do costume, obuses e morteiros. Eu, muito calmo entre a tropa, a ver a movimentação dos soldados, a nossa capacidade de resposta numa flagelação deste tipo. O ping-pong não teve consequências, nem eles acertaram, nem nós. Escrevo quase a brincar, hoje tudo isto foi inofensivo, não passou de barulho.
A vida sexual das NT. Dizem-me que aqui em Mansoa há uma puta negra que a troco de comida, ou algum dinheiro, abastece todo o Batalhão. (...)
[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu CAOP 1, de G3 e máquina fotográfica, na estrada Mansoa-Porto Gole, 1973. Foto de António Graça de Abreu]
Mansoa, 21 de Maio de 1973
Eu não quero, mas só oiço guerra, vejo guerra, sinto guerra. Hoje foi pior - já não sei bem o que é pior! - do que os três comandos mortos pela explosão dos dilagramas, em Teixeira Pinto. Atacaram, emboscaram a coluna de Mansabá para Mansoa, aqui abaixo de Cutia. Ainda há menos de duas semanas lá passei quando acompanhei os nossos condutores e os dois grupos da 38ª de Comandos na viagem sem regresso para o David Viegas. Todos os dias a tropa se desloca para cima e para baixo, armada, evidentemente, mas quase à vontade.
Esta tarde, às três horas foram emboscados, a dezassete quilómetros de Mansoa. Nos primeiros disparos houve logo quatro mortos, um furriel e três soldados da companhia de Mansabá que está a um mês de regressar a Portugal. A tropa daqui foi dar uma ajuda. Quando lá chegaram, os guerrilheiros tinham retirado após incendiarem um Unimog e quase destruírem um camião Berliet. Os feridos foram chegando a Mansoa, os hélis não os vão buscar ao mato, mas voam até aqui. De Mansoa a Bissau é zona pacificada pelas NT. Vieram dois hélis e três DOs.
É difícil imaginar o que é a chegada das viaturas carregadas de mortos e feridos, os intestinos saídos para fora das barrigas, os tóraxes atravessados por balas, braços cortados, estilhaços e sangue por todo o lado. Os companheiros de armas não conseguiam suster as lágrimas. Colocaram-se os rapazes destroçados em macas, prestaram-se os primeiros socorros possíveis, os frascos de soro, as ligaduras de ocasião manchadas de sangue. Dez soldados, todos brancos, alguns em estado gravíssimo, foram evacuados para Bissau. Estive no transporte dos homens da enfermaria para a pista, para o heliporto. Sujei as mãos, a farda de sangue. Nunca tinha sentido a boca tão seca e, na garganta, uma espécie de coágulo de poeira e sangue.
A vida continua para os que continuam vivos. (...)
Mansoa, 11 de Junho de 1973
Dois pelotões da 38ª. de Comandos foram dar uma ajuda à tropa do batalhão que fazia a segurança nos trabalhos da estrada Jugudul-Bambadinca e foi flagelada. Houve contacto com o IN e os Comandos, que não sofreram feridos, fizeram quatro mortos. Para o CAOP, trouxeram as armas dos guerrilheiros, três Kalashnikovs e uma Simonov de fabrico russo e chinês. Eu escrevi:
É difícil imaginar o que é a chegada das viaturas carregadas de mortos e feridos, os intestinos saídos para fora das barrigas, os tóraxes atravessados por balas, braços cortados, estilhaços e sangue por todo o lado. Os companheiros de armas não conseguiam suster as lágrimas. Colocaram-se os rapazes destroçados em macas, prestaram-se os primeiros socorros possíveis, os frascos de soro, as ligaduras de ocasião manchadas de sangue. Dez soldados, todos brancos, alguns em estado gravíssimo, foram evacuados para Bissau. Estive no transporte dos homens da enfermaria para a pista, para o heliporto. Sujei as mãos, a farda de sangue. Nunca tinha sentido a boca tão seca e, na garganta, uma espécie de coágulo de poeira e sangue.
A vida continua para os que continuam vivos. (...)
Mansoa, 11 de Junho de 1973
Dois pelotões da 38ª. de Comandos foram dar uma ajuda à tropa do batalhão que fazia a segurança nos trabalhos da estrada Jugudul-Bambadinca e foi flagelada. Houve contacto com o IN e os Comandos, que não sofreram feridos, fizeram quatro mortos. Para o CAOP, trouxeram as armas dos guerrilheiros, três Kalashnikovs e uma Simonov de fabrico russo e chinês. Eu escrevi:
Quatro armas frias,
puras do húmus da terra,
de sangue ainda fresco,
num pano de lona verde.
Uma a uma,
tomei nas mãos as Kalashs,
culatra atrás, bala na câmara,
patilha de segurança.
As armas dos homens que tombaram,
outra vez caídas,
silenciosas, mortas.
puras do húmus da terra,
de sangue ainda fresco,
num pano de lona verde.
Uma a uma,
tomei nas mãos as Kalashs,
culatra atrás, bala na câmara,
patilha de segurança.
As armas dos homens que tombaram,
outra vez caídas,
silenciosas, mortas.
O canto doloroso da razão. (...)
Nota do editor:
25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11000: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (21): A morte de Amílcar Cabral e a mudança do CAOP1 para Mansoa
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domingo, 17 de março de 2013
Guiné 63/74 - P11270: VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (5): Dia 8 de Junho de 2013 será a data do nosso Convívio por "imposição" do Palace Hotel de Monte Real (Joaquim Mexia Alves / Carlos Vinhal)
VIII ENCONTRO NACIONAL DA TABANCA GRANDE
DIA 8 DE JUNHO DE 2013
PALACE HOTEL DE MONTE REAL
DIA 8 DE JUNHO DE 2013
PALACE HOTEL DE MONTE REAL
ALTERAÇÃO DA DATA DO VIII ENCONTRO DA TABANCA GRANDE
Caros camaradas e amigos tertulianos
Recebemos do nosso camarada Joaquim Mexia Alves, o nosso elo de ligação com o Palace Hotel de Monte Real, a seguinte mensagem:
Meus amigos
Venho junto de vós, com a "corda ao pescoço", como Egas Moniz!
Os serviços de reserva do Hotel cometeram um gravíssimo erro, e só agora se aperceberam que para o dia 22 de Junho já tinham confirmada uma reserva de uma empresa para um evento com grande número de pessoas.
O erro foi detectado quando a empresa solicitou alguns "acréscimos" ao evento confirmado.
Tentámos junto da empresa mudar a data, mas foi impossível, pois como devem julgar o "planning" de uma empresa é muito dificil de mudar depois de aprovado.
Resta-nos portanto a data de 8 de Junho para o nosso encontro.
A Direcção do Hotel, para além de pedir desculpa pelo sucedido, decidiu em jeito de compensação, fazer um desconto nas tarifas de estadia que passarão a ser as seguintes:
- Duplo: 55.00€
- Single: 45.00€
incluem pequeno-almoço
Como calculam o assunto saiu-me completamente "das mãos", embora me seja forçoso enfrentar "o touro" e pedir a vossa disponibilidade para esta mudança.
Obviamente que podem fazer o uso necessário deste mail e obviamente também que, (se concordarem com esta alteração), estou disposto, desde que o Carlos me forneça os mails dos inscritos, a fazer esses contactos com aqueles que já se inscreveram.
Obviamente, também, que as reservas de alojamento já feitas, estarão de imediato asseguradas, assim seja confirmado esse desejo.
Meus amigos, conto com a vossa benevolência, e coloco-me à vossa disposição, percebendo que se quiserem mudar de local, apenas tenho que aceitar de "boa cara".
Um abraço amigo, grato e sobretudo um pouco envergonhado do
Joaquim Mexia Alves
Foram já enviadas mensagens aos inscitos e à tertúlia a dar conhecimento desta alteração.
A partir de agora estamos à vossa disposição para recepcionar a confirmação ou anulação das inscrições já efectuadas e, com muito gosto, para receber novas inscrições.
Recordemos: Dia 8 de Junho, em força para Monte Real para a Operação VIII Encontro da Tabanca Grande.
Pela organização:
Luís Graça
Joaquim Mexia Alves
Miguel Pessoa
Carlos Vinhal
____________
Nota do editor:
Vd. último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11178: VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (4): Situação das reservas para pernoita no Palace Hotel de Monte Real (Joaquim Mexia Alves / Carlos Vinhal)
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