1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2014:
Queridos amigos,
“Lugar de Massacre” é o primeiro título sonante da literatura da guerra da Guiné, após o 25 de Abril.
É uma carpintaria original, uma miscigenação de vários géneros literários, há para ali um controlo profundo de um mestre da língua que ondula entre o português vernáculo, o surrealismo, o humor trauliteiro, a paródia aos falsos valores ancestrais, o desnudar cruel dos horrores da guerra.
Pela sua complexidade, por ser uma página trágica do lugar e do tempo de massacre, continua a ser alvo de investigações universitárias, lá se vão descobrindo novas dimensões deste romance incómodo, subversivo, mordaz.
Um abraço do
Mário
Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (2):
Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné
Beja Santos
“Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, é obra cimeira da literatura da guerra. Cáustica, niilista, libelo dolorosíssimo, com recursos à linguagem encriptada, rememoração autobiográfica, impôs-se desde a primeira hora pela sua originalidade, por gritar em voz alta o nome dos lugares e dos tempos de massacre.
Demolidor com os valores passadistas, é nesse contexto que podemos observar os comportamentos burlescos dos condes d’Avince e d’Enxeque, que têm sempre na boca os valores da glória de Portugal e anunciam que estão em missão civilizadora e na prática são duas futilidades a brincar aos valores de antanho. A atmosfera do Quartel-General é de paródia, de orgia romana. Em contraponto, Pierre Avince, sempre a arrastar uma velha mala, espoleta a inquietação cultural entre os condes. Depois de uma festa em que os condes viram a mobília do quarto partida, Pierre Avince convida-os para o almoço do seu aniversário, nova borrasca, acaba tudo em bebedeira monumental, ausência ao serviço, o comandante Pássaro em raiva rubra. A propósito do sucessor do comandante Pássaro, José Martins Garcia destila o seu fel sobre a dimensão tacanha e burocrática do militar:
“Não foi a um ser verdadeiramente humano que o comandante Pássaro cedeu a chefia. Não se tratava também de um longilíneo pássaro triste, nem de uma consciência empenhada no dever, nem de um guerreiro nostálgico de brocados, nem de um recalcitrante enfastiado por disciplinas de caixa e tambor. Não era um eleito por capacidades insondáveis, não era um perito em matemáticas ou em fuga de ideias. Não era nada disso. Quebrara bravamente um pé. Não em combate. Mas em exemplificações para instruendo. Também na pança e nas nádegas se lhe infiltrara o micróbio da demissão. Sedentário, transferindo para tarefas menos ginasticadas, engordara. Ainda angélico nas pupilas azuis, crescera nas nádegas roliças, na cara bolachuda, no tronco, no alto e no baixo, a ponto por vezes de lhe terem chamado chimpanzé. Capitão Oliveira”.
A atmosfera de bacanal irá manter-se, há para ali amores inconversáveis entre oficiais e praças, o capitão Oliveira e o conde d’Avince andam ciumentos, disputam o mesmo efebo. Pierre Avince anda por Catió, não se mistura com estes ardores de paixão. Numa vinda a Bissau temo-lo novamente a protagonizar uma bebedeira monumental. As orgias sucedem-se. Pierre d’Avince parte para Bafatá e daqui para a Ponta do Inglês, o que aqui se passa é descrito com a irreverência e no tom delirante do costume. Mas é neste contexto que o escritor nos deixa uma página belíssima:
“Frente ao rio barrento, com o mato pelas costas e ruídos inquietos pelas noites iguais, desenrolavam-se os dias de degredo, com a estritamente indispensável vigilância e a excessos de memória nas palavras cada vez mais ásperas. A saída única era à beira-rio, se a Marinha tivesse tempo ou propósito de ali mandar uma lancha. Mas constava ninguém apreciar essas paragens, que bem interiores ao mapa da Guiné-Bissau, constituíam na realidade o último enclave do ocupante, tomando por referência o largo afluente de nome Corubal. Daí para sul - dizia-se -, embarcação que ousasse adiantar-se saía rendilhada de bala inimiga, como já se provara. E em terra, nas picadas que tinham ligado a Ponta ao Xime e ao Xitole, o matagal apagara o trilho humano, dando por zero a parte colonizadora da civilização.
Havia três meses que aquele Destacamento de quarenta humanos ali encontrara abrigos e arame-farpado e ali se exercitava na espera, numa inquietação sem finalidade senão a de sonhar a evasão. Para além da vedação, percorriam, bem armados, uns cinquenta metros, para alcançarem água vagamente potável, tendo o cuidado de se abastecerem pela manhã, visto já terem notado, na lama fresca, pegadas de pé descalço. Ou fantasmas ali se dessedentavam, ou outra gente, invisível e talvez atenta, ali se abastecia. E o Anatólio, o furriel de poucas falas, não se entendia a si próprio quando afirmava querer e não querer conhecer esses fantasmas, quem sabe se homens menos loucos que os enclausurados brancos da Ponta do Inglês.
Reinava o sol sobre os perdidos defensores da cerca e então algum sorriso lhes sublinhava as falas. Mas vinha a noite e os receios aos montes acidulavam os gestos com que baralhavam as sebentas cartas e as davam a rostos apreensivos de tanto jogarem sem só uma certeza. E quando o vento sarcástico da história lhes fundiam mais uma lâmpada amarelenta, falavam de socorro e reabastecimento, culpando da solidão e da escassez de tudo o encarregado das transmissões”.
Com um domínio absoluto sobre o absurdo, assim termina o capítulo:
“No dia seguinte, Pierre e os seus dois auxiliares entraram, com o estúpido material que lhes coubera em sorte, numa lancha da Marinha, ali por acaso. Beberam água fresca e adormeceram.
O Destacamento da Ponta do Inglês foi atacado poucas horas depois. Entre mortos e feridos muita gente escapou”.
Pierre d’Avince segue para São Domingos, no jogo das cartas ficará eternamente endividado, melhor dito fica a dever o vencimento de um ano. Pierre já não é produto do delírio literário, conversa com familiares mortos, são sonhos em que fala do tráfico de escravos, da polícia de choque que entrou no estádio universitário, o que nos remete para a crise académica de 1962. Prosseguem as conversas com os antepassados mortos, a sombra do passado também é dada pelo alferes Teive, no Sedengal, não longe de São Domingos, e temos mais uma comicidade com a velha aristocracia:
“O alferes Teive era ferozmente monárquico. Em 1578, no desgraçado dia da batalha de Alcácer Quibir, Dom Diogo de Teive, cheio de areia histórica, largara o ‘Ter! Ter!’ – brado com o qual, segundo os historiadores providencialistas, Deus pusera termo à loucura sebastiânica. O alferes Teive cuja paixão na vida civil fora a Heráldica, achava-se na posse de valiosos documentos que demonstrariam, uma vez revistos e conjugados, ser falsa a atribuição do tal desastrado brado ao heróico Dom Diogo de Teive. Dizendo isto, o alferes sacudiu o mindinho ornado de velhíssimo brasão”.
É por estas paragens que Pierre encontra as personagens mais simpáticas da obra, o capitão Camilo e um agente técnico mulato. Questionado por Pierre, responde que ninguém lhe faz mal, ele trabalha para o desenvolvimento da Guiné, diz ter andando na escola com Amílcar Cabral. Pierre diz-lhe de forma cortante que ele trabalha para o ocupante e o outro retorquiu:
“Não. Trabalho para a Guiné. O país fica, os governos mudam”.
O caminho para o delírio prossegue, Pierre vai ver com os seus olhos tabancas destruídas, seguramente que o PAIGC não está inocente, em chão felupe vê miséria indescritível, vê doença, vê superstição:
“De fora, vinha a lamúria dos felupes, encaminhando os mortos para o paraíso felupe. O deus felupe em nada se distinguia do deus da baga-baga, esse deus que ordena às formigas a construção de catedrais. Sombreado pelo compasso do tambor, o cântico fúnebre toda a santa-noite uivava encomendando a peste ao deus felupe”.
A guerra anda à solta, há minas e sinistrados, Pierre, combalido, regressa a Bissau e baixa aos serviços da neuropsiquiatria. Assiste à chegada dos helicópteros, grita pela Pátria no seu desperdício, vendo tanto sofrimento que acode àquele hospital militar, está seguramente louco, este doutor em letras, cirurgião dos fados soterrados em letra morta. Endoidece no lugar de massacre. Para que conste.
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14891: Notas de leitura (737): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 20 de julho de 2015
Guiné 63/73 - P14901: Inquérito online: Mais de 54% do pessoal nunca telefonou para a metrópole, durante a comissão, usando os CTT... Resultados preliminares (n=81), quando faltam 4 dias para "encerrar as urnas"...
Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Edifício dos CTT... Ficava na tabanca de Bambadinca, nas imediações do quartel. Segundo recorda o Beja Santos, o nome da empregada dos CTT era a Dona Leontina ("uma gentil senhora com quem se apalavrava o dia e a hora para telefonar para Lisboa").
Sou dos que, a maioria, nunca lá foi telefonar, pelo que não me lembro da senhora. Presumo que fosse caboverdiana, tal como a professora, a Dona Violante, e o chefe de posto (de quem também não me lembro o nome).
Lamentavelmente não convivivíamos, os civis e os militares. em Bambadinca, nomeadamente com a pequena comunidade caboverdiana. Havia preconceitos de parte a parte. As NT punham em dúvida a lealdade dos caboverdianos em relação às autoridades portuguesas... Por outro lado, os comandos de batalhão tinham pouca ou nenhuma sensibilidade "sociocultural",,,
Lamentavelmente não convivivíamos, os civis e os militares. em Bambadinca, nomeadamente com a pequena comunidade caboverdiana. Havia preconceitos de parte a parte. As NT punham em dúvida a lealdade dos caboverdianos em relação às autoridades portuguesas... Por outro lado, os comandos de batalhão tinham pouca ou nenhuma sensibilidade "sociocultural",,,
Foto do álbum do José Carlos Lopes, ex-fur mil amanuense, com a especialidade de contabilidade e pagadoria, especialidade essa que ele nunca exerceu (na prática, foi o homem dos reabastecimentos do batalhão, o BCAÇ 2852).
Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: LG.)
Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: LG.)
SONDAGEM: "NA GUINÉ, DURANTE A COMISSÃO, UTILIZEI OS CTT PARA TELEFONAR PARA CASA"
1. Sim, em Bissau > 19 (23,5%)
2. Sim, fora de Bissau > 13 (16%)
3. Sim, em Bissau e fora de Bissau > 5 (6,2%)
4. Não, nunca utilizei > 44 (54,3%)
5. Já não me lembro > 0 (0%)
Votos apurados (às 21h45, domingo, 19/7/2015): 81
Dias que restam para votar: 4
domingo, 19 de julho de 2015
Guiné 63/74 - P14900: Libertando-me (Tony Borié) (26): Não é fácil
Vigésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Companheiros, isto não é fácil, pelo menos na nossa idade, por quê? Porque quase todos nós, quatro, cinco horas da manhã, já estamos acordados, lá vem a guerra, no nosso caso o aquartelamento de Mansoa, e aí, já a coisa se torna mais fácil, já acordados, bebemos um pouco de sumo de laranja, mas por poucos minutos, pois o nosso pensamento volta a adormecer, o sonho continua, não sabemos se a dormir ou despertos, mas, o cenário repete-se centenas de vezes, estamos sentados, quase nus, numa cadeira feita da metade de um barril de vinho, temos uma cerveja quente, na mão, o sol, que foi tórrido durante o dia, está a pôr-se, para o lado do rio, até podemos ver aquele reflexo amarelo avermelhado, um pouco acima da água da bolanha, os mosquitos zumbem à nossa volta mas não mordem, pois a pele já está “africana”. O Curvas, alto e refilão, não pára de dizer asneiras, tu, companheiro, estás agarrado à leitura da metade da terceira página, enrugada e um pouco rota, de um jornal com data de há um mês, estás encostado à esquina da porta, sem porta, da entrada daquele maldito dormitório, onde estão uns tantos camuflados a secar, por cima dos mosquiteiros, sujos de suor e lama, entre outras coisas, por ali cheira a tudo menos a “esperança”. O “Mister Hóstia”, que era aquele militar muito disciplinado, educado e religioso, vem recomendar-te, com um ar muito delicado, para leres aquele capítulo da Bíblia, onde recomendam qualquer coisa que nós não ouvimos bem, mas ao sair do dormitório, talvez sem dar por isso, dá-te um encontrão, que tu não gostaste, pois com o movimento rasgaste mais um pouco da metade da folha do jornal e, logo lhe respondeste, com um, “oh cara..., já não vês bem”.
Nós, com um sorriso maroto, começámos a contar a história, naquela linguagem de combatente, sem aquelas palavras e frases modernas, que ninguém entende, história esta, que lemos não sabemos onde, mas muitos companheiros, como o Setúbal, o Marafado, o Pastilhas, o Trinta e Seis, mesmo o Mister Hóstia, que veio muito sorrateiramente colocar-se ao nosso lado, claro, com a bíblia na mão, a mostrá-la, e também o Arroz com Pão, que era o dedicado cabo do rancho, também veterano, que sempre lhes arranjava algo para comerem, quando saíam para combate, para irem entretendo o estômago, que não fosse ração de combate, que alguns diziam lhe dava a volta aos intestinos, que na linguagem local era, “panga bariga”, logo se vieram colocar ao nosso lado, para a ouvir, portanto, começámos a falar.
Cá vai:
- Ouçam bem, nada há a fazer, pois a nossa fama já vem de longe, talvez por volta do ano de 1617, está-nos no sangue, éramos e, talvez ainda hoje sejamos assim, queremos ser os melhores, os primeiros, os inovadores, ir lá à frente, sem quase nunca prever as consequências.
Neste momento, o Curvas, alto e refilão, manda-nos calar, com uma linguagem universal, rude, que quase todos nós conhecemos, mas nós continuámos a falar, cá vai.
- Vejam lá que um tal português, nosso antepassado, de nome Luís Mendes de Vasconcelos, fazia, não sabemos a mando de quem, aquelas incursões na África Austral e, de uma dessas vezes, já uns anos depois, (pois aquilo por ali, naquele tempo, era só escolher os que tinham aspecto mais saudável e melhores condições físicas e, carregar para bordo), talvez acompanhado pelos homens ao seu mando, também não sabemos se eram marinheiros ou piratas, invadiu a aldeia de N’dongo, em Luanda, Angola, carregando 60 cativos a bordo do navio negreiro São João Baptista, presos a ferros, homens e mulheres, foram enviados para o porto de Vera Cruz, no México. Os ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, que por aquela altura se consideravam os donos do mar e das ilhas de uma região a que chamavam e ainda chamam “West Indies”, que quer dizer mais ou menos Índias Ocidentais, mas que não têm nada a ver com a Índia, que fica noutro continente, pois esta, é uma região da Bacia do Caribe e Oceano Atlântico Norte, que inclui as muitas ilhas e nações insulares das Antilhas e do arquipélago Lucayan, dizem até, que a culpa foi de um tal Cristóvão Colombo, que na sua primeira viagem às Américas, andando por ali a navegar, pensando que tinha chegado à Índia, lhe começou a chamar esse nome, e daí, os europeus de então, começaram a chamar-lhe Índias Ocidentais, para as diferenciar das ilhas que existem na verdadeira Índia, que são na região do sul e sudeste da Ásia...
Interrompo, só para dizer que o Curvas, alto e refilão, já me está a olhar de lado e a fazer gestos com a garrafa da cerveja vazia, vamos mas é continuar, cá vai a continuação.
- Esses tais Ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, andavam por ali “à pesca”, principalmente dos navios portugueses ou espanhóis, pois sabiam que para cá traziam cativos africanos e, para lá levavam ouro, prata ou especiarias e, quando o marinheiro ou pirata, também não sabemos ao certo, que lá ia em cima, na vigia do navio, White Lion, (Leão Branco), a que também chamavam “The Flying Dutchman”, que quer dizer mais ou menos, “o holandês voador”, gritou com quanta força tinha nos seus já cansados e doentes pulmões, (pois a água potável, já estava racionada a bordo, já ia para duas semanas), para o seu capitão, um tal John Jope, e disse, “Portuguese ship to port, should bring slaves”, que quer dizer mais ou menos, “navio português a bombordo, deve trazer escravos”!
O “Setúbal”, que por sinal era nosso companheiro e amigo, que usou o equipamento camuflado que nos foi distribuído e, ia para as matas e bolanhas, naquele camuflado, já coçado, com as mangas cortadas, levava sempre um “lenço tabaqueiro”, que comprou na loja do Libanês, pendurado no cinto, dizia-nos ele, que era para lhe dar sorte, onde também ia o máximo de carregadores possível assim como uma granada, às vezes duas, que lhe eram distribuídas antes de sair, alguns também levavam uma faca bastante afiada, com uma protecção de cabedal, colocavam os restos das meias, que lhes saíam das botas, algumas rotas, por fora das pernas das calças, interrompeu-nos, para dizer, para não darmos mais “música”, mas continuámos a falar, cá vai.
- Não foi preciso mais nada, junto com seu assistente, o piloto Inglês Marmaduke Rayner, organizaram um ataque, unindo forças, também não sabemos se era um ataque de marinheiros ou um ataque de piratas, mas o certo é que quando se depararam com o navio português, São João Baptista, nessas águas do “West Indies”, atacaram-no e roubaram-lhe toda a sua carga, incluindo os africanos, colocando-os sobre o tal navio Leão Branco, que chegou a Old Point Comfort, que é hoje um lugar histórico na península do estado da Virginia, nos USA, em 20 de agosto de 1619, deixando ali, só 20 dos 60 cativos.
Tivemos outra interrupção, desta vez era o “Trinta e Seis”, o tal soldado que era baixo e forte na estatura, parecia de facto uma “bola”, passe o termo e, quando chamavam por ele, diziam, Trinta e Seis, rola para aqui, ou, o Trinta e Seis, não caminha, rola, o que ele nesse momento mostrava aquele dedo da mão esquerda, muito direito para cima, denunciando um gesto erótico, dizendo-nos, para “cantarmos” e, não falarmos, mas nós continuámos a falar, cá vai.
- E por quê só 20 cativos? Porque os outros 40, quando o tesoureiro do navio Leão Branco, que chegou cerca de quatro dias depois os tentou negociar como troca, para o abastecimento do navio, as negociações não foram aceites, houve mesmo tentativa de luta, então, o capitão ou pirata, também não sabemos ao certo, do navio Leão Branco, talvez zangado, levou toda a sua carga humana, condenando os cativos, não às praias ensolaradas de Bermuda, mas para suas plantações infernais, onde nunca mais se ouviu falar deles. Sabem qual era o preço para a troca destes seres humanos? Era única e simplesmente, água e milho. Falando agora dos outros 20 angolanos, que ficaram em Old Point Comfort, onde dois deles, ou seja, Antonio e Isabella, que receberam nomes cristãos, (nomes que lhe foram dados, como chamamos aos nossos animais de estimação), foram negociados com o capitão William Tucker, para trabalhar na sua plantação e, talvez para mais qualquer coisa, onde, quatro anos mais tarde, Antonio e Isabella se tornaram os pais do primeiro filho preto, escravo, cujo nascimento foi oficialmente documentado na América Colonial. O nome que lhe foi imposto era William Tucker, também o nome do homem que escravizou seus pais e, uma terceira pessoa identificada, a quem foi dado o nome de Pedro. Os restantes 17 não tiveram nome, foram trocados por produtos adicionais para o governador George Yeardley e Abraham Piersey, que os obrigou a trabalho em plantações ao longo do rio James, próximo de onde é hoje a cidade de Charles City, no mesmo estado.
Neste momento, aparece o “Furriel Miliciano”, que adorava um cigarro feito à mão, e diz, “amanhã, às cinco, normal equipamento, só a primeira secção, não esqueçam de levantar as granadas ainda hoje”.
Ainda bem que a nossa esposa e companheira nos deu um abanão e acordou, não fazendo muita diferença, pois a história tinha chegado ao fim. E era verdadeira.
Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14867: Libertando-me (Tony Borié) (25): Depois da guerra
Companheiros, isto não é fácil, pelo menos na nossa idade, por quê? Porque quase todos nós, quatro, cinco horas da manhã, já estamos acordados, lá vem a guerra, no nosso caso o aquartelamento de Mansoa, e aí, já a coisa se torna mais fácil, já acordados, bebemos um pouco de sumo de laranja, mas por poucos minutos, pois o nosso pensamento volta a adormecer, o sonho continua, não sabemos se a dormir ou despertos, mas, o cenário repete-se centenas de vezes, estamos sentados, quase nus, numa cadeira feita da metade de um barril de vinho, temos uma cerveja quente, na mão, o sol, que foi tórrido durante o dia, está a pôr-se, para o lado do rio, até podemos ver aquele reflexo amarelo avermelhado, um pouco acima da água da bolanha, os mosquitos zumbem à nossa volta mas não mordem, pois a pele já está “africana”. O Curvas, alto e refilão, não pára de dizer asneiras, tu, companheiro, estás agarrado à leitura da metade da terceira página, enrugada e um pouco rota, de um jornal com data de há um mês, estás encostado à esquina da porta, sem porta, da entrada daquele maldito dormitório, onde estão uns tantos camuflados a secar, por cima dos mosquiteiros, sujos de suor e lama, entre outras coisas, por ali cheira a tudo menos a “esperança”. O “Mister Hóstia”, que era aquele militar muito disciplinado, educado e religioso, vem recomendar-te, com um ar muito delicado, para leres aquele capítulo da Bíblia, onde recomendam qualquer coisa que nós não ouvimos bem, mas ao sair do dormitório, talvez sem dar por isso, dá-te um encontrão, que tu não gostaste, pois com o movimento rasgaste mais um pouco da metade da folha do jornal e, logo lhe respondeste, com um, “oh cara..., já não vês bem”.
Nós, com um sorriso maroto, começámos a contar a história, naquela linguagem de combatente, sem aquelas palavras e frases modernas, que ninguém entende, história esta, que lemos não sabemos onde, mas muitos companheiros, como o Setúbal, o Marafado, o Pastilhas, o Trinta e Seis, mesmo o Mister Hóstia, que veio muito sorrateiramente colocar-se ao nosso lado, claro, com a bíblia na mão, a mostrá-la, e também o Arroz com Pão, que era o dedicado cabo do rancho, também veterano, que sempre lhes arranjava algo para comerem, quando saíam para combate, para irem entretendo o estômago, que não fosse ração de combate, que alguns diziam lhe dava a volta aos intestinos, que na linguagem local era, “panga bariga”, logo se vieram colocar ao nosso lado, para a ouvir, portanto, começámos a falar.
Cá vai:
- Ouçam bem, nada há a fazer, pois a nossa fama já vem de longe, talvez por volta do ano de 1617, está-nos no sangue, éramos e, talvez ainda hoje sejamos assim, queremos ser os melhores, os primeiros, os inovadores, ir lá à frente, sem quase nunca prever as consequências.
Neste momento, o Curvas, alto e refilão, manda-nos calar, com uma linguagem universal, rude, que quase todos nós conhecemos, mas nós continuámos a falar, cá vai.
- Vejam lá que um tal português, nosso antepassado, de nome Luís Mendes de Vasconcelos, fazia, não sabemos a mando de quem, aquelas incursões na África Austral e, de uma dessas vezes, já uns anos depois, (pois aquilo por ali, naquele tempo, era só escolher os que tinham aspecto mais saudável e melhores condições físicas e, carregar para bordo), talvez acompanhado pelos homens ao seu mando, também não sabemos se eram marinheiros ou piratas, invadiu a aldeia de N’dongo, em Luanda, Angola, carregando 60 cativos a bordo do navio negreiro São João Baptista, presos a ferros, homens e mulheres, foram enviados para o porto de Vera Cruz, no México. Os ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, que por aquela altura se consideravam os donos do mar e das ilhas de uma região a que chamavam e ainda chamam “West Indies”, que quer dizer mais ou menos Índias Ocidentais, mas que não têm nada a ver com a Índia, que fica noutro continente, pois esta, é uma região da Bacia do Caribe e Oceano Atlântico Norte, que inclui as muitas ilhas e nações insulares das Antilhas e do arquipélago Lucayan, dizem até, que a culpa foi de um tal Cristóvão Colombo, que na sua primeira viagem às Américas, andando por ali a navegar, pensando que tinha chegado à Índia, lhe começou a chamar esse nome, e daí, os europeus de então, começaram a chamar-lhe Índias Ocidentais, para as diferenciar das ilhas que existem na verdadeira Índia, que são na região do sul e sudeste da Ásia...
Interrompo, só para dizer que o Curvas, alto e refilão, já me está a olhar de lado e a fazer gestos com a garrafa da cerveja vazia, vamos mas é continuar, cá vai a continuação.
- Esses tais Ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, andavam por ali “à pesca”, principalmente dos navios portugueses ou espanhóis, pois sabiam que para cá traziam cativos africanos e, para lá levavam ouro, prata ou especiarias e, quando o marinheiro ou pirata, também não sabemos ao certo, que lá ia em cima, na vigia do navio, White Lion, (Leão Branco), a que também chamavam “The Flying Dutchman”, que quer dizer mais ou menos, “o holandês voador”, gritou com quanta força tinha nos seus já cansados e doentes pulmões, (pois a água potável, já estava racionada a bordo, já ia para duas semanas), para o seu capitão, um tal John Jope, e disse, “Portuguese ship to port, should bring slaves”, que quer dizer mais ou menos, “navio português a bombordo, deve trazer escravos”!
O “Setúbal”, que por sinal era nosso companheiro e amigo, que usou o equipamento camuflado que nos foi distribuído e, ia para as matas e bolanhas, naquele camuflado, já coçado, com as mangas cortadas, levava sempre um “lenço tabaqueiro”, que comprou na loja do Libanês, pendurado no cinto, dizia-nos ele, que era para lhe dar sorte, onde também ia o máximo de carregadores possível assim como uma granada, às vezes duas, que lhe eram distribuídas antes de sair, alguns também levavam uma faca bastante afiada, com uma protecção de cabedal, colocavam os restos das meias, que lhes saíam das botas, algumas rotas, por fora das pernas das calças, interrompeu-nos, para dizer, para não darmos mais “música”, mas continuámos a falar, cá vai.
- Não foi preciso mais nada, junto com seu assistente, o piloto Inglês Marmaduke Rayner, organizaram um ataque, unindo forças, também não sabemos se era um ataque de marinheiros ou um ataque de piratas, mas o certo é que quando se depararam com o navio português, São João Baptista, nessas águas do “West Indies”, atacaram-no e roubaram-lhe toda a sua carga, incluindo os africanos, colocando-os sobre o tal navio Leão Branco, que chegou a Old Point Comfort, que é hoje um lugar histórico na península do estado da Virginia, nos USA, em 20 de agosto de 1619, deixando ali, só 20 dos 60 cativos.
Tivemos outra interrupção, desta vez era o “Trinta e Seis”, o tal soldado que era baixo e forte na estatura, parecia de facto uma “bola”, passe o termo e, quando chamavam por ele, diziam, Trinta e Seis, rola para aqui, ou, o Trinta e Seis, não caminha, rola, o que ele nesse momento mostrava aquele dedo da mão esquerda, muito direito para cima, denunciando um gesto erótico, dizendo-nos, para “cantarmos” e, não falarmos, mas nós continuámos a falar, cá vai.
- E por quê só 20 cativos? Porque os outros 40, quando o tesoureiro do navio Leão Branco, que chegou cerca de quatro dias depois os tentou negociar como troca, para o abastecimento do navio, as negociações não foram aceites, houve mesmo tentativa de luta, então, o capitão ou pirata, também não sabemos ao certo, do navio Leão Branco, talvez zangado, levou toda a sua carga humana, condenando os cativos, não às praias ensolaradas de Bermuda, mas para suas plantações infernais, onde nunca mais se ouviu falar deles. Sabem qual era o preço para a troca destes seres humanos? Era única e simplesmente, água e milho. Falando agora dos outros 20 angolanos, que ficaram em Old Point Comfort, onde dois deles, ou seja, Antonio e Isabella, que receberam nomes cristãos, (nomes que lhe foram dados, como chamamos aos nossos animais de estimação), foram negociados com o capitão William Tucker, para trabalhar na sua plantação e, talvez para mais qualquer coisa, onde, quatro anos mais tarde, Antonio e Isabella se tornaram os pais do primeiro filho preto, escravo, cujo nascimento foi oficialmente documentado na América Colonial. O nome que lhe foi imposto era William Tucker, também o nome do homem que escravizou seus pais e, uma terceira pessoa identificada, a quem foi dado o nome de Pedro. Os restantes 17 não tiveram nome, foram trocados por produtos adicionais para o governador George Yeardley e Abraham Piersey, que os obrigou a trabalho em plantações ao longo do rio James, próximo de onde é hoje a cidade de Charles City, no mesmo estado.
Neste momento, aparece o “Furriel Miliciano”, que adorava um cigarro feito à mão, e diz, “amanhã, às cinco, normal equipamento, só a primeira secção, não esqueçam de levantar as granadas ainda hoje”.
Ainda bem que a nossa esposa e companheira nos deu um abanão e acordou, não fazendo muita diferença, pois a história tinha chegado ao fim. E era verdadeira.
Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14867: Libertando-me (Tony Borié) (25): Depois da guerra
Guiné 63/74 - P14899: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (9): Viagens (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
1. No seu bate-estradas do dia 14 de Julho de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos de viagens.
VIAGENS
As viagens dão o prazer dos momentos agradáveis em que são realizadas e deixam na mente do viajante todas as impressões sensoriais e cognitivas que os sentidos recolhem. O viajante que regressa já não é o mesmo que partiu.
As nossas vidas são marcadas pelo movimento. Nos primeiros meses de vida é quase nulo, mas à medida que os meses passam os nossos membros vão ganhando músculo e nós vamos ganhando autonomia para nos deslocarmos, primeiro de rastos ou de gatas e na fase seguinte começamos a dar os primeiros passos. Não tarda, com poucos anos de vida vamos correr e saltar como cabritos endiabrados.
As viagens das nossas vidas estarão prestes a começar. Na minha meninice e juventude conheci muitos homens em Brunhoso que andaram milhares e milhares de quilómetros a maior parte a pé, outros a cavalo, dentro da área de 20 quilómetros quadrados que tinha o termo da aldeia.
Os trabalhos agrícolas sem recurso a máquinas e as várias colheitas, ao serviço deles ou de uns e outros a isso os obrigavam. O mar era uma miragem de que ouviam falar mas onde não tinham pernas para chegar.
Antes dos anos sessenta somente alguns tropas tinham a possibilidade de fazer essa longa viagem até ao litoral, da qual se iriam vangloriar para toda a vida. Tinham visto o mar imenso!
As únicas viagens de lazer que se permitiam fazer, era irem a pé ou a cavalo das "bestas" de quando em quando às feiras de Mogadouro ver sobretudo a feira dos animais, bois, vacas, cavalos, burros, mulas. Nesse tempo a feira do gado, em Mogadouro, estendia-se por vários hectares e era considerada uma das maiores feiras, senão a maior, do Norte, de gado bovino.
Iam também por vezes às romarias das terras próximas, onde muitas vezes tinham parentes. As minhas viagens fora da povoação começo a fazê-las com a Alice, uma jovem, "criada" dos meus avós maternos, que tinha o namorado a fazer a tropa na Índia. Com ele estava outro vizinho meu.
Para Brunhoso as viagens de ida e volta deles foram viagens épicas. O sentimento das gentes seria um pouco comparado ao que sentiam os portugueses dos séculos dos descobrimentos quando os seus jovens, comandados pelos grandes navegadores, arriscavam as vidas nessas viagens longínquas. A minha memória de menino transmite-me a impressão que a aldeia festejou o regresso dos dois heróis, que não foram à Lua, pois a Lua em algumas noites parecia tão grande e tão perto da aldeia, só iluminada por ela. Os heróis da terra vinham das Índias, dessas terras do fim do Mundo, depois duma longa viagem de dois meses e depois de uma ausência de três anos. Eram, da terra, mas vinham diferentes, tinham visto os mares imensos, terras longínquas, homens e mulheres doutras raças, cores e credos. As pessoas olhavam-nos nos olhos a tentar decifrar toda a sabedoria que os viajantes trazem das longas viagens por mundos desconhecidos.
As minhas viagens com a Alice, muito próximas da aldeia, eram para mim, nos meus quatro ou cinco anos de idade, para levar os cordeiros e as ovelhas paridas para um pasto melhor, viagens muito importantes e reveladoras. Nunca mais as esqueci. Através dos nossos anos, dos meus e da Alice, ficámos sempre amigos, gosto sempre de a encontrar, de ver o brilho dos olhos dela e o tratamento carinhoso que me dá, quase igual ao de antigamente. Pouco tempo depois passei a ir com o meu padrinho, que era também meu tio-avô com as vacas e os vitelos para os lameiros. Era solteiro, um bom homem, trazia sempre castanhas piladas nos bolsos que me dava de vez em quando. Éramos ambos um pouco distraídos de tal forma que por vezes chegávamos a casa sem as vacas pois elas tinham-se perdido de nós ou nós delas.
Um pouco mais tarde, não muito, passei a ir sozinho com as vacas e os vitelos para os lameiros, contava as horas não pelo relógio, que não tinha, mas pela altura do sol. Para entreter as horas desses dias longos e parados, quando não havia outros vaqueiros por perto, sonhava. Um dia sonhei que todo o lameiro estava coberto de moedas para eu comprar rebuçados e balões. Sonhos de garoto, de garoto guloso.
Com nove anos, antes da escola primária, às 9 horas da manhã, passei a ter que ir todos os dias a Remondes, quer chovesse, quer nevasse, aldeia a cerca de 3 quilómetros buscar leite de vaca, pois em Brunhoso não havia vacas leiteiras e a minha mãe tinha tido uma doença nos peitos e não podia alimentar um menino que tinha nascido. Nessas viagens antes da escola terei andado dois anos ou mais, pois um ano depois desse irmão nasceu uma irmã. Eram seis quilómetros divertidos de caminhada, antes da escola, que fazia na companhia de duas primas e um primo que também tinham irmãos pequenos a precisar desse leite. Tantas viagens, tantas caminhadas que fiz pelos campos e florestas de Brunhoso, à azeitona, à cortiça, a lavrar as terras, a buscar o trigo, a tratar das hortas. Muitas vezes aborrecido e já cansado, farto dessas actividades monótonas e repetitivas.
Hoje reflectindo, olhando para trás, penso que se continuasse nessa vida e não tivesse a tentação dos livros e do conhecimento talvez fosse mais feliz. Os livros nunca nos dão respostas satisfatórias, quando nos respondem a uma interrogação, criam logo duas ou três. Pela curiosidade intelectual nunca atingimos a paz ou o nirvana, pois por esse método, umas respostas conduzem-nos sempre a outras perguntas. Será que Fernando Pessoa, através do seu heterónomo Alberto Caeiro, o poeta do Guardador de Rebanhos, atingiu a paz que dá a vida simples e dura dos campos. Talvez, no breve tempo em que se identificou com esse heterónimo, pois Fernando Pessoa era um espírito inquieto e irrequieto.
Dele e de Camões, os maiores génios da poesia portuguesa, ficou-nos, de Camões, entre outras obras "Os Lusíadas", esse grande hino a esses bravos marinheiros, que fizeram os descobrimentos, e a todo o povo português e, de Pessoa, entre outras "A Mensagem" esse canto sublime com que saudou esses heróis planetários que o levou a sonhar, tal como o Padre António Vieira e outros na realização do Quinto Império de Portugal.
Em termos históricos, depois da Idade Média, já na Idade Moderna, somos o povo que pela coragem e pelos conhecimentos náuticos adquiridos mais contribuiu para alargar o mundo através das viagens pelos mares imensos para além do "mare nostrum" dos romanos, dos gregos, dos fenícios, dos cartagineses e doutros povos das margens do Mediterrâneo. Nós portugueses mostrámos a este pequeno mundo europeu e mediterrânico, que a terra era grande e os Oceanos navegáveis eram imensos. Os nossos navegadores, em condições precárias, aventuraram-se pelo Atlântico, pelo Índico e pelo Pacífico, nessas frágeis caravelas. Até hoje chegam-nos sobretudo a fama dos vencedores, os que foram atingindo objectivos, faltam-nos muitas vezes os que morreram ao tentar atingi-los. A história dos descobrimentos, é uma história de naufrágios, guerras, derrotas, tentativas e sucessos. É a História Trágico-Marítima, da coragem dum povo que abriu as rotas dos mares a toda a humanidade, é a história de um pequeno povo que para viver e se impor perante as nações teve sempre a coragem de enfrentar a morte. Povo que sempre soube levantar a sua bandeira bem alto para se defender de todos os domínios das potências estrangeiras e dos vendilhões da Pátria. Povo que elegeu como seus grandes heróis os grandes poetas Luís de Camões e Fernando Pessoa, pois sabe que a sua grandeza está na alma das suas gentes e a alma dos poetas é que sabe interpretar o seu sentir colectivo.
A caravela foi uma embarcação criada pelos portugueses e usada durante a época dos descobrimentos nos séculos XV e XVI. Era uma embarcação rápida, de fácil manobra, capaz de bolinar e que, em caso de necessidade, podia ser movida a remos. Com cerca de 25 m de comprimento, 7 m de boca e 3 m de calado deslocava cerca de 50 toneladas, tinha 2 ou 3 mastros, convés único e popa sobrelevada. As velas latinas (triangulares) permitiam-lhe bolinar (navegar em ziguezague contra o vento).
Com a devida vénia a Os Descobrimentos Portugueses
Não podemos esquecer Fernão Mendes Pinto, o autor dum grande livro muito lido em toda a Europa, nos séculos dezoito e dezanove, "A Peregrinação". O autor faz uma descrição de todas as suas aventuras pelo Oriente e no final tal como o Velho do Restelo dos Lusíadas, prevê a derrocada do Império por corrupção, abusos e vícios vários.
Ontem como hoje tantos pecados que ninguém sabe corrigir. Esse homem, marinheiro, guerreiro, viajante incansável do mundo quase desconhecido do Oriente, frade, escritor foi um português como tantos, espalhados pelas cinco parte do Mundo, com o gosto das viagens, da aventura, do desconhecido. Para quem ainda não está de todo contaminado pela música comercial anglo-americana, recomendo o álbum de música portuguesa do Fausto Bordalo Dias "Por Este Rio Acima" inspirado na "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, que canta tão bem as suas aventuras e desventuras. Todo o álbum tem letras e músicas que a mim me encantam. Fausto além de ser um grande cantor e músico, também é um grande poeta. Gosto particularmente da canção "Quando às vezes ponho diante dos olhos" em que o aventureiro, já depois do regresso, parece relembrar, em resumo, toda a sua vida agitada, por esses mares e terras do fim mundo, ao serviço de muitos senhores, de muitas causas e à procura dalgum significado para a sua vida.
Há uma grande nostalgia nesse balanço do passado que ataca muito os homens quando se aproxima o fim da vida.
De 1961 a 1974 voltou a ser tempo de muitas viagens para a África do Ocidente e do Oriente. Tantos navios partiram dos cais de Lisboa carregados com tantos homens que poderiam produzir tanta riqueza nos campos ou nas fábricas, isto falando como um economista ou um tecnocrata que nunca fui.
Nesses cais de partidas, cais dos lenços brancos de despedidas, uns diziam adeus à terra, outros diziam adeus à juventude e aos seus ideais. Alguns com medo, outros com curiosidade de descobrir essa África quente e misteriosa, todos iriam saber que existe a palavra saudade e que é bem portuguesa. A grande maioria voltou, alguns inválidos, outros menos feridos, mas quase todos a lembrar o cheiro da pólvora, o troar das bombas e com a triste lembrança de alguns camaradas que por lá caíram, em combate ou em acidentes.
Embarque de militares para África. Lisboa - Cais da Rocha Conde Óbidos - 18 de Agosto de 1965> Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné.
© Foto: Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.
Falando em viagens, não posso deixar de falar nas minhas poucas viagens, mas tão agradáveis, familiares, turísticas e afectivas.
Foi no ano de 2000, estive com a família mais próxima em Nova Yorque, à porta das Torres Gémeas, a pensar se devíamos subir lá ao alto ou não. O preço pareceu-nos caro e para nosso desgosto e para a maior parte da humanidade as Torres foram derrubadas por terroristas assassinos, cerca de um ano depois.
Nos quinze dias que estivemos na América, alguns em Richmond, essa antiga capital aristocrática da Virgínia, que foi também capital americana dos Estados Confederados. É uma cidade histórica, dividida por uma ponte sobre um rio que delimita a parte velha e comercial, histórica e mais pobre, e a parte rica das grandes mansões com jardins e relvados enormes a contorná-las. Nessa zona enorme de ricaços brancos, existem inclusive grandes moradias senhoriais que foram compradas na Europa e reconstruídas lá.
Tivemos uma boa guia que morava em Richmond e que teve a amabilidade de nos guiar também por outras terras. O litoral da Virgínia, Washington, Baltimore, Newark e Nova Iorque. Washington, a capital dos palácios enormes de granito com muitos arcos, colunas e ogivas, que os americanos construíram para imitar a antiga Roma Imperial. Uma cidade grandiosa mas que achei uma cópia demasiado pomposa dessa Roma antiga e a denunciar os mesmos propósitos imperiais.
Nova Iorque seduziu-me, tão bela, mais bela do que os filmes, e são tantos que a retratam. Em Nova Iorque senti-me dentro de um desses filmes. Para mim essa grande cidade pelas suas longas avenidas, pelos edifícios a rivalizar em altura e elegância, foi a revelação de um segredo que eu não suspeitava. A moderna arquitectura dos arranha-céus fazem de N. Y. uma cidade moderna e ao mesmo tempo histórica pela beleza e harmonia das suas construções, que muitas cidades têm tentado imitar neste e no século passado. Nova Iorque pareceu-me a capital do Mundo, uma torre de Babel moderna, onde todos os povos se cruzam com simpatia cada qual com o seu linguajar próprio.
Paris, outro destino turístico e familiar, tem a beleza das grandes capitais medievais e modernas da velha Europa. Um dia conduzidos a pé (grande caminhada!) pela nossa guia, que tinha mudado de país, visitámos uma grande parte dos seus monumentos, pois eles estão situados, não longe do Sena, sobretudo na margem esquerda. Outros mais afastados ou de visita mais demorada, como o Louvre, Notre Dame de Paris, Versailles e outros ficaram para outros dias. Paris pela sua monumentalidade, pela sua história e pelo lugar central que ocupa, é para mim a capital da Europa, e pela cultura francesa e latina em que fui criado, continua a ser, para mim, a capital espiritual e cultural do Mundo.
De Munique que visitamos muitas vezes em viagens afectivas e donde voltamos sempre enriquecidos com mais conhecimentos de toda a Baviera e até da Áustria, de Munique, cidade, gosto imenso de Marianplatz, a sala de visitas da cidade, sempre com muita gente, bávaros ou turistas de muitas origens. Gosto do rio Isar e das suas margens calmas onde por vezes gosto de fazer umas caminhadas, gosto do English Garten, um parque verde e muito arborizado, enorme, onde corre um ramal de água, desviado do Isar, com um grande caudal. Gosto muito de um restaurante num 5.º andar, em frente a Marienplatz onde já fomos por vezes levados pela nossa simpática guia.
Há ainda outros restaurantes bons, onde fomos todos, de que não recordo os nomes. Sei que um era indiano. Perto de Munique, a poucos quilómetros, sessenta talvez, começam os Alpes Bávaros, com alguns lagos de águas claras e límpidas na sua base. É sempre agradável seja Verão ou Inverno visitar esses lagos de águas azuis e tranquilas, esses montes com escarpas que apontam o céu, com mais ou menos neve, conforme as estações do ano, com tanta beleza que se estende a todos eles quer em Passau, quer em Salzburg, já na Áustria, como a outras localidades.
Salzburg, a terra de Mozart esse grande compositor, é uma cidade tão bem construída e enquadrada nessa paisagem alpina de picos escarpados, com neve a tentar esconder-lhe a dureza das arestas afiadas da pedra. Para a impressão no viajante atingir o máximo só faltam os acordes de uma Sinfonia de Mozart a sobrevoar os montes e a entrarem suavemente nos seus ouvidos à medida que pelos olhos vai sentindo o encantamento causado pela paisagem.
Passau, na Baviera, a cidade dos três rios, é diferente de Zalzburgo, mas não lhe fica atrás em graça e beleza. A cidade forma uma pequena península comprimida pelos rios Danúbio dum lado e o Rio Inn do outro, tanto um como o outro rios de grande caudal. Rios que se vão encontrar e misturar as águas na parte final da cidade. Por sua vez o rio Ilz, um rio com menos caudal, vai lançar as suas águas no Danúbio, à vista da cidade, muito pouco antes dos dois maiores rios se encontrarem.
Com tantos espelhos de água e com os Alpes carregados de neve a refulgirem e a reflectirem-se também nessas águas imensas, Passau vai deixar sempre marcas que não se apagam na alma de ninguém.
Regensburg uma cidade média com arquitectura mais antiga e moderna, bem combinada é também banhada pelo grande Danúbio que lá corre com grande caudal, Nuremberg com um centro antigo, medieval e bem conservado, fomos lá num dia muito frio, bebi lá vinho quente com rum que me aqueceu cá dentro o corpo e a alma. Era o tempo das Feiras do Natal.
Este é um resumo possível, que já vai muito longo, de algumas viagens que fiz com a família, mais ou menos alargada, conforme os dias livres de cada um.
A última viagem que fizemos nos arredores de Munique foi ao castelo de Neuschwanstein, esse castelo erguido em cima de penhascos dos Alpes Bávaros por Luís II da Baviera, esse rei poeta ou louco e megalómano. Construção grande em comprimento e altura do edifício e sobretudo das suas torres. Destaca-se pela beleza arquitectónica bem enquadrada na natureza que o rodeia.
Hoje olhamos para esse castelo de lenda e ficamos a pensar nas feiticeiras e fadas, nas bruxas más, nas princesas e belas adormecidas dos nossos contos de meninos, e quase somos levados a acreditar que elas vivem nesse Castelo e que Luís II da Baviera, esse rei que teria tanto de louco como de menino, continua a viver lá com elas.
Boas viagens para todos!
Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14898: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (8): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho de 2015: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista - Parte I: Com o nosso 1º cabo Eduardo Jorge Ferreira, promovido a sargentos por feitos heroicos em campanha...
VIAGENS
As viagens dão o prazer dos momentos agradáveis em que são realizadas e deixam na mente do viajante todas as impressões sensoriais e cognitivas que os sentidos recolhem. O viajante que regressa já não é o mesmo que partiu.
As nossas vidas são marcadas pelo movimento. Nos primeiros meses de vida é quase nulo, mas à medida que os meses passam os nossos membros vão ganhando músculo e nós vamos ganhando autonomia para nos deslocarmos, primeiro de rastos ou de gatas e na fase seguinte começamos a dar os primeiros passos. Não tarda, com poucos anos de vida vamos correr e saltar como cabritos endiabrados.
As viagens das nossas vidas estarão prestes a começar. Na minha meninice e juventude conheci muitos homens em Brunhoso que andaram milhares e milhares de quilómetros a maior parte a pé, outros a cavalo, dentro da área de 20 quilómetros quadrados que tinha o termo da aldeia.
Os trabalhos agrícolas sem recurso a máquinas e as várias colheitas, ao serviço deles ou de uns e outros a isso os obrigavam. O mar era uma miragem de que ouviam falar mas onde não tinham pernas para chegar.
Antes dos anos sessenta somente alguns tropas tinham a possibilidade de fazer essa longa viagem até ao litoral, da qual se iriam vangloriar para toda a vida. Tinham visto o mar imenso!
As únicas viagens de lazer que se permitiam fazer, era irem a pé ou a cavalo das "bestas" de quando em quando às feiras de Mogadouro ver sobretudo a feira dos animais, bois, vacas, cavalos, burros, mulas. Nesse tempo a feira do gado, em Mogadouro, estendia-se por vários hectares e era considerada uma das maiores feiras, senão a maior, do Norte, de gado bovino.
Iam também por vezes às romarias das terras próximas, onde muitas vezes tinham parentes. As minhas viagens fora da povoação começo a fazê-las com a Alice, uma jovem, "criada" dos meus avós maternos, que tinha o namorado a fazer a tropa na Índia. Com ele estava outro vizinho meu.
Para Brunhoso as viagens de ida e volta deles foram viagens épicas. O sentimento das gentes seria um pouco comparado ao que sentiam os portugueses dos séculos dos descobrimentos quando os seus jovens, comandados pelos grandes navegadores, arriscavam as vidas nessas viagens longínquas. A minha memória de menino transmite-me a impressão que a aldeia festejou o regresso dos dois heróis, que não foram à Lua, pois a Lua em algumas noites parecia tão grande e tão perto da aldeia, só iluminada por ela. Os heróis da terra vinham das Índias, dessas terras do fim do Mundo, depois duma longa viagem de dois meses e depois de uma ausência de três anos. Eram, da terra, mas vinham diferentes, tinham visto os mares imensos, terras longínquas, homens e mulheres doutras raças, cores e credos. As pessoas olhavam-nos nos olhos a tentar decifrar toda a sabedoria que os viajantes trazem das longas viagens por mundos desconhecidos.
As minhas viagens com a Alice, muito próximas da aldeia, eram para mim, nos meus quatro ou cinco anos de idade, para levar os cordeiros e as ovelhas paridas para um pasto melhor, viagens muito importantes e reveladoras. Nunca mais as esqueci. Através dos nossos anos, dos meus e da Alice, ficámos sempre amigos, gosto sempre de a encontrar, de ver o brilho dos olhos dela e o tratamento carinhoso que me dá, quase igual ao de antigamente. Pouco tempo depois passei a ir com o meu padrinho, que era também meu tio-avô com as vacas e os vitelos para os lameiros. Era solteiro, um bom homem, trazia sempre castanhas piladas nos bolsos que me dava de vez em quando. Éramos ambos um pouco distraídos de tal forma que por vezes chegávamos a casa sem as vacas pois elas tinham-se perdido de nós ou nós delas.
Um pouco mais tarde, não muito, passei a ir sozinho com as vacas e os vitelos para os lameiros, contava as horas não pelo relógio, que não tinha, mas pela altura do sol. Para entreter as horas desses dias longos e parados, quando não havia outros vaqueiros por perto, sonhava. Um dia sonhei que todo o lameiro estava coberto de moedas para eu comprar rebuçados e balões. Sonhos de garoto, de garoto guloso.
Com nove anos, antes da escola primária, às 9 horas da manhã, passei a ter que ir todos os dias a Remondes, quer chovesse, quer nevasse, aldeia a cerca de 3 quilómetros buscar leite de vaca, pois em Brunhoso não havia vacas leiteiras e a minha mãe tinha tido uma doença nos peitos e não podia alimentar um menino que tinha nascido. Nessas viagens antes da escola terei andado dois anos ou mais, pois um ano depois desse irmão nasceu uma irmã. Eram seis quilómetros divertidos de caminhada, antes da escola, que fazia na companhia de duas primas e um primo que também tinham irmãos pequenos a precisar desse leite. Tantas viagens, tantas caminhadas que fiz pelos campos e florestas de Brunhoso, à azeitona, à cortiça, a lavrar as terras, a buscar o trigo, a tratar das hortas. Muitas vezes aborrecido e já cansado, farto dessas actividades monótonas e repetitivas.
Hoje reflectindo, olhando para trás, penso que se continuasse nessa vida e não tivesse a tentação dos livros e do conhecimento talvez fosse mais feliz. Os livros nunca nos dão respostas satisfatórias, quando nos respondem a uma interrogação, criam logo duas ou três. Pela curiosidade intelectual nunca atingimos a paz ou o nirvana, pois por esse método, umas respostas conduzem-nos sempre a outras perguntas. Será que Fernando Pessoa, através do seu heterónomo Alberto Caeiro, o poeta do Guardador de Rebanhos, atingiu a paz que dá a vida simples e dura dos campos. Talvez, no breve tempo em que se identificou com esse heterónimo, pois Fernando Pessoa era um espírito inquieto e irrequieto.
Dele e de Camões, os maiores génios da poesia portuguesa, ficou-nos, de Camões, entre outras obras "Os Lusíadas", esse grande hino a esses bravos marinheiros, que fizeram os descobrimentos, e a todo o povo português e, de Pessoa, entre outras "A Mensagem" esse canto sublime com que saudou esses heróis planetários que o levou a sonhar, tal como o Padre António Vieira e outros na realização do Quinto Império de Portugal.
Em termos históricos, depois da Idade Média, já na Idade Moderna, somos o povo que pela coragem e pelos conhecimentos náuticos adquiridos mais contribuiu para alargar o mundo através das viagens pelos mares imensos para além do "mare nostrum" dos romanos, dos gregos, dos fenícios, dos cartagineses e doutros povos das margens do Mediterrâneo. Nós portugueses mostrámos a este pequeno mundo europeu e mediterrânico, que a terra era grande e os Oceanos navegáveis eram imensos. Os nossos navegadores, em condições precárias, aventuraram-se pelo Atlântico, pelo Índico e pelo Pacífico, nessas frágeis caravelas. Até hoje chegam-nos sobretudo a fama dos vencedores, os que foram atingindo objectivos, faltam-nos muitas vezes os que morreram ao tentar atingi-los. A história dos descobrimentos, é uma história de naufrágios, guerras, derrotas, tentativas e sucessos. É a História Trágico-Marítima, da coragem dum povo que abriu as rotas dos mares a toda a humanidade, é a história de um pequeno povo que para viver e se impor perante as nações teve sempre a coragem de enfrentar a morte. Povo que sempre soube levantar a sua bandeira bem alto para se defender de todos os domínios das potências estrangeiras e dos vendilhões da Pátria. Povo que elegeu como seus grandes heróis os grandes poetas Luís de Camões e Fernando Pessoa, pois sabe que a sua grandeza está na alma das suas gentes e a alma dos poetas é que sabe interpretar o seu sentir colectivo.
A caravela foi uma embarcação criada pelos portugueses e usada durante a época dos descobrimentos nos séculos XV e XVI. Era uma embarcação rápida, de fácil manobra, capaz de bolinar e que, em caso de necessidade, podia ser movida a remos. Com cerca de 25 m de comprimento, 7 m de boca e 3 m de calado deslocava cerca de 50 toneladas, tinha 2 ou 3 mastros, convés único e popa sobrelevada. As velas latinas (triangulares) permitiam-lhe bolinar (navegar em ziguezague contra o vento).
Com a devida vénia a Os Descobrimentos Portugueses
Não podemos esquecer Fernão Mendes Pinto, o autor dum grande livro muito lido em toda a Europa, nos séculos dezoito e dezanove, "A Peregrinação". O autor faz uma descrição de todas as suas aventuras pelo Oriente e no final tal como o Velho do Restelo dos Lusíadas, prevê a derrocada do Império por corrupção, abusos e vícios vários.
Ontem como hoje tantos pecados que ninguém sabe corrigir. Esse homem, marinheiro, guerreiro, viajante incansável do mundo quase desconhecido do Oriente, frade, escritor foi um português como tantos, espalhados pelas cinco parte do Mundo, com o gosto das viagens, da aventura, do desconhecido. Para quem ainda não está de todo contaminado pela música comercial anglo-americana, recomendo o álbum de música portuguesa do Fausto Bordalo Dias "Por Este Rio Acima" inspirado na "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, que canta tão bem as suas aventuras e desventuras. Todo o álbum tem letras e músicas que a mim me encantam. Fausto além de ser um grande cantor e músico, também é um grande poeta. Gosto particularmente da canção "Quando às vezes ponho diante dos olhos" em que o aventureiro, já depois do regresso, parece relembrar, em resumo, toda a sua vida agitada, por esses mares e terras do fim mundo, ao serviço de muitos senhores, de muitas causas e à procura dalgum significado para a sua vida.
Há uma grande nostalgia nesse balanço do passado que ataca muito os homens quando se aproxima o fim da vida.
De 1961 a 1974 voltou a ser tempo de muitas viagens para a África do Ocidente e do Oriente. Tantos navios partiram dos cais de Lisboa carregados com tantos homens que poderiam produzir tanta riqueza nos campos ou nas fábricas, isto falando como um economista ou um tecnocrata que nunca fui.
Nesses cais de partidas, cais dos lenços brancos de despedidas, uns diziam adeus à terra, outros diziam adeus à juventude e aos seus ideais. Alguns com medo, outros com curiosidade de descobrir essa África quente e misteriosa, todos iriam saber que existe a palavra saudade e que é bem portuguesa. A grande maioria voltou, alguns inválidos, outros menos feridos, mas quase todos a lembrar o cheiro da pólvora, o troar das bombas e com a triste lembrança de alguns camaradas que por lá caíram, em combate ou em acidentes.
Embarque de militares para África. Lisboa - Cais da Rocha Conde Óbidos - 18 de Agosto de 1965> Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné.
© Foto: Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.
Falando em viagens, não posso deixar de falar nas minhas poucas viagens, mas tão agradáveis, familiares, turísticas e afectivas.
Foi no ano de 2000, estive com a família mais próxima em Nova Yorque, à porta das Torres Gémeas, a pensar se devíamos subir lá ao alto ou não. O preço pareceu-nos caro e para nosso desgosto e para a maior parte da humanidade as Torres foram derrubadas por terroristas assassinos, cerca de um ano depois.
As Torres Gémeas do World Trade Center
Com a devida vénia à Wikipédia
Nos quinze dias que estivemos na América, alguns em Richmond, essa antiga capital aristocrática da Virgínia, que foi também capital americana dos Estados Confederados. É uma cidade histórica, dividida por uma ponte sobre um rio que delimita a parte velha e comercial, histórica e mais pobre, e a parte rica das grandes mansões com jardins e relvados enormes a contorná-las. Nessa zona enorme de ricaços brancos, existem inclusive grandes moradias senhoriais que foram compradas na Europa e reconstruídas lá.
Tivemos uma boa guia que morava em Richmond e que teve a amabilidade de nos guiar também por outras terras. O litoral da Virgínia, Washington, Baltimore, Newark e Nova Iorque. Washington, a capital dos palácios enormes de granito com muitos arcos, colunas e ogivas, que os americanos construíram para imitar a antiga Roma Imperial. Uma cidade grandiosa mas que achei uma cópia demasiado pomposa dessa Roma antiga e a denunciar os mesmos propósitos imperiais.
Richmond
Com a devida vénia a iScrap App
Nova Iorque seduziu-me, tão bela, mais bela do que os filmes, e são tantos que a retratam. Em Nova Iorque senti-me dentro de um desses filmes. Para mim essa grande cidade pelas suas longas avenidas, pelos edifícios a rivalizar em altura e elegância, foi a revelação de um segredo que eu não suspeitava. A moderna arquitectura dos arranha-céus fazem de N. Y. uma cidade moderna e ao mesmo tempo histórica pela beleza e harmonia das suas construções, que muitas cidades têm tentado imitar neste e no século passado. Nova Iorque pareceu-me a capital do Mundo, uma torre de Babel moderna, onde todos os povos se cruzam com simpatia cada qual com o seu linguajar próprio.
Paris, outro destino turístico e familiar, tem a beleza das grandes capitais medievais e modernas da velha Europa. Um dia conduzidos a pé (grande caminhada!) pela nossa guia, que tinha mudado de país, visitámos uma grande parte dos seus monumentos, pois eles estão situados, não longe do Sena, sobretudo na margem esquerda. Outros mais afastados ou de visita mais demorada, como o Louvre, Notre Dame de Paris, Versailles e outros ficaram para outros dias. Paris pela sua monumentalidade, pela sua história e pelo lugar central que ocupa, é para mim a capital da Europa, e pela cultura francesa e latina em que fui criado, continua a ser, para mim, a capital espiritual e cultural do Mundo.
De Munique que visitamos muitas vezes em viagens afectivas e donde voltamos sempre enriquecidos com mais conhecimentos de toda a Baviera e até da Áustria, de Munique, cidade, gosto imenso de Marianplatz, a sala de visitas da cidade, sempre com muita gente, bávaros ou turistas de muitas origens. Gosto do rio Isar e das suas margens calmas onde por vezes gosto de fazer umas caminhadas, gosto do English Garten, um parque verde e muito arborizado, enorme, onde corre um ramal de água, desviado do Isar, com um grande caudal. Gosto muito de um restaurante num 5.º andar, em frente a Marienplatz onde já fomos por vezes levados pela nossa simpática guia.
Há ainda outros restaurantes bons, onde fomos todos, de que não recordo os nomes. Sei que um era indiano. Perto de Munique, a poucos quilómetros, sessenta talvez, começam os Alpes Bávaros, com alguns lagos de águas claras e límpidas na sua base. É sempre agradável seja Verão ou Inverno visitar esses lagos de águas azuis e tranquilas, esses montes com escarpas que apontam o céu, com mais ou menos neve, conforme as estações do ano, com tanta beleza que se estende a todos eles quer em Passau, quer em Salzburg, já na Áustria, como a outras localidades.
Salzburg, a terra de Mozart esse grande compositor, é uma cidade tão bem construída e enquadrada nessa paisagem alpina de picos escarpados, com neve a tentar esconder-lhe a dureza das arestas afiadas da pedra. Para a impressão no viajante atingir o máximo só faltam os acordes de uma Sinfonia de Mozart a sobrevoar os montes e a entrarem suavemente nos seus ouvidos à medida que pelos olhos vai sentindo o encantamento causado pela paisagem.
Salzburg, a terra de Mozart
Com a devida vénia a Tripadvisor
Passau, na Baviera, a cidade dos três rios, é diferente de Zalzburgo, mas não lhe fica atrás em graça e beleza. A cidade forma uma pequena península comprimida pelos rios Danúbio dum lado e o Rio Inn do outro, tanto um como o outro rios de grande caudal. Rios que se vão encontrar e misturar as águas na parte final da cidade. Por sua vez o rio Ilz, um rio com menos caudal, vai lançar as suas águas no Danúbio, à vista da cidade, muito pouco antes dos dois maiores rios se encontrarem.
Com tantos espelhos de água e com os Alpes carregados de neve a refulgirem e a reflectirem-se também nessas águas imensas, Passau vai deixar sempre marcas que não se apagam na alma de ninguém.
Regensburg uma cidade média com arquitectura mais antiga e moderna, bem combinada é também banhada pelo grande Danúbio que lá corre com grande caudal, Nuremberg com um centro antigo, medieval e bem conservado, fomos lá num dia muito frio, bebi lá vinho quente com rum que me aqueceu cá dentro o corpo e a alma. Era o tempo das Feiras do Natal.
Este é um resumo possível, que já vai muito longo, de algumas viagens que fiz com a família, mais ou menos alargada, conforme os dias livres de cada um.
A última viagem que fizemos nos arredores de Munique foi ao castelo de Neuschwanstein, esse castelo erguido em cima de penhascos dos Alpes Bávaros por Luís II da Baviera, esse rei poeta ou louco e megalómano. Construção grande em comprimento e altura do edifício e sobretudo das suas torres. Destaca-se pela beleza arquitectónica bem enquadrada na natureza que o rodeia.
Castelo de Neuschwanstein
Com a devida vénia a Wikipédia
Hoje olhamos para esse castelo de lenda e ficamos a pensar nas feiticeiras e fadas, nas bruxas más, nas princesas e belas adormecidas dos nossos contos de meninos, e quase somos levados a acreditar que elas vivem nesse Castelo e que Luís II da Baviera, esse rei que teria tanto de louco como de menino, continua a viver lá com elas.
Boas viagens para todos!
Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14898: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (8): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho de 2015: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista - Parte I: Com o nosso 1º cabo Eduardo Jorge Ferreira, promovido a sargentos por feitos heroicos em campanha...
Guiné 63/74 - P14898: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (8): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho de 2015: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista - Parte I: Com o nosso 1º cabo Eduardo Jorge Ferreira, promovido a sargentos por feitos heroicos em campanha...
Vimeiro, 18 de julho de 2015 > Mercado oitocentista >
Atuação dos gaiteiros da Freiria
Vídeo alojado em Luís Graça > You Tube.
Foto nº1 > A Alice e o 1º cabo Eduardo Jorge Ferreira, "patrão" da reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21 de agosto de 1808) e mercado oitocentista,. que se está a realizar este ano, no Vmeiro, Lourinhã (17-19 de julho)
Foto nº 2 > A> Alice, o Álvaro Carvalho e a Helena do Enxalé (que vieram das Caldas da Rainha de propósito para assitir ao evento e fazer, o Álvaro, vestido de frade fransciscano, a cobertura fotográfica)
Foto nº 3 > A "tomada da igreja": reconstituição
Foto nº 4 > A "artilharia francesa",,,
Foto nº 5 > À esquerda, o nosso 1º cabo, do RI 19, Eduardo Jorge Ferreira, que foi promovido a sragento por feitos valorosos em combate,,,
Lourionhã, Vimeiro > 18 de julho de 2015 > Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21 de agosto de 1808) e mercado oitocentista...
Fotos ( e legendas): © Luís Graça (2015) Todos os direitos reservados.
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Vd.poste da sére >7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14842: Agenda cultural (413): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista... Com apoio da, entre outros parceiros, Associação para a Memória da Batalha do Vimeiro (AMBV) (Eduardo Jorge Ferreira, ex-alf mil, PA, BA 12, Bissalanca, 1973/74)
Último poste da série > 18 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14896: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (7): E o amor não tem cor - poema de José Teixeira, Fermero da CCAÇ 2381
Último poste da série > 18 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14896: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (7): E o amor não tem cor - poema de José Teixeira, Fermero da CCAÇ 2381
Guiné 63/74 - P14897: Parabéns a você (937): Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732 (Guiné, 1970/72) e João António Santos, ex-Alf Mil Rec Inf do BCAÇ 2852 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14888: Parabéns a você (936): Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf da CART 3492 (Guiné, 1971/74) e José Manuel Pechorro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19 (Guiné, 1971/73)
sábado, 18 de julho de 2015
Guiné 63/74 - P14896: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (7): E o amor não tem cor - poema de José Teixeira, Fermero da CCAÇ 2381
1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada,
1968/70), com data de 12 de Julho de 2015:
E como o amor não escolhe cor, junto um poema soltado ao vento há muitos anos que poisou na minha mente, empurrado pelo tempo que nos tornou velhos e de consciência tranquila... ou não, porque o amor, esse, aconteceu, não tenho dúvidas.
E este tempo de férias é bom para re(viver).
Abraços
Zé Teixeira
E o amor não tem cor
Tinha uma pele de uma suavidade intensa,
Pigmentada com laivos do sangue
Que a impregnava e, transformava o negro, negro,
Numa coloração rosada; divinal para os meus olhos sedentos
E coração inflamado de amor.
Assim era a pele daquela jovem africana,
De corpo esbelto e seios firmes.
E o Sol incidindo sobre ela os seus raios doirados,
Dava ainda mais beleza àquele corpo
Talhado por mão divina em noite de lua cheia.
Meu coração deixou-se encandear,
Meus dedos, agilmente, procuraram os pomos ardentes
Que lhe saltavam do peito descoberto,
Atraídos pelo sorriso cativante e acolhedor
Que me devorou as entranhas,
Na ânsia de neles encontrar a chave da porta do futuro.
Um olhar, profundo e firme
Vindo de uns olhos amendoados e de um negro cativante
Disse-me que estava a ser ousado em demasia,
Enquanto duas mãos firmes me retinham o gesto,
Deixando-se ficar entrelaçadas nas minhas mãos atrevidas.
Perdi-me na prisão dos seus braços
E fizemos das nossas vidas o mais belo templo do amor.
José teixeira
____________
Nota do editor
Último poste da série de 16 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14885: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (6): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte III): Álvaro e Helena do Enxalé, sejam bem-vindos à Tabanca Grande!...Oxálá / inshallah / enxalé nos possamos voltar a reunir mais vezes para partilhar memórias (e afetos)... Vocês passam a ser os grã-tabanqueiros nºs 695 e 696
E como o amor não escolhe cor, junto um poema soltado ao vento há muitos anos que poisou na minha mente, empurrado pelo tempo que nos tornou velhos e de consciência tranquila... ou não, porque o amor, esse, aconteceu, não tenho dúvidas.
E este tempo de férias é bom para re(viver).
Abraços
Zé Teixeira
E o amor não tem cor
Tinha uma pele de uma suavidade intensa,
Pigmentada com laivos do sangue
Que a impregnava e, transformava o negro, negro,
Numa coloração rosada; divinal para os meus olhos sedentos
E coração inflamado de amor.
Assim era a pele daquela jovem africana,
De corpo esbelto e seios firmes.
E o Sol incidindo sobre ela os seus raios doirados,
Dava ainda mais beleza àquele corpo
Talhado por mão divina em noite de lua cheia.
Meu coração deixou-se encandear,
Meus dedos, agilmente, procuraram os pomos ardentes
Que lhe saltavam do peito descoberto,
Atraídos pelo sorriso cativante e acolhedor
Que me devorou as entranhas,
Na ânsia de neles encontrar a chave da porta do futuro.
Um olhar, profundo e firme
Vindo de uns olhos amendoados e de um negro cativante
Disse-me que estava a ser ousado em demasia,
Enquanto duas mãos firmes me retinham o gesto,
Deixando-se ficar entrelaçadas nas minhas mãos atrevidas.
Perdi-me na prisão dos seus braços
E fizemos das nossas vidas o mais belo templo do amor.
José teixeira
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14885: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (6): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte III): Álvaro e Helena do Enxalé, sejam bem-vindos à Tabanca Grande!...Oxálá / inshallah / enxalé nos possamos voltar a reunir mais vezes para partilhar memórias (e afetos)... Vocês passam a ser os grã-tabanqueiros nºs 695 e 696
Guiné 63/74 - P14895: Filhos do vento (41): Uma história com final feliz? Fatinha, filha da Maria Mandinga, de Cuntima, encontrou a família do pai e o pai, que está em França (António Bastos, ex-1.º cabo, Pel Caç 953)
com sede em Bissau; cortesia da sua página na Net
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Data: 17 de julho de 2015 às 22:22
Assunto: Filhos do vento: história com final feliz.
Camarada Luís e Tabanca Grande, boa tarde.
Luís, tenho uma história muito feliz a contar é um pouco longa, mas se não for possível! Não há problema, também podes reduzir o texto.
Vamos à história; No dia 2/5/2015, foi o almoço anual do BArt 733 em Santiago do Cacém, não foi organizado por mim mas estou sempre presente.
Passados uns dias, em 18/5/2015, às 20h00 horas toca-me o telefone, era o colega que organizou o almoço (António José, que era da CCS):
- Ó Bastos, ligou-me um africano de Cuntima a perguntar se eu tinha a direcção do F... das transmissões, eu disse que não tinha e não conhecia esse nome, mas que ia ligar para outro colega e depois dizia qualquer coisa.
O António José liga para mim, conta-me o caso e pergunta se pode dar o meu contacto.
Bom, eu sem ser do Batalhão, lá vou tentar resolver este caso, fui à história do BArt 733, não constava ninguém com aquele nome.
Eram 22h00, horas liga-me o Fernando Candé (, o africano de Cuntima, como ele diz):
- Bastos, eu e minha esposa andamos à procura do F... que era de transmissões do 733.
Eu digo-lhe que com esse nome, F..., não havia ninguém no 733, então ele começa a contar-me que não quer saber dos bens que o F... possa ter, mas a esposa só queria dar um beijo no pai e apertá-lo contra o seu coração.
Bom, eu começo a pensar, vou-me meter nalguma, mas ao mesmo tempo com pena da Fatinha (é o nome da esposa do Fernando) e começo por pedir elementos para seguir com o caso.
Bom, eu começo a pensar, vou-me meter nalguma, mas ao mesmo tempo com pena da Fatinha (é o nome da esposa do Fernando) e começo por pedir elementos para seguir com o caso.
- Em que ano nasceu a Fatinha? -
Resposta:
Resposta:
- Quarenta chuvas.
- Como se chama a mãe da Fatinha?
- Maria Mandinga, já faleceu.
- Em que tabanca morava ela?
- Em Cuntima.
Eram poucos elementos para eu poder avançar, mas liguei ao Carlos Silva, a perguntar se havia algum colega dele com esse nome, o Carlos diz-me logo que no Batalhão dele não havia ninguém, fui à nossa tabanca e localizei um colega da CArt 3331, não me sabia dizer, deu-me outro contacto de um colega da Marinha Grande, esse já me ajudou alguma coisa, disse que conheceu a Maria Mandinga e a filha que era pequena, ia sempre às costas da mãe e que talvez tivesse um ano... Isto no ano de 1971. Ela, Fatinha, devia ter 44 ou 45 chuvas, devia ser filha de alguém das unidades que passaram por lá entre 1968 e 1970.
Vou tentar encontrar na nossa tabanca alguém da CCaç 1789, encontro uns quantos, todos do Norte, o Sousa esse conheceu a Maria Mandinga e sabia que tinha tido uma filha de um militar, não me quis dizer mais nada (e eu concordo, maluco sou eu). Deu-me outros contactos, ao ligar ao terceiro contacto, apareceu um colega que me disse que conheceu a Maria Mandinga e a filha, e que o pai era da unidade dele, o F...,
Bom, batia certo com o que o Fernando dizia e, mais, depois de eu falar com o colega que é do Porto, o Teixeira, este logo se prontificou em me ajudar.
Dou o contacto do Teixeira ao africano de Cuntima, e eles encontram-se no dia 6/6/15 em Vila Nova de Gaia que é onde mora o Fernando, foi uma alegria para ambos, o Teixeira convida o Fernando e a Fatinha para almoçar em casa dele no Porto, no almoço o Fernando diz que o nome dele lá na Guiné, é Cherno e não Fernando, e que quando era pequeno (7 anos) estava sempre na oficina a ajudar os mecânicos.
Dou o contacto do Teixeira ao africano de Cuntima, e eles encontram-se no dia 6/6/15 em Vila Nova de Gaia que é onde mora o Fernando, foi uma alegria para ambos, o Teixeira convida o Fernando e a Fatinha para almoçar em casa dele no Porto, no almoço o Fernando diz que o nome dele lá na Guiné, é Cherno e não Fernando, e que quando era pequeno (7 anos) estava sempre na oficina a ajudar os mecânicos.
Depois, no dia do almoço anual da companhia, leva o Fernando e a Fatinha, bom, foi uma alegria para aquele pessoal todo mas uma tristeza para a Fatinha, pois o pai não apareceu porque está emigrado em França, mas o Teixeira consegui-o o contacto e a direcção da família do F... e até do próprio.
Então, o Teixeira mete pernas a caminho e vai sozinho a Vila Nova de Famalicão, encontra a irmã do F..., conta-lhe o que se está a passar e logo resposta da tia da Fatinha:
Então, o Teixeira mete pernas a caminho e vai sozinho a Vila Nova de Famalicão, encontra a irmã do F..., conta-lhe o que se está a passar e logo resposta da tia da Fatinha:
- Quero conhecer a minha sobrinha já.
Já se falaram pelo telefone, já lhe mandou uma foto do pai que está em França e, agora depois de passar o Ramadão, o Fernando, a Fatinha e o casal Teixeira vão-se encontrar com a família de Famalicão para almoçar.
O Teixeira já falou ao telefone com o F..., mas ele não levou a coisa a sério. A família está convencida que ele venha agora de férias. Então vão aguardar.
Eu também vou aguardar, e até pelas fotografias que eles prometeram mandar da família Teixeira, família Baldé, família da tia e até do próprio F... (se ele concordar em dar a cara).
Não me alongo mais um abraço e até breve.
António Paulo S. Bastos,
ex-1º Cabo do Pelotão Caçadores 953,
Não me alongo mais um abraço e até breve.
António Paulo S. Bastos,
ex-1º Cabo do Pelotão Caçadores 953,
Cacheu, Bissau, Farim, Canjambari e Jumbembem, 1964/66
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Nota do editor:
Guiné 63/74 - P14894: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXV: fevereiro de 1973: três meses depois do fim da comissão, faz-se a sobreposição com os "piras" do BCAÇ 4616/73, o "batalhão liquidatário" (mar / ago 1974)
Foto nº 1
Foto nº 2
Foto nº 3
Fotos do álbum do José Carlos Lopes, ex-fur mil amanuense, com a especialidade de contabilidade e pagadoria, especialidade essa que ele nunca exerceu (na prática, foi o homem dos reabastecimentos do batalhão).(*)
Fotos: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Editadas e legendadas por L.G.)
1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir de cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)
[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974); economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; foto atual à esquerda].
O destaque do mês de fevereiro de 1974 (pp. 85/88) vai para:
(i) Fim da comissão do BART 3873 em finais de outubro de 1973; chega o BCAÇ 4616/73, três meses depois (!) para o substituir: período de sobreposição;
(ii) duas flagelações ao destacamento do Mato Cão (, guarnecido pelo Pel Caç Nat 52), cuja missão é assegurar a proteção da navegação no Geba Estreito (entre o Xime e Bambadinca);
(iii) flagelação ao destacamento do Rio Pulom, setor do Xitole, com pronta e eficaz resposta da CART 3942 (Xitole);
(iv) a segurança à coluna logística Bambadinca / Xitole tem contacto com o IN. no subsetor do Xitole;
(v) ataque ao barco civil "Rajá", em Ponta Varela, subsetor do Xime, com RPG e armas automáticas;
(vi) a CCAÇ 12 e a CCAÇ 21 falham objetivo na Op Pró Ronco 2, que era atingir as Pontas Luís Dias e João da Silva, na margem direita o Rio Corubal;
(vii) apoio à preparação do congresso regional do povo do concelho de Bafatá, a realizar em março de 1973.
História da Unidade - BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) - Cap II, pp. 85/88
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Nota do editor:
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BCAÇ 4616/73,
CART 3492,
José Carlos Lopes,
Mato Cão,
Ponta Varela,
retração de aquartelamentos,
Xime
sexta-feira, 17 de julho de 2015
Guiné 63/74 - P14893: Inquérito online: "Na Guiné, durante a comissão, utilizei os CTT para telefonar para casa": 1. Sim, em Bissau; 2. Sim, fora de Bissau; 3. Sim, em Bissau e fora de Bissau; 4. Não, nunca utilizei; 5. Já não me lembro... Fecha 5ª feira, dia 24
Edifício dos CTT de Mansoa, foto de César Dias (c. 1969/71)
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Amigos e camaradas, camarigos:
Alguns camaradas telefonavam, para casa (ou para os amigos, colegas de trabalho, etc.), a partir dos CTT (Bissau, Mansoa, Bambadinca, Bafatá, Gabu, Catió...).
Não havia estações em todo o lado. E as ligações não eram fáceis (*)... Por outro lado, poucos de nós tinham, na época, telefone em casa...
Na Guiné, no nosso tempo, tinha-se de marcar dia e hora, com a menina dos CTT, para ligar para casa, a 4 mil km de distância... Nem sei qual era o tarifário... Felizmente que isso foi no século passado... Mas deve haver histórias à volta deste tema... Uma ou outra já foi contada no blogue (*).
Guiné-Bissau, Gabu, 2005. Antigo edifício, colonial, dos CTT, agora recuperado. Imagem: Tino Neves (1969/71) .. |
Na maior parte dos "buracos" onde (sobre)vivemos não havia estes luxos da civilização... Como não havia outros, ainda mais elementares, como a água potável, a eletricidade, o frigorífico, o rádio... Muitos de nós nunca telefonaram para casa: confesso que foi o meu caso...
Aqui vai o mote para a sondagem desta semana...
SONDAGEM: "NA GUINÉ, DURANTE A COMISSÃO, UTILIZEI OS CTT PARA TELEFONAR PARA CASA".
Responder a uma das cinco hipóteses:
1. Sim, em Bissau
2. Sim, fora de Bissau
3. Sim, em Bissau e fora de Bissau
4. Não, nunca utilizei
5. Já não me lembro
Por favor, não respondam por email, mas sim no sítio próprio, na coluna do lado esquerdo do blogue, ao alto...
Se tiverem fotos de editícios dos CTT (e histórias relacionadas com...), mandem...
Mandem também um bate-estradas nas férias deste verão de 2015... Ao menos para fazer prova de vida!
Abraços, xicorações, beijinhos. Luís Graça
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Nota do editor:
(*) Vd, poste de 17 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14890: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte VII: O edifício dos CTT de Bambadinca: c. 1968/70 e 2010 ... (Fotos completadas com as de Humberto Reis, ex-fur mil op esp., CCAÇ 12, 1969/71)
(*) Vd, poste de 17 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14890: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte VII: O edifício dos CTT de Bambadinca: c. 1968/70 e 2010 ... (Fotos completadas com as de Humberto Reis, ex-fur mil op esp., CCAÇ 12, 1969/71)
Guiné 63/74 - P14892: Agenda cultural (418): 32º festival de Almada: sábado, 18, 20h00, música guineense, o "Djumbai Jazz" (Jorge Araújo)
Data: 17 de julho de 2015 às 12:54
Assunto: Agenda Cultural - 32.º Festival de Almada
Caro Luís,
Quase no limite da data de encerramento, anexo, para os efeitos que entenderes por bem, um pequeno texto elaborado a propósito do festival em epígrafe.
Que tenhas um óptimo fim-de-semana.
Um abraço amigo,
Jorge Araújo.
O nosso blogue apoia a música guineense > Djumbai Jazz
2. Música guineense em Almada, neste sábado, às 20h00
Caros Camaradas Tertulianos.
Anexo informação alusiva ao 32.º Festival de Almada 2015, a decorrer até ao próximo sábado, 18 de Julho, numa organização conjunta entre a Câmara Municipal de Almada e a Companhia de Teatro de Almada.
Trata-se de um festival iniciado em 1983, a nível de Teatro Amador, e que cresceu até se tornar, hoje, num dos festivais de teatro mais referenciados na Europa. A Companhia de Teatro de Almada encerra, deste modo, a sua temporada teatral portuguesa com uma programação diversificada em vinte e sete produções, ao longo de quinze dias, contando com um ciclo de seis espectáculos do “novíssimo teatro espanhol”, reunindo o que de melhor se faz no país vizinho. Outras doze produções chegam-nos de Itália, Suíça, Alemanha, Brasil, Roménia, México e França, representando igualmente o que de melhor se produz no teatro daqueles países. O programa contará, ainda, com nove produções lusas, entre as quais três estreias.
Para Rodrigo Francisco, Director Artístico da CTA, o facto de este Festival ser organizado por uma companhia de teatro independente ajuda certamente a explicar as suas longevidade e estabilidade, assentes numa relação de proximidade quer com o público de Almada, quer com os artistas que nos visitam.
Como criadores que somos, gostamos de confrontar-nos com o que de melhor se faz no mundo. A emulação pode por vezes ser dolorosa – mas tem-nos ajudado a crescer. Assim como ao nosso público, que se torna a cada ano mais exigente e não nos permite a cristalização em soluções já testadas ou fórmulas repetitivas…
Este ano, graças ao prestígio alcançado ao longo do tempo e ás boas-vontades que a Companhia de Teatro de Almada tem sido capaz de reunir, o conjunto de apoios obtidos em Portugal e no estrangeiro permitiu reunir uma programação rara. [E, no que respeita a financiamentos, refira-se que a subvenção da Secretaria de Estado da Cultura a esta Companhia recuou para os valores de 1997].
O festival mantém a sua característica de Festa, com espectáculos de rua todos os dias, exposições e colóquios, para além do teatro e da música, nomeadamente dos PALOP.
No programa musical, destaca-se no próximo sábado, dia 18 de Julho, pelas 20:00 horas, a actuação do «Djumbai Jazz», um quarteto oriundo da Guiné-Bissau.
A sua actuação terá lugar na Esplanada da Escola D. António da Costa, em Almada.
«Djumbai Jazz» é um projecto musical iniciado, nos anos noventa do século passado, por Maio Coopé, cantor, músico e compositor guineense.
Na sua génese, como explica Maio Coopé [Lisboa Africana], está o facto de no seu país, sobretudo nas zonas suburbanas, antes das crianças irem dormir, há uma reunião junto dos mais velhos, ao redor da fogueira. Contam-se histórias e há sempre uma pessoa para cantar. Trata-se de um costume da Guiné-Bissau e que esteve sempre bem próximo dele.
Foi neste ambiente que Maio Coopé se inspirou, transformando-se em nome importante na música tradicional da Guiné-Bissau, mesclando-a com outros ritmos e sonoridades da África Ocidental.
Com um forte abraço de amizade.
Jorge Araújo.
Jul 2015
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Nota do editor:
Guiné 63/74 - P14891: Notas de leitura (737): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2014:
Queridos amigos,
Vamos aos factos quanto à datação e faseamento da literatura da guerra. Nos anos 1960, pontificou a confiança no soldado português e o sentido de missão – é assim que podemos entender os escritos de Manuel Barão da Cunha e as primeiras obras de Armor Pires Mota. À entrada dos anos 1970, Álvaro Guerra deixa-nos parágrafos empolgantes e em 1973 publica “O capitão Nemo e eu”, um livro soberbo onde a Guiné é dona e senhora. E a seguir ao 25 de Abril, com estoiros de pirotecnia José Martins Garcia legou-nos o importantíssimo “Lugar de Massacre”, romance incontornável, um dos motivos de orgulho que devemos ter nesta literatura onde prima a originalidade e o arrebatamento.
Façam o possível por encontrar “Lugar de Massacre”.
Um abraço do
Mário
Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné
Beja Santos
Não é a primeira vez que aqui se fala neste belíssimo romance de José Martins Garcia, um dos primeiros a ser publicado no termo da guerra. Em nota, o autor informa-nos: “Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966-1968, no que respeita à Guiné, não é produto do acaso”.
“Lugar de Massacre” tem merecido sucessivas edições e é alvo de continuada investigação universitária. Não é difícil perceber porquê. É um livro burlesco, codificado, com laivos de surrealismo, pintalgado de uma sexualidade excessiva, é uma obra em que o uso do palavrão aparece como um recurso natural e em que a linguagem é deliberadamente rebuscada de um português antigo, há para ali escrita alquímica e laboratorial. Incorpora uma metáfora da condição humana como escreveu Maria Edite Gordalina da Fonseca numa tese de mestrado que a Veja editou em 2003, em que compara “Lugar de massacre” com “Aparição”, de Vergílio Ferreira. Ela fala num romance-problema, romance que põe um problema e que dá ao leitor várias hipóteses de interpretação. A personagem Pierre Avince é uma das traves-mestres da arquitetura do romance. Pierre é oriundo de um meio social humilde, faz parte de uma espécie de aristocracia intelectual e cultural, é profundamente culto, é a imagem do império à deriva, transporta por todos os lugares de peregrinação os restos de uma mala. Escreve em rememoração, será frequente o leitor confrontar-se com a expressão “alguns anos depois”. A relação com as mulheres é cinzenta, indolor. O livro está carregado de símbolos, Pierre é oficial de transmissões e todo o equipamento que procura montar nunca funciona, é um inteiro fracasso. Pierre Avince é José Martins Garcia ao espelho.
A Guiné, toda ela, é o território onde está confinado o massacre de uma geração. O mato é lugar de massacre, tem aspetos bons quando suscita o isolamento e a clausura. Em termos niilistas, todas aquelas histórias com oficiais são de pôr os cabelos em pé, se acaso as tomássemos a sério, os oficiais em permanentes práticas homossexuais, Pierre vê panascas em todos os sítios, o oficialato é encarado com o mais completo desprezo, ao longo destas viagens só encontramos uma figura positiva, o capitão Camilo, o resto são pessoas desprezíveis.
Bissau é o ponto de partida e o ponto de chegada do romance, Pierre viaja por Catió, Bafatá, Ponta do Inglês, S. Domingos, Ingoré, Sedengal e Suzana. O recurso imagético é diversificado. Por exemplo, Catió tem bolanhas com odor podre; na Ponta do Inglês à para ali uma completa anarquia, um gato misterioso nome de morteiro 81, uma macaca a fazer arremessos de circo, o soldado Zé Burro que adorava fornicar ovelhas, e sofre porque estas não existem na Guiné, nesta Ponta do Inglês há um poilão onde apareceu Cristo. Os espaços interiores ligados a Bissau têm um tratamento insignificante, seja o Quartel-General seja a camarata da neuropsiquiatria do Hospital Militar de Bissau. Bissau é um cenário pintado em tons caricaturais, ali pontificam pessoas tratadas como aberrações ou serviços enigmáticos: “Sua Alteza”, “Chefe dos Comestíveis”, “Secção das Movimentações Perdidas”, “Serviços da Mortandade às Pingas”… Há por ali muita maldade, corrupção e decadência, é espaço dos bacanais típicos de Sodoma e Gomorra.
A instabilidade emocional de Pierre vai em crescendo, adensa-se à medida que se avoluma o dramatismo das situações que o rodeiam. Pierre vive consumido em álcool, do entorpecimento chega aos sinais da loucura, fala com familiares, inexplicavelmente passa a discorrer sobre o tempo e o espaço, as duas categorias fundamentais do entendimento, transformado em argonauta, incapaz de dar algum sentido à existência, anda de lugar em lugar, em jeito de interlúdios para se ganhar novo fôlego e para se perceber o seu desgaste temos a imagem da mala: velha mala, mala desconjuntada, incrível mala desconjuntada e suja, mala de Judeu Errante, farrapos de mala, parece que anda na Guiné a espiar uma culpa e ao mesmo tempo ganha a aguda consciência do absurdo da sua condição.
Obra enigmática ou cabalística, como se entenda. Bissau é uma cidade bíblica, tipo Sodoma e Gomorra, como se pode falar do cativeiro da Babilónia, das redondilhas de Camões, da Mensagem de Fernando Pessoa, tudo vem a propósito ou despropósito da guerra como situação limite, no vazio do tempo, do permanente a desejar da morte. Mas Pierre é um ser que nunca desiste – aí reside a questão central da metáfora da condição humana, mesmo alcoolizado, atormentado pelas imagens da peste que ele vê em Suzana, em pleno chão Felupe.
Mas “Lugar de Massacre” está longe de se confinar a Pierre Avince. O romance, aliás, começa com a chegada à Guiné do jovem conde d’Avince, uma clara imagem do passado, é uma das figuras anacrónicas do império tratadas com vitríolo por José Martins Garcia: “Descendente de uma família guerreira, cem anos inativa por imposição da paz e da prosperidade, coubera-lhe em sorte retemperar os gumes de antanho”. O seu passado é caricaturado para provocar gargalhada, vejamos a mãe do conde d’Avince: “A condessa era virtuosa. Por virtuosa, desposara o homem da sua vida, pálido, louro, tímido, casto, de brasão antigo, de fortuna incerta – mas todo ele aprumo. Uma lua após o himeneu, Dona Violante continuava virgem e dava graças as céu pela correção do esposo. Dom Teodósio, angelical, desflorou-a numa noite chuvosa, depois de algumas consultas, caras, a um especialista. Quando a condessa se convenceu do interessante estado, Dom Teodósio entregou-se com assiduidade às reuniões que, no fundo, constituíam a sua razão de ser. Dom Teodósio presidia à Liga para a Salvação do Passado, organismo completamente brasonado, cujas sessões se desenrolavam até de madrugada agrupando fidalguias, projetos e lamentações”. Este jovem conde que vai para a Guiné é literalmente um inútil, mas sente a sua missão de ir defender o solo sagrado. Foi colocado na Secção das Movimentações Perdidas. Procura amizades, conhece o Silva. Horrorizado, o conde ouve falar o Silva coisas que lhe parecem sinistras, do espiritismo ao vampirismo.
É nisto que entra no romance Pierre Avince, já bem alcoolizado, apresentar-se-á a Sua Alteza perdido de bêbado. Vai viver no quarto do conde e discursa coisas assim: “Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o rei da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou”. O conde reage, mostra a sua indignação. Felizmente que chegou o conde d’Enxeque, veio também trabalhar para os Serviços de Conjugação.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14873: Notas de leitura (736): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Vamos aos factos quanto à datação e faseamento da literatura da guerra. Nos anos 1960, pontificou a confiança no soldado português e o sentido de missão – é assim que podemos entender os escritos de Manuel Barão da Cunha e as primeiras obras de Armor Pires Mota. À entrada dos anos 1970, Álvaro Guerra deixa-nos parágrafos empolgantes e em 1973 publica “O capitão Nemo e eu”, um livro soberbo onde a Guiné é dona e senhora. E a seguir ao 25 de Abril, com estoiros de pirotecnia José Martins Garcia legou-nos o importantíssimo “Lugar de Massacre”, romance incontornável, um dos motivos de orgulho que devemos ter nesta literatura onde prima a originalidade e o arrebatamento.
Façam o possível por encontrar “Lugar de Massacre”.
Um abraço do
Mário
Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné
Beja Santos
Não é a primeira vez que aqui se fala neste belíssimo romance de José Martins Garcia, um dos primeiros a ser publicado no termo da guerra. Em nota, o autor informa-nos: “Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966-1968, no que respeita à Guiné, não é produto do acaso”.
“Lugar de Massacre” tem merecido sucessivas edições e é alvo de continuada investigação universitária. Não é difícil perceber porquê. É um livro burlesco, codificado, com laivos de surrealismo, pintalgado de uma sexualidade excessiva, é uma obra em que o uso do palavrão aparece como um recurso natural e em que a linguagem é deliberadamente rebuscada de um português antigo, há para ali escrita alquímica e laboratorial. Incorpora uma metáfora da condição humana como escreveu Maria Edite Gordalina da Fonseca numa tese de mestrado que a Veja editou em 2003, em que compara “Lugar de massacre” com “Aparição”, de Vergílio Ferreira. Ela fala num romance-problema, romance que põe um problema e que dá ao leitor várias hipóteses de interpretação. A personagem Pierre Avince é uma das traves-mestres da arquitetura do romance. Pierre é oriundo de um meio social humilde, faz parte de uma espécie de aristocracia intelectual e cultural, é profundamente culto, é a imagem do império à deriva, transporta por todos os lugares de peregrinação os restos de uma mala. Escreve em rememoração, será frequente o leitor confrontar-se com a expressão “alguns anos depois”. A relação com as mulheres é cinzenta, indolor. O livro está carregado de símbolos, Pierre é oficial de transmissões e todo o equipamento que procura montar nunca funciona, é um inteiro fracasso. Pierre Avince é José Martins Garcia ao espelho.
A Guiné, toda ela, é o território onde está confinado o massacre de uma geração. O mato é lugar de massacre, tem aspetos bons quando suscita o isolamento e a clausura. Em termos niilistas, todas aquelas histórias com oficiais são de pôr os cabelos em pé, se acaso as tomássemos a sério, os oficiais em permanentes práticas homossexuais, Pierre vê panascas em todos os sítios, o oficialato é encarado com o mais completo desprezo, ao longo destas viagens só encontramos uma figura positiva, o capitão Camilo, o resto são pessoas desprezíveis.
Bissau é o ponto de partida e o ponto de chegada do romance, Pierre viaja por Catió, Bafatá, Ponta do Inglês, S. Domingos, Ingoré, Sedengal e Suzana. O recurso imagético é diversificado. Por exemplo, Catió tem bolanhas com odor podre; na Ponta do Inglês à para ali uma completa anarquia, um gato misterioso nome de morteiro 81, uma macaca a fazer arremessos de circo, o soldado Zé Burro que adorava fornicar ovelhas, e sofre porque estas não existem na Guiné, nesta Ponta do Inglês há um poilão onde apareceu Cristo. Os espaços interiores ligados a Bissau têm um tratamento insignificante, seja o Quartel-General seja a camarata da neuropsiquiatria do Hospital Militar de Bissau. Bissau é um cenário pintado em tons caricaturais, ali pontificam pessoas tratadas como aberrações ou serviços enigmáticos: “Sua Alteza”, “Chefe dos Comestíveis”, “Secção das Movimentações Perdidas”, “Serviços da Mortandade às Pingas”… Há por ali muita maldade, corrupção e decadência, é espaço dos bacanais típicos de Sodoma e Gomorra.
A instabilidade emocional de Pierre vai em crescendo, adensa-se à medida que se avoluma o dramatismo das situações que o rodeiam. Pierre vive consumido em álcool, do entorpecimento chega aos sinais da loucura, fala com familiares, inexplicavelmente passa a discorrer sobre o tempo e o espaço, as duas categorias fundamentais do entendimento, transformado em argonauta, incapaz de dar algum sentido à existência, anda de lugar em lugar, em jeito de interlúdios para se ganhar novo fôlego e para se perceber o seu desgaste temos a imagem da mala: velha mala, mala desconjuntada, incrível mala desconjuntada e suja, mala de Judeu Errante, farrapos de mala, parece que anda na Guiné a espiar uma culpa e ao mesmo tempo ganha a aguda consciência do absurdo da sua condição.
Obra enigmática ou cabalística, como se entenda. Bissau é uma cidade bíblica, tipo Sodoma e Gomorra, como se pode falar do cativeiro da Babilónia, das redondilhas de Camões, da Mensagem de Fernando Pessoa, tudo vem a propósito ou despropósito da guerra como situação limite, no vazio do tempo, do permanente a desejar da morte. Mas Pierre é um ser que nunca desiste – aí reside a questão central da metáfora da condição humana, mesmo alcoolizado, atormentado pelas imagens da peste que ele vê em Suzana, em pleno chão Felupe.
Mas “Lugar de Massacre” está longe de se confinar a Pierre Avince. O romance, aliás, começa com a chegada à Guiné do jovem conde d’Avince, uma clara imagem do passado, é uma das figuras anacrónicas do império tratadas com vitríolo por José Martins Garcia: “Descendente de uma família guerreira, cem anos inativa por imposição da paz e da prosperidade, coubera-lhe em sorte retemperar os gumes de antanho”. O seu passado é caricaturado para provocar gargalhada, vejamos a mãe do conde d’Avince: “A condessa era virtuosa. Por virtuosa, desposara o homem da sua vida, pálido, louro, tímido, casto, de brasão antigo, de fortuna incerta – mas todo ele aprumo. Uma lua após o himeneu, Dona Violante continuava virgem e dava graças as céu pela correção do esposo. Dom Teodósio, angelical, desflorou-a numa noite chuvosa, depois de algumas consultas, caras, a um especialista. Quando a condessa se convenceu do interessante estado, Dom Teodósio entregou-se com assiduidade às reuniões que, no fundo, constituíam a sua razão de ser. Dom Teodósio presidia à Liga para a Salvação do Passado, organismo completamente brasonado, cujas sessões se desenrolavam até de madrugada agrupando fidalguias, projetos e lamentações”. Este jovem conde que vai para a Guiné é literalmente um inútil, mas sente a sua missão de ir defender o solo sagrado. Foi colocado na Secção das Movimentações Perdidas. Procura amizades, conhece o Silva. Horrorizado, o conde ouve falar o Silva coisas que lhe parecem sinistras, do espiritismo ao vampirismo.
É nisto que entra no romance Pierre Avince, já bem alcoolizado, apresentar-se-á a Sua Alteza perdido de bêbado. Vai viver no quarto do conde e discursa coisas assim: “Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o rei da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou”. O conde reage, mostra a sua indignação. Felizmente que chegou o conde d’Enxeque, veio também trabalhar para os Serviços de Conjugação.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14873: Notas de leitura (736): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (2) (Mário Beja Santos)
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