terça-feira, 20 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15271: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (25): De 6 a 26 de Janeiro de 1974

1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 25.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

25 - De 6 a 26 de Janeiro de 1974


Janeiro de 1974

Inicia-se um novo ano. O tipo de actividade operacional não sofreu grandes alterações, mas intensifica-se bastante com o avançar da época seca, que facilita a incursão em regiões até há pouco inacessíveis. Mas essas facilidades no terreno também estão em linha com o incremento da actividade da guerrilha, que já começou a dar sinais com a montagem de uma emboscada, implante de minas e um ataque a Cumbijã.

Os esforços do Batalhão continuaram a ser dirigidos para a protecção às duas frentes de trabalho da Engenharia na estrada A. Formosa-Buba, nos patrulhamentos e contra-penetrações para as regiões da fronteira, Rio Corubal, Rio Buba, Nhacobá e nos corredores de passagem da guerrilha de todo o Sector e, ainda, para acções extraordinárias desencadeadas pelas informações que iam chegando sobre as movimentações da guerrilha.

Novidade são as detecções em radar (presumo que localizado em A. Formosa) de “alvos aéreos não identificados”. Pelo que teve de inédito, transcreverei seguidamente da História da minha Unidade os registos dessas detecções, (como valor documental, e não para reabrir o polémico “dossier” ou, menos ainda, para entrar em polémica). Transcrevo também outros registos relevantes.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

JAN74/06
- (...) – Comandante, Califa, Cherno Secuna, os Chefes de Tabanca e muitos elementos da população inauguraram o troço de estrada alcatroada A. FORMOSA-MAMPATÁ.

JAN74/08
- Realizou-se uma coluna inopinada a BUBA para transporte de víveres e material para o reordenamento de COLIBUIA. (...).


Das minhas memórias: 

 8 de Janeiro de 1974 – (terça-feira): Dia do meu aniversário

A coluna inopinada referida atrás, tinha mesmo de se realizar... Estava com o meu grupo em Buba e o Cap. Braga da Cruz mandou-me uma mensagem de Nhala para que regressasse nessa coluna, a fim de comemorar o meu aniversário. 

Foi uma grande gentileza da sua parte e eu devo ter ficado muito sensibilizado e reconhecido. Sei-o por um aerograma com data de 13-01-74 enviado para a Metrópole dando conta do meu contentamento e agradecendo o telegrama de felicitações que recebera no dia 8. Esse telegrama foi a surpresa que me havia reservado o capitão à minha chegada a Nhala nesse dia. Fazia 23 anos.

Talvez porque o meu grupo estivesse com o regresso para breve, eu já não saí de Nhala. Nos primeiros dias parece que foi bom, mas logo me comecei a aborrecer e a fechar-me no mutismo. Faltava-me a excitação da actividade operacional e a adrenalina que tantas vezes isso trazia. Coisa que não havia em frasquinhos. Comecei a deixar de dormir embora tomasse comprimidos, mas o efeito começou a ser de placebo: efeito zero. 

Hoje levanto o sobrolho interrogando-me: como é que um tipo com vinte e três anos acabados de fazer, se vai assim a baixo sem reagir às contrariedades? Como é que noutras ocasiões me queixava dos excessos da actividade? E como seria quando tudo acabasse? Como regressaria a casa? Claro que obtive algumas respostas na altura certa e talvez volte ao tema. 

Em carta de 15-01-74 queixo-me: “ (...). Ando aborrecido e não me apetece ver nem falar com ninguém. Talvez por não ter nada para fazer nestes dias. Todas as tardes saio sozinho para caçar e me distrair um pouco, apesar de estar um calor imenso. À noite tomo comprimidos para dormir, mas isso já não me faz nada”.

No dia seguinte a esta carta sairia de Nhala para gozo de férias o Cap. Braga da Cruz e, em termos de ambiente, tudo se tornaria mais fastidioso. Então porque não terei regressado a Buba, onde se encontrava o meu grupo para fazer protecção às obras da estrada? 

Talvez porque se avizinhasse o regresso do grupo, pois em carta de 21-01-74, já é referida actividade normal. “ (...). À noite continua a fazer bastante frio. E de manhã cedo sou obrigado a sair de luvas para o mato, como tem acontecido ultimamente. Mas é horrível a sensação de vestir a roupa fria e começar a caminhar debaixo de grande humidade, sempre contraído. Pelo que vejo nas caras dos outros, é a mesma coisa”.

Julgo ser daquele período de ócio forçado que tive em mãos um Auto de Averiguações relativo a um soldado guineense que tinha sido “desterrado” para Nhala, para aguardar as conclusões de um processo que já vinha de Bissau. Era indiciado de ter provocado desacatos e perturbação da ordem pública em Bissau. Para mim, podia ter sido uma boa ocupação, não fora o carácter ad aeternum da empreitada... É que o referido soldado não levava a sério as averiguações em curso nem estava preocupado com as consequências. Tanto que, numa ida autorizada a Bissau para tratar de assuntos, voltou a prevaricar na modalidade da sua preferência: desacatos e perturbação da ordem. 

Antes do seu regresso a Nhala, já eu tinha recebido mais uma nota de quesitos para lhe serem colocados logo que chegasse. No final, que sanção disciplinar poderia eu propor para um indivíduo que era tão maluco mas, ao mesmo tempo, um “gajo porreiro”? Não recordo se cheguei a concluir o Auto de Averiguações mas ele, aos costumes disse nada...


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: Alvos aéreos não identificados:

(...)

JAN74/10
- Como já vem sucedendo há três dias, são detectados pelo radar, entre as 18,30 horas e 22,00 horas, alvos não identificados. Tem-se tentado entrar em contacto com os meios aéreos sem resposta. Hoje o DAKOTA, neste período sobrevoou A. FORMOSA, verificando-se que os meios aéreos, até agora detectados começaram a operar mais longe e com menos frequência. (...).

JAN74/11
- Continuam-se a detectar alvos não identificados no radar e durante o mesmo período do dia anterior. Estiveram em A. FORMOSA o Exmo. TEN-COR PIL AV VASQUEZ e o Sr. CAP ROLA PATA, Cmdt da BAA/7040, a fim de se reunirem com este Comando, para tratar do assunto relacionado com o aparecimento dos alvos não identificados. (...).

JAN74/13
- Pelas 18,40 foram avistados sobre A. FORMOSA alvos aéreos suspeitos, pelo foi executado fogo contra-aeronaves, sem resultado. (...).

JAN74/15
- Esteve em A. FORMOSA um DO com técnico de radar da Aeronáutica, a fim de verificar o aparecimento dos alvos que ultimamente o radar tem acusado. Depois de várias verificações, ainda não se chegou a nenhuma conclusão. (...).

JAN74/16
- Ao fim da tarde A. FORMOSA foi sobrevoada por dois FIAT’s, com a finalidade de pesquisar os alvos indicados pelo radar. Apesar dos aviões terem sido dirigidos sobre os mesmos, nada encontraram. [No dia 27 estiveram de novo em A. Formosa os senhores Ten-Cor PILAV Vasquez e Cap de Artª Rola Pata, para tratarem destes assuntos].

***********

[O PAIGC recomeçou a actividade no Sector. Por reflexo, a nossa actividade operacional recrudesce]

JAN74/20
- Pelas 18,00 horas GR IN não estimado flagelou Destacamento do CUMBIJÃ com 30 granadas de Canhão S/R, durante 20 minutos, com bases de fogos na direcção de BRICAMA, sem consequências. As NT reagiram com fogo de Artª.
- Pelas 19,30 foram avistados do Destacamento de CUMBIJÃ na direcção de CHIN-CHIN DARI vários VERY-LIGHTS.

JAN74/21
- Realizou-se coluna de reabastecimentos a BUBA. Esta coluna transportou 2 GR COMB das CCAV 8350 e 8351, que substituiriam na protecção dos trabalhos de Engenharia os GR COMB da 1ª CCAÇ/4513, que iriam ser empenhados na acção "OBSTRUÇÃO" a Sul do R. BUBA. (...).

JAN74/26
- Pelas 06h40, quando forças da 1.ª CCAÇ/4513 se deslocavam [em coluna auto, acrescento eu] para a protecção dos trabalhos de Engenharia, foram emboscados por GR IN estimado em 50 elementos com RPG, PPSH, KALASHNIKOV durante cinco minutos, na região de XITOLE 2 F 4-39 [no troço da estrada nova entre Buba e Nhala, acrescento eu], causando 1 morto, 1 ferido grave, 4 feridos ligeiros às NT, e 3 feridos ao pessoal de Brigada de Estradas. O IN sofreu 3 mortos confirmados e vários feridos prováveis. Executou-se fogo de artilharia para o itinerário de retirada do IN em direcção ao INJASSANE. Em reconhecimento posterior encontraram-se vestígios de terem sido causados ao IN mais feridos e mortos prováveis. Foram capturados 6 granadas de RPG, 2 carregadores de KALASHNIKOV e 2 Pás-picaretas.


Das minhas memórias:

26 de Janeiro de 1974 – (sábado) – Emboscada na estrada nova: um fiasco da guerrilha

Recordo muito bem esta emboscada. Em Nhala ouviu-se o ataque e rapidamente se aprontaram viaturas para irmos em socorro dos camaradas de Buba. Quando chegámos ao local já tudo tinha terminado porque fora um ataque relâmpago, mas reinava ainda alguma confusão entre a nossa tropa, natural nestas situações. Depois de observar a situação na estrada enquanto o pessoal se recompunha, e de me inteirar do modo como fora desencadeado o ataque e como decorrera, fui à vala de onde ele partira, – melhor diria, fui à “trincheira”. Fiquei incrédulo. Se não tivessem havido mortos de parte a parte, tudo ali parecia indicar que se tratara de uma brincadeira ou de que estariam a gozar com as nossas tropas. Abriram uma vala enorme e deram-se ao luxo de talhar nas paredes, em vários pontos, bases para assentar metralhadoras (não referidas na HU) e, defronte, o assento do atirador. Aquilo não se fazia num dia nem em dois.

As notas que tenho sobre esta emboscada não coincidem totalmente com os dados que agora leio na História da Unidade. É referido que tivemos 1 morto e um ferido grave mas, é possível que esse ferido tivesse morrido pouco depois porque eu tenho anotado 2 mortos. Eram os picadores que vinham apeados à frente da coluna (?), alvejados por um único atirador que saiu da vala e ficou de pé a disparar. Tenho anotado 11 feridos ligeiros, a maioria ocupantes de uma Berliet que, por precipitação do condutor que saltou da viatura sem premir o botão que a faria parar, fez com que ela batesse com violência contra uma árvore fora da estrada. Quando lá cheguei ainda assim estava. Houve um outro ferido que foi vítima da “explosão” da própria G-3: tinha disparado todos os seus carregadores e depois sacou os carregadores de um soldado que tinha ficado “bloqueado” e em pânico ao seu lado. Como a G-3 não era preparada para tantos disparos, começou por ficar quase ao rubro e depois, simplesmente, torceu a extremidade do cano e bloqueou a saída das munições.

O que mais me espantou no cenário que encontrei, foi que, numa vala que calculámos na altura seria para mais de 100 homens, (a História da Unidade refere apenas 50), e estando a cerca de 150 metros da estrada, não terem feito mais vítimas numa coluna em marcha lenta (?) e com apenas algumas árvores a interporem-se. 

Comentei na altura e posso reafirmar: o meu grupo naquela vala, devidamente organizado para a função de cada um, e poucos sobreviventes deixaria na coluna. Eles, ao contrário, deixaram muitos rastos de sangue entre a vala e a mata, a 50 metros, por onde retiraram. Passados 5 dias, em 31-01-74, foram lá colocar na estrada e no mesmo sítio, duas minas anticarro (que o nosso pessoal levantou), tentando compensar o autêntico malogro que fora aquela emboscada. (A História da Unidade refere o dia 30 como sendo a data da detecção e levantamento das duas minas TMD-44). Alguns dias depois, de passagem, fotografei o local da emboscada.


Foto 1: Janeiro de 1974, estrada Buba-Nhala. Fotografia tirada da berma da estrada no sítio onde ocorreu a emboscada. À esquerda e à direita da imagem, não visíveis, existiam árvores espaçadas mas de grande porte, numa das quais embateu com violência, uma das Berliet carregada de pessoal. Assinalei a tracejado a localização aproximada da vala de onde partiu o ataque. No chão podem ver-se em primeiro plano algumas das embalagens das nossas munições.



As frentes de trabalho da estrada nova

No final de Janeiro de 1974, as frentes de trabalho da Engenharia avançavam a um ritmo impressionante, com a frente de Buba quase às portas de Nhala (8 km de desmatação e 7 km de alcatroamento) e com a frente de A. Formosa (9 km de desmatação e 7,7 km de alcatroamento), já com o troço A. Formosa-Mampatá inaugurado. Nesta fase, a minha Companhia estava empenhada na protecção às obras na frente de trabalhos de Buba por razões lógicas. São desse período as fotografias que mostrarei a seguir.


Foto 2: O meu grupo de combate numa manhã magnífica a caminho da frente de trabalhos da estrada A. Formosa-Buba, na frente de Buba.



Foto 3: Chegada dos capinadores. Acabados de apear das viaturas, irão começar uma jornada dura sob o sol escaldante que não tardaria.



Foto 4: Quase em simultâneo chegam as máquinas da Engenharia. À direita reconheço o Manuel Esteves do meu grupo com a G-3 ao ombro e à frente da viatura o Custódio, maqueiro (ou ajudante de enfermeiro).



Foto 5: Ainda não nos instalámos, mas a confusão já começou. A atravessar vê-se um GC que deve ser da 1ª CCAÇ de Buba. O meu grupo está a aguardar à direita.



Foto 6: Uma viatura da Engenharia corre levantando pó no troço já pronto. Pronto, mas não concluído, porque durante um longo período faltou o alcatrão.



Foto 7: Descarga de terra para a sub-base da estrada.


Foto 8: O meu grupo na “pedreira” e, ao fundo, a estrada nova. É na mata ao cimo da “pedreira” que iremos passar todo o dia emboscados.



Foto 9: À frente dos soldados o “PIFAS”. Era um cão criado por mim e que depois passou para a propriedade do grupo, acompanhando-nos sempre com muita disciplina. Até ao dia em passou a ser inconveniente pondo-nos em risco. Doente, esquelético e provocador dos macacos-cães, foi sujeito à “solução final”.



Foto 10: Furriel Domingos Oliveira, envolto num enxame daquela mosquinha chata que nos entrava no nariz e nos ouvidos. Na imagem, a maioria ficou fora de foco.



Foto 11: Furriel José Maria Pastor.


Foto 12: Um abrigo de circunstância junto ao morteiro 60. De costas, o 1.º Cabo Maqueiro lê, para passar o tempo.



Foto 13: O morteiro de 60mm e o respectivo arsenal, num local que era suposto ser seguro.


Foto 14: Elementos assalariados da desmatação.


Das minhas memórias: Um incidente quase perfeito

O grupo civil de capinadores e da desmatação, largas dezenas e, muitos deles, quase crianças, chegavam todos os dias à frente de trabalho sorumbáticos mas muito disciplinados. Nunca soube nada a respeito deles: quantos eram, de onde vinham, de que etnias eram, quanto ganhavam, enfim. Sempre me pareceu que nos ignoravam ostensivamente ou, até, com hostilidade. Esses que mostro na fotografia 14, deixaram-se fotografar sem nunca se virarem ou darem um sinal de que me pressentiram. 

Pouco depois, com outros que ficaram fora do enquadramento, protagonizaram um incidente, em que eu tive também responsabilidades, e que podia ter originado consequências graves. Estava todo o grupo em grande sossego quando fomos surpreendidos por um fogo que caminhava rápido para o local onde tínhamos empilhadas as granadas do morteiro e, próximo, também as da bazuca. Saio a correr e percebo logo que aquilo tinha sido incendiado muito próximo de nós. Só podia ser intencional. 

Depois de fazer retirar todo o equipamento do alcance das labaredas, gritei para o grupo que trabalhava com a moto-serra, relativamente próximo, e que fingia não se aperceber de nada, assim como fingiram não me ouvir. Furioso e num impulso, disparei uma rajada longa por cima das suas cabeças para que reagissem, virando-se para mim. Fizeram de conta que não ouviram nada. Decidi ir lá ao pé deles enfrentá-los mas, antes, tive que ajudar a mudar o grupo para um sítio seguro com todo o material. 

Entretanto começo a ouvir uma viatura da Engenharia lá em baixo na estrada, que se aproximava a buzinar continuamente. Ao aproximar-me da borda da “pedreira”, vejo o condutor saltar para o chão e correr para mim aos berros, de braços abertos, a dizer “Parem, parem!...” Sem entender, vou ao seu encontro e diz-me ele, então, que íamos provocando uma catástrofe, pois o grupo de combate de Buba, que estava ali na mata a menos de um quilómetro, ouviu as rajadas e já estava a preparar o morteiro quando ele, que passava com viatura, se apercebeu da intenção e do equívoco, já que também tinha ouvido a rajada mas reconhecendo-a como sendo de G-3. Parou a viatura e alertou-os para o disparate que se preparavam para cometer. Eles acederam mas pareceu-lhe que estavam muito excitados. Pouco depois liguei por rádio para o alferes desse grupo para lhe pedir desculpa, mas ele estava furioso e não me recebeu bem. Desligámos a comunicação com maus modos de parte a parte. Até disto a guerra era feita...

(continua)

Texto, fotos e legendas: © António Murta
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 13 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15244: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (24): De 14 de Novembro a 22 de Dezembro de 1973

Guiné 63/74 - P15270: Da Suécia com saudade (55): Despedida do blogue, dos editores e de todos os de mais camaradas... Afinal, também há 4 décadas saí do nosso querido Portugal sem bilhete de ida e volta... Os amigos terão sempre uma "casa portuguesa" ao dispor, na Lapónia sueca, em Estocolmo, ou em Key West, Flórida, EUA (José Belo)


Suécia > Rapadalen, Ráhpavágge, Rapa Valkey ou ValE de Rapa > Com 35 km de comprimento, é o maior vale do Parque Nacional Sarek que integra a província da Lapónia, Lappland (onde vivem os "sami" ou lapões, e que ocupam 25% do território da Suécia).. Foto enviada pelo nosso grã-tabanqueiro José Belo, o nosso "luso-lapão"...


1. Mensagem de José Belo:

 [ foto atual à esquerda: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos; no outono / inverno, costuma "emigrar" para Key West, Florida, EUA, onde a família tem negócios]:

Data: 17 de outubro de 2015 às 19:59

Assunto: Bilhetes de ida... sem volta.

Caros Amigos e Camaradas

Aproveito o envio dos últimos documentos (ª)  para me despedir do Blogue, dos seus Editores, e não menos, de todos os Camaradas.

Foi sem dúvida uma interessante viagem (no tempo, nas recordaçöes e na amizade) aquela que tive a oportunidade de efectuar através da Tabanca Grande.

Reencontrar Amigos desde há muito não contactados, ao mesmo tempo que se criaram algumas novas e sinceras amizades com Camaradas nunca encontrados pessoalmente.

Verifiquei (com espanto) ter contribuído para o blogue com mais de centena e meia de textos [, descritores: José Belo,  Da Suécia com saudade], para não referir algum "protagonismo" exagerado nos demasiados "comentários".

Há quatro décadas, decidi sair do nosso querido Portugal sem bilhete de ida e volta. Tanto então como hoje não me arrependi.

Fernando Pessoa [, através do seu heterónimo Álvaro Campos,] escreveu  [no poema "Marinetti Mecânico"]: 

(...) Partir! 
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia (...).


Os Amigos têm sempre uma "casa portuguesa" ao dispor, tanto na Lapónia sueca como em Estocolmo, ou em Key West, Flórida, USA.

Um grande e sincero abraço do
José Belo

2. Resposta do editor Luís Graça, no mesmo dia:

Zé Belo:

O blogue pode continuar sem ti, é verdade, mas não é o mesmo blogue sem ti... Sem a Tabanca da Lapónia, ficamos mais pequenos... Como poderei doravante evocar a "grandeza" da Tabanca Grande, comparada ciom a "pequenez" do Mundo, ignorando ou escamoteando a "baixa" pesadíssima que representa a "saída" do único luso-lapão e a "perda" do respetivo território? É um grande rombo no "porta-aviões" do blogue dos amigos e camaradas da Guiné...


Como vamos fazer o luto da perda de 119 mil km2 e mais de 100 mil almas, depois de nos habituarmos  a gritar "Lapónia, é nossa!... Lapónia, é nossa!", e denunciarmos abertamente  o colonialismo sueco?

Por outro lado, um "guerreiro" como tu não tem substituto... Um português da diáspora da tua qualidade humana não se procura por anúncio de jornal... Não se substitui, não se troca, não se dispensa...


Fico sinceramente desolado com a tua abrupta decisão... Admito que estejas a fazer "non sense"...  E admito que não sejua nada de definitivo,  que uma despedida definitiva provisório, que seja afinal mais uma das tuas viagens de "transumância" em que levas as tuas "renas" da gélida Lapónia para a tropical Florida...

De qualquer modo, é um direito que te assiste, o de entrar e sair do blogue, sempre que te der na real gana... Mas não queres explicitar a razão por que decides agora, de vez, "arrumar as botas", se é que é a expressão correta? 


Zé, cansaste-te da malta? Alguém te insultou, magoou ou tratou mal? Eu sei que às vezes é preciso muito "self control" para aturar estes "tugas" da Tabanca Grande... Estamos a ficar velhos, é isso... E com menos tolerância, pachorra, paciência,  uns para com os outros, será?!... Ou tens, antes, motivos pessoais, familiares, de saúde, ou outros da tua esfera íntima, que não queres partilhar connosco?

Em suma, não defiro o teu pedido de "retirement"... Um guerreiro como tu, morre de pé... E eu ainda queria passar pela tua casa, um dia destes, para provar o teu vodka e agradecer a tua camarigagem...

Até logo, até sempre, bom camarada e melhor amigo.

Luís


3. Resposta pronta do José Belo (a quem a gente só pode desejar boa viagem, com as suas "renas",  até Key West, mas sempre na esperança de que lá para a próxima primavera ele nos volte a mandar um email,  a dizer "olá, aquio estou"):


Obrigado pelas tuas palavras amigas.

O meu afastamento bloguista mais näo é que o resultado de sentimento que desde há muito se tem vindo a instalar.

Cada vez me reconheço menos nos acontecimentos que vão surgindo no nosso querido Portugal, e na maneira como a nossa gente reage aos mesmos.


Continuando a sentir-me como parte da tal "nossa gente",  confunde-me este meu estado de espírito.

Os portugueses que vivem longe, para mais desde há muito, não serão de modo algum melhores, mais patriotas, ou mesmo mais "videntes" que os locais.

Mas atrevo-me a dizer que o amor que sentem por Portugal talvez seja mais profundo por não dependente de influências circunstanciais, não menos na área política e económica.


Não se deve no entanto relativizar o facto de estes estados de alma terem grande importância para o "sujeito", menos para o "predicado", e ainda muito menos para os "complementos", sejam eles directos ou indirectos.


[Imagem acima : A criatura e o seu criador, o Zé Povinho e o Rafael Bordalo Pinheiro, mural do Metro de Lisboa, Estação Aeroporto. Cortesia de Wikipedia. Edição de LG](**)
______________

Notas do editor:

(*) Dois últimos postes da série >

19 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15268: Da Suécia com saudade (54): Relendo o livro do prof Patrick Chabal, "Amilcar Cabral: Revolucionary Leadership and People's War" (1983): o PAIGC e a saúde (José Belo)

18 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15262: Da Suécia com saudade (53): Relendo o livro do prof Patrick Chabal, "Amilcar Cabral: Revolucionary Leadership and People's War" (1983): o congresso de Cassacá (José Belo)

(**) Vd- artigo de Romana Borja-Santos, " Fernando Pessoa, Amália, Eusébio e Zé Povinho presentes na estação de Metro do Aeroporto", Público, 16/7/2012

(...) “Os desenhos são em pedra cortada a laser, com mármores preto e branco incrustados em pedra lioz. Mas brilham tanto que as pessoas até pensam que são de plástico. Pedi à empresa que o mármore fosse o mais liso possível para interferir menos no desenho”, explica António Antunes em entrevista ao PÚBLICO. “Deixei de lado a crítica e estas são caricaturas simpáticas, sobretudo de homenagem a gente que nos marcou”, diz." (...)

Guiné 63/74 - P15269: Parabéns a você (977): Fernando Súcio, ex-Soldado Condutor Auto do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil da CART 643 (Guiné, 1964/66)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15265: Parabéns a você (976): Carlos Filipe Coelho, ex-Soldado Radiomontador do BCAÇ 3872 (Guiné, 1971/74) e Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15268: Da Suécia com saudade (54): Relendo o livro do prof Patrick Chabal, "Amilcar Cabral: Revolucionary Leadership and People's War" (1983): o PAIGC e a saúde (José Belo)

1. Mensagem de José Belo:

 [ foto atual à direita: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos; no outono / inverno, costuma "emigrar" para Key West, Florida, EUA, onde a família tem negócios]:


Data: 17 de outubro de 2015 às 13h15

Assunto: Notas de leitura: Patrick Chabal, Professlor de "Lusophone African Studies" [Estudos africanos lusófonos], no King's College]. London, Cambridge University Press, 1983. Parte II: O PAIGC e a saúde (*)


Com o surgir da guerra a necessidade de cuidados médicos aumentou dramaticamente. O PAIGC não podia negligenciar o tratamento dos seus militares.

Cabral desde logo compreendeu que simples hospitais provisórios näo seriam suficientes para tal.
A política então seguida pelo partido procurou desenvolver um sistema sanitário que poderia vir a constituir a base de futuros servicos médicos nacionais no pós-independência. Procurava-se criar uma estrutura que viesse a beneficiar simultaneamente as populações rurais e os militares.

Tornou-se desde logo evidente serem os problemas surgidos com a implantação de um sistema de saúde, mesmo que limitado, muito superiores aos relacionados com os programas de educação. Por exemplo, o pessoal de enfermagem necessita de um treino profissional muito mais demorado e elaborado do que professores escolares ao níível de tabanca.

O equipamento, mesmo que rudimenter, é também essencial e caro.

Em 1964 a assistência sanitária foi criada em cada uma das estruturas locais do PAIGC. De facto, continuou a ser um serviço de características mínimas, com um dos cinco membros dos Comités de Aldeia encarregado desta assistência.

Mas, um tal sistema para ser efectivo tornava necessário uma centralização de meios. O objectivo principal do PAIGC era o de estabelecer locais de tratamento em todos os níveis administrativos do país (região,sector ou tabanca) desenvolvendo métodos efectivos de medicina preventiva nas tabancas.

A magnitude da tarefa é bem demonstrada pelo facto de em 1964 o PAIGC não dispor de um único médico (!). O irmão de Amilcar Cabral, Fernando, que então estudava medicina na Suécia, morreu num acidente de viação no Senegal.



Foto nº 19 > Posto de enfermagem no mato... É impossível identificar e garantir a localização desta foto... tanto podia ser junto à fronteira sul com a Guiné-Conacri como nas matas do Cantanhez... [Legenda original: "A nurse is leaving her staff accommondation on her way to the hospital in the woods in the liberated areas of Guinea Bissau."]

Guiné > PAIGC > s/l> Novembro de 1970 > Uma das fotos do fotógrafo norueguês Knut Andreasson, tiradas por ocasião de um visita de uma delegação sueca (, chefiada pela  deputada social-democrata e antiga presidente do parlamento sueco, Birgitta Dahl; a visita foi à Guiné-Conacri e aos núcleos populacionais controlados pelo PAIGC, as chamadas "áreas libertadas", no período de 6 de novembro a 7 de dezembro de 1970). Algumas destas fotos foram publicadas no livro Guinea-Bissau : rapport om ett land och en befrielserörelse / Knut Andreassen, Birgitta Dahl, Stockholm : Prisma, 1971, 216 pp. [Título traduzido para português: Guiné-Bissau: relatório sobre um país e um movimento de libertação]. (**)

Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa [Com a devida vénia] [Seleção e edição: LG]


A partir de 1971 a situação melhorou consideravelmente com a criação de 9 hospitais (5 no sul, 2 no norte e 2 no leste), oito dos quais sob a contínua chefia de um médico. Estes hospitais dispunham de número suficiente de pessoal de enfermagem apesar de as disponibilidades em equipamentos serem muito limitadas.

Devido aos perigos de bombardeamentos o número de camas hospitalares era reduzido, sendo os pacientes de lá retirados o mais rapidamente possível. Os próprios hospitais mudavam frequentemente de local por razões de segurança.

A existência de 3 hospitais em segurança (!) (2 dentro da República da Guiné, Boké, o principal e junto á fronteira, o outro, Koundara;  e o terceiro em Ziguinchor no Senegal) tornou-se o factor determinante de um eficiente funcionamento hospitalar.

Eram unidades vastas e modernas, bem equipadas (por bem financiadas),dispondo de cirugiões e de outros médicos especialistas.

De acordo com o PAIGC o número de postos sanitários funcionais dentro das áreas libertadas passou de 28 em 1968 a 117 em 1971. Muitos destes postos sanitários eram pequenos e móveis,tratando unicamente os problemas de saúde mais simples. Outros, maiores, sob a direção de um médico, funcionavam como pequenos hospitais, estando mesmo alguns preparados para efectuar cirurgias.

A política de descentralização da assistência sanitária foi reforçada em 1969 com a criação de "Brigadas Móveis de Saúde". Eram formadas de, pelo menos, uma enfermeira e um enfermeiro, que trabalhavam normalmente num hospital ou dispensário do sector,e que tinham como responsabilidade a assistência sanitária a um determinado número de tabancas.

Tinham como objectivos principais a criação de medicina preventiva, melhorar as condições de higiene nas áreas rurais,e de tratar, ou enviar para os hospitais, os casos mais graves. Estavam também encarregados de ensinar o responsável pela saúde da tabanca no uso de medicações simples e de diferentes métodos de higiene.

Este sistema, que faz lembrar o usado então na China pelos chamados "médicos de pés descalços",só começou a ser formado no início dos anos setenta.

Desde logo, Amilcar Cabral compreendeu ser este um dos aspectos fundamentais na futura assistência médica de uma Guiné independente. Escreveu entäo :"Dadas as condições não podemos julgar ter possibilidades de criar hospitais em todos os centros urbanos e, ao mesmo tempo, no interior. É impossível!  Temos antes que criar um sistema de assistência médica móbil disponde de capacidades cirúrgicas".

O PAIGC era dependente de substancial número de médicos estrangeiros voluntários, sendo a maioria cubanos ou de países do leste europeu. A falta de médicos guineenses continua a fazer-se sentir nos nossos dias, tornando necessária a existência de largo número de médicos estrangeiros a trabalhar no país.

Apesar dos resultados obtidos pelo PAIGC no sector da saúde terem sido modestos, tanto em qualidade como em quantidade, foram muito importantes para uma população rural que até ao início da guerra (!) tnha tido poucos benefícios da medicina moderna sob o governo colonial.

Este aspecto mostrou-se desde o início um grande capital político para o PAIGC.

Um abraço. José Belo.

2. Nota do editor > In Memoriam: Patrick Chabal (1951-2014)


Patrick Chabal morreu há um ano e meio, em 16 de janeiro de 2014, de doença de evolução prolongada, com a idade de 62 anos. A sua obra mais conhecida é de facto a biografia (política) de Amílcar Cabral ("Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war", Cambridge, 1983), mas deixa cerca de 180 obras (entre livros, capítulos de livros e artigos científicos) na área em que era especialista, os estudos africanos, e de que era o decano.

De origem francesa, com formação anglo-saxónica, era um académico reputado, prestigiado e com muitos amigos, entre colegas e alunos, incluindo investigadores de língua portuguesa.

 Esteve várias vezes em Portugal, a última das quais em junho de 2013, escassos meses antes de morrer. Era casado e tinha um filho. Conheci-o em 2008, no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008). A notícia da sua morte no nosso país só foi conhecida no mundo académico mais ligado aos estudos internacionais (caso do CEI/ISCTE, por exemplo). Infelizmente, e contrariamente a França, Portugal nunca teve, infelizmente, á esquerda e á direita, uma verdadeira diplomacia cultural...

Em 13 de maio de 2011, Chabal participou em Lisboa no ciclo de conferências da Fundação Calouste Gulbenkian, "Próximo Futuro", com o tema "Racionalismo ocidental depois do pós-colonialismo".

Sinopse sobre a conferência e o autor (com a devida à página da FCG):

«Racionalismo ocidental depois do pós-colonialismo»

O futuro do Ocidente está estreitamente ligado ao do mundo não ocidental. As questões ambientais que o mundo enfrenta e o crescimento inexorável do poder económico da China e de outros países asiáticos fazem com que o Ocidente não possa olhar "para o que vem a seguir" da mesma forma que o fazia antes. Mas o desafio é bem mais profundo do que o actual debate sobre o "declínio do Ocidente" sugere. A minha intervenção centrar-se-á no modo como o desafio pós-colonial colocado à perspectiva que o Ocidente tem do mundo e a influência de cidadãos não ocidentais a viver no Ocidente se juntaram para evidenciar os limites daquilo a que posso chamar o racionalismo ocidental - com o que me refiro às teorias que utilizamos para entender e agir sobre o mundo. A incapacidade crescente do pensamento social ocidental para explicar de forma plausível e abordar com êxito algumas das suas questões sociais e económicas, e alguns dos desafios contemporâneos cruciais a nível da política internacional, deixaram a nu a inadequação das ciências sociais do Ocidente à medida que se foram desenvolvendo nos séculos subsequentes ao Iluminismo. Aquilo de que o Ocidente precisa, mas que ainda não aceitou, não é de mais e melhor teoria, mas de uma nova forma de pensar.

Patrick Chabal

Patrick Chabal é francês e estudou em França, nos EUA e na Grã-Bretanha. Fez investigação e deu aulas na Universidade de Cambridge (onde se doutorou em Ciências Políticas) e é actualmente professor no Departamento de História do King's College (Londres). Para além disso, foi professor visitante em Itália, em França, na Suíça, na Índia, em Portugal, na Venezuela e na África do Sul. Está envolvido num projecto a longo prazo em que se conjuga o estudo da cultura na política comparada e a pesquisa da teoria das ciências sociais. Entre as obras que deu à estampa, muitas delas traduzidas para diversas línguas, incluem-se: Amílcar Cabral (1983), Power in Africa (1992), Vozes Moçambicanas: Literatura e Nacionalidade (1994), The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (1996), Africa Works: Disorder as Political Instrument (1999), A History of Postcolonial Lusophone Africa (2002), Culture Troubles: Politics and the Interpretation of Meaning (2006), Angola: The Weight of History (2008), Africa: The Politics of Suffering and Smiling (2009). Em 2012, deve sair The End of Conceit: Western Rationality after Postcolonialism.

_______________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 9 de novembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13865: Da Suécia com saudade (45): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte VI): Para além de meios de transporte automóvel (camiões e outras viaturas Volvo, Gaz, Unimog, Land Rover, Peugeot, etc.), até uma estação de rádio completa, móvel, foi fornecida ao movimento de Amílcar Cabral, sempre para fins "não-militares"... (José Belo)

Guiné 63/74 - P15267: Bibliografia de uma guerra (78): Do meu livro "Quatro Rios e um Destino", excerto para o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (1): Viagem de Abrantes a Lisboa (Fernando de Jesus Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Fernando de Jesus Sousa (ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, Bedanda, 1970/71, DAF), com data de 9 de Outubro de 2015:

Boa noite Carlos Esteves Vinhal.
Junto um excerto do meu livro Quatro Rios e um Destino para publicar no Blogue se assim achar conveniente e possível.
Como tinha prometido que iria enviar de vez em quando uns textos, cá estou a fazê-lo a propósito de que vai fazer um ano do seu lançamento, estou a esgotar a edição.
Também para anunciar que dia 24 às 16 horas, vou proceder a mais uma apresentação1. Desta vez será no bairro onde morei muitos anos, em Santa Maria dos Olivais Lisboa, Na Casa da Cultura dos Olivais Junto ao coreto nos Olivais velhos Lisboa.
Se for possível dar conhecimento ao pessoal da Tabanca deste meu evento fico agradecido.

Abraço
Saudações de amizade para todos os tabanqueiros
Fernando Sousa

************

Viagem de Abrantes a Lisboa

Rumei a Abrantes, para recolher meus pertences e guia de marcha com destino aos Adidos em Lisboa, para aguardar embarque. No caminho para a estação, tive oportunidade de contemplar toda a beleza daquele vale do rio Tejo, de águas cristalinas, que em correrias deslizavam suavemente rumo ao seu destino, cuja foz ficava já ali ao virar da última curva. Também suas margens, tão bonitas como nunca as tinha visto, cobertas de flores das mais variadas cores naquela altura da Primavera. Fiquei encantado com aquela paisagem, que me deslumbrou, apesar do momento melancólico, pouco convidativo a deslumbramentos.

Apanhei o comboio na estação do Rossio de Abrantes, bastante apreensivo, por ser mais uma despedida. Comboio esse que já vinha bastante cheio e ainda assim ali embarcaram muitos militares, que como eu, rumavam a vários destinos.

Depois de procurar um lugar vago onde pudesse sentar-me, para, de forma solitária, dar aso à minha amargura, encontrei apenas um lugar vazio no mesmo compartimento onde viajavam três jovens moças, pela certa estudantes com uma guitarra, que uma delas fazia vibrar, repletas de boa disposição e alegria estas jovens, que se fartavam de tocar e cantar. Ainda hoje recordo algumas canções, como por exemplo (ribeira vai cheia e o barco não anda, tenho o meu amor lá naquela banda, lá naquela banda, e eu cá deste lado, ribeira vai cheia e o barco parado) às quais eu não dava grande importância, a sua alegria contagiante era por demais evidente e salutar, condimentos essenciais para uma boa viagem, se não fosse eu antes preferir martirizar-me, sentir pena de mim mesmo. Queria viver em pleno aquela minha tristeza, que me corroía as mais profundas emoções, até me incomodava o facto de elas rirem, tentei virar a cara para onde elas não me pudessem ver, nem adivinharem o que me corroía internamente. Também não eram aqueles rostos bonitos que eu queria ver e muito menos suas canções ouvir, que tal era o meu estado de espírito. A minha mente vinha totalmente absorvida desde o início, nesta grande viagem na minha ida para uma guerra, que já não tinha forma de evitar.

Contudo, não passaram despercebidas estas minhas misturas de fortes emoções a estas moçoilas, que estranharam o meu alheamento quase total, até que uma ousou perguntar-me o porquê. Parecia que eu não estava ali, ia triste, questionou outra, ao que eu respondi que esta podia muito bem ser a minha última viagem de comboio, porque estava de partida para África. Por uns momentos fez-se silêncio, silêncio ainda mais profundo que todas as minhas mágoas, era precisamente isto que eu precisava para continuar a ter pena de mim. Sem querer reparei que na cara de uma delas corria uma lágrima, que apressadamente limpou, tentando disfarçar a emoção. Continuou um melancólico e quase fúnebre silêncio, com uns suspiros à mistura, até que me senti na obrigação de o quebrar, e disse estas palavras: Ó meninas, esta viagem ainda não acabou e muito menos eu morri, continuem com a vossa alegria, sejam vocês felizes por mim. Vá lá, toquem e cantem mais um pouco. Mas o silêncio continuou, por mais uns instantes, até que aquela da lágrima desabafou que tinha o seu namorado também na guerra e, por muito que desejasse, não saberia se o voltaria a ver. Muito a custo consegui conter as minhas.

Quiseram dar-me o seu endereço para lhes escrever quando chegasse ao meu destino, as três me franquearam a sua amizade e faziam gosto em ser minhas madrinhas de guerra. Agradeci delicadamente e não aceitei, respondi que isso traria amizades que se poderiam tornar em mágoas, sobretudo para elas, e para mim ilusões que não deveria nem podia alimentar.

Mostraram compreensão e respeito pela minha atitude, desejaram-me saúde, sorte e felicidades, ao que, com um embargo na garganta, agradeci e também desejei tudo de bom para elas. O resto da viagem não mudou de tom, a alegria até ali constante esvaíra-se como fumo. A guitarra foi posta de parte e não mais tocou durante o resto da viagem.

Recordo ainda hoje com muito carinho este trecho da minha vida, não me lembra o nome de nenhuma dessas raparigas, porque não fiz questão de o guardar, e já passaram muitos anos, mas esta viagem marcou-me profundamente, a estas jovens, que talvez tivessem a minha idade, desejo que tenham tido toda a sorte do mundo nas suas vidas e sejam muito felizes, porque este pequeno gesto tocou bem fundo todo o meu ser, este gesto nobre fez-me sentir bem pequenino perante tamanha grandeza.

Este gesto despertou a minha consciência para uma nova realidade sentimental que está presente em todos os seres humanos, à qual nunca até então tinha dado o devido valor, que é ser solidário, fraterno e amigo, para com quem precisa. E eu naquele momento precisava de verdade. Precisava de uma palavra amiga, de ânimo e conforto. Aquele silêncio comovido foi para mim sentido como que uma homenagem, um capítulo escrito num livro sem palavras e letras nenhumas, foi daqueles momentos de ouro que surgem uma vez na vida de cada homem, a que por vezes nem damos a devida importância, porque não é palpável nem o vemos, mas que nos marca profundamente, porque são silêncios vindos do mais puro dos sentimentos que todo o ser humano tem, que nem todos os barulhos do mundo os abafam e são suficientemente audíveis a muitos anos de distância, neste tal livro da vida sem palavras, sem letras, poucos gestos, apenas muita emoção e uma lágrima no canto do olho.

Esta viagem terminou na estação de Santa Apolónia, fisicamente, há quarenta e um anos. Porém, esta viagem, para mim, nunca terminará, vai continuar, não tem fim, apenas e só na última estação, no fim da linha, quando este comboio fantasmagórico, já velho, com todas as carruagens repletas de recordações e nostalgia percorrer toda a linha, com seu maquinista já vencido pelo cansaço, se deixar tombar com a mente adormecida num sono profundo.

Fernando Sousa
____________

Notas do editor

1 - Vd. poste de 14 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15251: Agenda cultural (429): Apresentação do livro de Fernando de Jesus Sousa, "Quatro Rios e um Destino", na Casa da Cultura dos Olivais, Lisboa, dia 24, às 16 horas

Último poste da série de 12 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14996: Bibliografia de uma guerra (77): Do meu livro "Paz e Guerra - Memórias da Guiné", excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (2) (António Melo Carvalho, Coronel Inf Ref)

Guiné 63/74 - P15266: Notas de leitura (768): “Jarama", por Albino Barbosa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Chega-se ao fim da obra com a sensação desconfortável de que o autor tinha bons fios para o enredo mas muita pressa em mandar o conteúdo para a tipografia. O ambiente é descrito com bastante sobriedade, é um quartel para os lados do Corubal, há colinas, ataques com foguetões e militares que vão para os abrigos com capacetes. Há perseguições de guerrilheiros durante dias, é aliás um dos dados curiosos da trama, a narrativa no verso e reverso.
Ficam-nos parágrafos empolgantes nesta obra que parece quer ficar no semianonimato, coisa estranhíssima.
Se fosse possível, gostava muito de conversar com Albino Barbosa, ouvir da sua boca o grande romance que ficou por escrever.

Um abraço do
Mário


Jarama, por Albino Barbosa

Beja Santos

Parece uma edição semiclandestina, diz que é edição de autor mas não há mais qualquer outro elemento de referência. Lê-se e somos arrastados pela singeleza, é certo e seguro que este autor patrulhou vezes sem conta à volta do Corubal, o título talvez devesse ser Djarama, palavra iconográfica dos Fulas, é provável que o autor tenha dúvida em chão Fula. Usava capacete, o que indicia que toda esta trama narrativa poderia ter tido lugar nos primeiros anos da guerra, noutros trechos parece que estamos no adiantado da guerra. Descreve o lado “amigo” mas também faz incursões junto do inimigo, há um ataque do PAIGC, há um comandante da força que flagela aquele destacamento e vê-se que é um homem estruturalmente convicto: “10 anos de combates, eram muito tempo na vida de uma pessoa. Mas tinha que continuar. Tinha consciência de que era a única forma de voltar em paz à sua terra, quando a guerra acabasse. Preferia sujeitar-se a todos os sofrimentos, a voltar à humilhação que era a convivência com os brancos em perfeita desigualdade de possibilidades”. Na sequência ocorre a flagelação, dentro do quartel a reação parece ser competente: “Tudo tinha sido preparado até ao pormenor, para a eventualidade de um ataque. O capitão dera instruções precisas e experientes. Os militares tinham sido instruídos minuciosamente. O canhão disparou algumas vezes, até que encravou. Os morteiros continuaram a fazer fumo conforme as indicações que se encontravam dentro dos espaldões”. O atacante retirou, com baixas e pouco antes do nascer do dia passaram para a outra margem do rio.

Mudamos de episódio, um especialista em minas e armadilhas está em plena atividade, é uma das descrições mais emocionantes do livro:
“Despiu a camisa, se houvesse alguma armadilha ligada com arames, daria por isso, ao contacto com a pele. Movimentos lentos, muito lentos, para ter tempo de parar sobre qualquer pressão. Ajoelhou-se, não sem primeiro, com as mãos, verificar se pisaria outra mina. Curvou-se. Soprou a areia. A mina continuava tapada. Começou levemente, com os dedos, a afastar areia em redor, devagarinho. À volta não havia fios.
Tocou-lhe com os dedos. Era uma mina de madeira. Pensou no que diziam os livros, mas tinha apenas a imagem de alguns desenhos numa folha de sebenta. Tentou recordar o nome dado esses engenhos. No essencial sabia como funcionava. Limpou a areia por cima até a ter à vista. Ali estava. Um caixotinho daqueles. Se rebentasse naquele momento, levava-lhe a cabeça, tal a forma como estava debruçado. Continuou a limpar à volta até aparecer o detonador, no topo. Finalmente o pior estava à vista. De que tipo seria o detonador? Não conhecia. Uma parte estava metida dentro do trotil. Se o puxasse devagar, talvez se soltasse… Hesitou. Respirou. Olhou à volta. Sentiu qualquer coisa indefinida. Estendeu-se ao comprido, com a cabeça sobre o detonador, até cheirar o explosivo. Levemente, e com a maior calma possível, esforçando-se por não tremer, aproximou o polegar e o indicador em tenaz. Envolveu o detonador. Rodou-o não mais que um milímetro, para um lado e para o outro. Sentiu-o quase solto do explosivo. Leve de mais. Experimentou puxá-lo. Devagar.
Obedeceu. Não lhe pareceu haver qualquer resistência ao movimento. Puxou-o mais. Devagar. Até que lhe viu a outra extremidade. Tirou-o para fora da caixa. Levantou-se. Olhou-o bem. Estava resolvido”.
Mas era uma mina muito traiçoeira, descobriu, depois de escavar à volta, outra mina, continuou a trabalhar friamente, mesmo com uma enorme dor de cabeça. Ficamos a saber que o seu nome é Serrano. A alimentação do quartel é muito deficiente, Serrano sente-se cativado por aquelas crianças de olhos grandes, negros, humildes, sem quaisquer traços de maldade. À volta do quartel há população constituída por Fulas e Mandingas, e sabemos que há uma parada onde se perfila uma pequena construção de cimento, encimada por uma figura de Nossa Senhora de Fátima.

Em nova sequência, temos uma perseguição das nossas tropas a uma força de guerrilha, a cadência aprece plausível, uma perseguição de vários dias é que não, ainda por cima numa marcha quase trepidante, perseguidos e perseguidores de quando em vez descansam, há para ali pequenas elevações, agora a marcha é mais cambaleante, ainda por cima por ali deambulam sob forte trovoada, seguem pelo trilho deixado pelos guerrilheiros, um helicóptero lança-lhes alimentos, mais adiante tropas de um outro destacamento vieram para revezá-los, eram tropas africanas. E do lado amigo passamos para o lado inimigo: “Estavam extenuados. Andavam há seis dias no mato. Quatro dias de perseguição violenta. Passar para o outro lado do rio Corubal. Só que para isso precisava de algum tempo. E a tropa deveria estar ao longo do rio a esperá-los. A companhia que os perseguia tinha recebido apoio do helicóptero. Talvez a recolha de algum ferido, pensaram. E ao fim do dia tinha desistido, voltaram para trás. No dia seguinte passaram sem dificuldade o rio”. Mais adiante há outra perseguição, ou talvez a consequência da anteriormente reportada, desta feita o inimigo reage com fogo, tem artilharia da outra margem do rio.

Mudamos de sequência, temos um capitão de 40 anos que casa com uma moçoila com pouco mais de 20, o capitão Barros e a Mariana. Esta irá deslumbrar-se com o alferes Félix, encontrar-se-ão em Bissau, os dois têm na face a cor da paixão. Ciente do que se passa, o capitão manda Félix para uma escabrosa operação, foi uma mortandade, veio-se a saber da perfídia do capitão, as coisas acabaram mal. História de amor mais delicada é a de Carlos que durante as férias encontrou Helena, em Setúbal, também se acende a paixão, quando ele regressa à Guiné ambos têm grandes planos.

Outra sequência, outra história, desta feita um ataque com foguetões. E depois continuam as obras para construir um heliporto, nesse momento apercebemo-nos que Carlos e Serrano estão no mesmo destacamento perto do Corubal. Chegam dois oficiais tirocinantes, o Alferes Quaresma e o Tenente Crispim, deles o autor traça uma água-forte. Quanto a Quaresma: “Muito magro, muito alto, cabelo liso. A farda nova, larga, dava-lhe o aspeto de uma carcaça ambulante. Os olhos simples e francos de homem bom. O enorme nariz, destoava. Quando se ria, ou quando dava ordens, viam-se-lhe apenas por baixo do bigode os dentes brancos”. Quanto ao Crispim: “Baixinho, musculoso, atarracado, cheio de ginete, extremamente complexado. Os complexos residiam no facto de ser extremamente baixo. Voz de galo capão, gostava de dar ordens. Gostava de se ouvir a si próprio. Como não conseguia impor-se pelo respeito, impunha-se pelo medo”. E seguem-se peripécias, os oficiais tirocinantes não ficam bem no retrato.

Há um episódio dramático à volta de duas viaturas que vão buscar água, seguiam relaxados, um ataque surpresa só poupou a Rafael, a descrição é muito equilibrada, caminhamos em fuga com Rafael e com o seu corpo brutalmente ferido.

Estamos perto do fim, Carlos sente-se massacrado por tanto sofrimento, vem de férias, está decidido a não regressar. E parte com Helena para o exílio.

É dentro destes quadros, por vezes voláteis, pouco articulados, que encontramos parágrafos de grande envolvência, Albino Barbosa não está a contar histórias, não é a voz de entreposta pessoa, viveu seguramente o que conta, refugiou-se numa estranhíssima edição de autor, nem sempre bem amanhada, ficamos com a sensação de que é um esboço de um romance a que faltou coragem ou disciplina para esculpir durante muitíssimo mais tempo. Paciência.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15257: Notas de leitura (767): “Como Deus me guardou”, por Agostinho Soares dos Santos, Edição de autor, Porto, 1990 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15265: Parabéns a você (976): Carlos Filipe Coelho, ex-Soldado Radiomontador do BCAÇ 3872 (Guiné, 1971/74) e Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15261: Parabéns a você (975): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/71)

domingo, 18 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15264: Blogpoesia (421): Quero lavar minha alma... (J. L. Mendes Gomes)

Quero lavar meu corpo e minha alma…

por J.L. Mendes  Gomes



Quero lavar minha alma
Das manchas da minha vida,
Num rio de águas puras,
E, depois, secá-la ao sol.


Tantas foram que lhe caíram,
Umas minhas, outras de fora,
Que me desfiguraram,
Quase me desconheço.

Como eu era e o que sou.
Um caule tenro e puro,
Que prometia crescer tanto
E bem…
Tantas foram as tempestades,
Com granizo e trovoada,
Tantas foram as enxurradas,
Se esgaçaram as minhas vestes
E, remendadas, o meu corpo se desfigurou.

Banharei também este meu corpo,
Vou escanhoar a minha barba
E acertar estes cabelos.
Vou vestir uma camisa nova.
Com um terno e uma gravata.
Porei chapéu,
Tomarei esta bengala,
Em madeira fina,
Envernizada.
Me lançarei por outro caminho,
Serei o senhor que,
Nesta hora da vida,
Me cumpria ser…

Um amante apaixonado
Pelo sol e pela vida,
Irradiar sorrisos
E espalhar a alegria de viver
Em meu redor.
Vou-me converter ao bem,
Ser alguém por quem o mundo inteiro irá chorar,
Quando chegar a minha hora…


Ouvindo Chopin,
Manhã cinzenta e de chuva gelada.

Berlim, 17 de Outubro de 2015 | 9h30m

Jlmg

Joaquim Luís Mendes Gomes

[ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66; vive habitualmente entre Berlim e Mafra; autor do livro de poemas Baladas de Berlim, Lisboa, Chiado Editora, 2013, 229 pp.]
_____________

Nota do editor

Último poste da série > 10 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15231: Blogpoesia (420): Farol das Rosas (J. L. Mendes Gomes)

Guiné 63/74 - P15263: Libertando-me (Tony Borié) (39): Tal e qual lá na Guiné

Trigésimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 13 de Outubro de 2015.




Azul de Primavera

Há dias o nosso comandante Luís dizia-nos entre outras coisas que, há muita malta que já "arrumou as botas" e que nem sequer pachorra já tem para nos ler, preferindo o Facebook... e depois convidava-nos a falar dos diversos Comandantes-Chefes lá daquele território, que na altura estava em guerra.

Nós só conhecemos um deles, era o Schulz e, como ele menciona, não Schultz, como alguém o trata, referindo-se ao seu nome, nós com menor ou maior simpatia, só o vimos pessoalmente por duas vezes lá em Mansoa. Lembrámo-nos que tinha cara de “velho”, tal como nós nesta altura da nossa vida, por uma dessas vezes passou por Mansoa onde houve “rancho melhorado”, creio que a pedido do nosso comandante do Agrupamento, colocando uma “Cruz de Guerra”, no peito do Curvas alto e refilão, que se recusou a vir à então Metrópole, no dia 10 de Junho, ao Terreiro do Paço em Lisboa. Outra foi quando fez parte do comando que dirigia a partir de Mansoa uma operação militar que envolvia todos os ramos das forças armadas, à zona ocupada pelos guerrilheiros, no Morés, no Oio. Esta operação demorou três dias, ele ia e vinha de Bissau, de helicóptero, fazendo uma poeira terrível lá no aquartelamento, numa zona onde se iniciavam algumas obras, voando folhas, papeis e pó de cimento, ao ponto de todos nós maldizermos a sua presença.

Já chega de guerra, vamos contar coisas daqui, de fenómenos da Flórida, nós, os que ainda vamos sobrevivendo, creio que continuamos a ser aventureiros, queremos estar onde não estamos, por exemplo, vivemos aqui, numa área de sol, muito quente, onde às vezes “chove a rodos”, num clima que consideram subtropical, onde as águas de oceanos são quentes e, como tal, propensas a uma precipitação pesada, onde existem os tais ciclones tropicais, que podem contribuir para uma percentagem significativa da precipitação anual, por exemplo, nos nossos quintais, não estão plantadas, macieiras, pereiras, ou ameixoeiras, mas sim palmeiras, citrus, mangos, abacates, bananas ou papaias, pois estas espécies podem ser cultivadas dentro dessas regiões subtropicais.

Vão pensar que é agradável, mas temos que cortar a relva e outros arbustos todas as semanas à volta da casa, temos que ter o ar condicionado pelo menos seis ou sete meses por ano sempre ligado, mas no fundo é um risco relativo viver por aqui, pois estamos apenas a três metros e pouco, acima do nível do mar, o que quer dizer que se houver uma tempestade em que o mar se revolte, com facilidade atravessa este enorme estado da Flórida, que é plano, se cavarmos no solo, a vinte centímetros de profundidade aparece areia branca, não existe qualquer pequena ou grande montanha, e claro, a fúria da água do mar pode varrer tudo até ao Golfo do México, mas como dizíamos antes, continuamos a ser aventureiros.


Tudo isto vem a propósito de que aqui na Flórida visitámos um local quase no centro do estado, chamado “Blue Spring State Park”, que quer dizer mais ou menos “Parque do Estado Azul de Primavera”, onde existe uma nascente de água fresca, no meio de um canal de água salgada, que é um refúgio na época de inverno para uns simpáticos seres que se chamam “manatees”, que se alimentam, entre outras coisas de vegetação aquática, dizem que comem 100 libras (cerca de 45kg) de alimento por dia, que por aqui se refugiam procurando a água que brota do fundo do canal de água salgada, com temperatura por volta de 72 graus (cerca de 22º Celsius). A água é cristalina na zona da nascente, que vem de uma profundidade com algumas dezenas de metros, na área em redor da nascente pode-se ver o fundo do canal, tirando este pormenor da água cristalina, o cenário em redor, faz lembrar-nos a nossa “Guiné selvagem”, plantas, árvores, ramagem, pássaros, peixes com alguma dimensão, alligatores, que são uma espécie de crocodilos, que por aqui habitam, tudo nos mostra este cenário tropical, onde em tempos foi filmado um episódio da série de “Underwater World of Jaques Cousteau”.

É uma área com alguns quilómetros quadrados, de pura selva tropical, com carreiros abertos entre as árvores, em alguns locais, passadeiras protegidas, pequenas pontes em madeira sobre riachos, onde se pode ver e respirar a natureza pura, onde as cobras, alligatores, peixes ou pássaros exóticos, vivem no seu território, sabendo que os humanos os vêm mas não os perturbam, vimos vários alligatores ao sol, fora da água, aproximámo-nos para os fotografar de perto, um pássaro, em cima de uma árvore, “cantou”, como se fosse um aviso, os alligatores imediatamente se meteram debaixo da água, portanto os animais protegem-se, vivem em comunidade, as árvores com centenas de anos, algumas já morreram, caíram, mas continuam lá, onde as folhas secas, que vão caindo, as cobrem em sinal de respeito, como a protegê-las para a eternidade, tudo está limpo e arrumado, sem papeis, garrafas ou latas vazias pelo chão, sem pinturas murais, como é costume ver-se em qualquer zona urbana, que existem por aí, principalmente nas grandes cidades. Valeu a pena.

Tony Borie, Outubro de 2015
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 11 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15234: Libertando-me (Tony Borié) (38): A nossa farda amarela

Guiné 63/74 - P15262: Da Suécia com saudade (53): Relendo o livro do prof Patrick Chabal, "Amilcar Cabral: Revolucionary Leadership and People's War" (1983): o congresso de Cassacá (José Belo)

1. Mensagem de José Belo [ foto atual à esquerda: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos e mais ultimamente também nos EUA,em Key West, Florida]:


Data: 16 de outubro de 2015 às 22:20
Assunto: "Amilcar Cabral - Revolucionary Leadership and People's War"

Notas de leitura: Patrick Chabal, Professlor de "Lusophone African Studies" [Estudos africanos lusófonos], no King's College]. London, Cambridge University Press, 1983. (*)


Apesar de näo ser facilmente reconhecido pelos actuais derigentes do PAIGC, a importância do Congresso de Cassacá estava relacionada com os inúmeros abusos do poder militar por parte de muitos comandantes da guerrilha.

As decisões tomadas durante (e depois) do Congresso procuraram garantir que a estratégia militar a partir daí seria determinada por critérios políticos, e que as forças armadas seriam integradas e subordinadas à hierarquia política do partido.

Os grupos autónomos de guerrilha que actuavam separadamente em áreas distintas foram gradualmente sendo substituídas por um exército nacional, as FARP

A criacäo deste exército,capaz de ser deslocado por todo o território da Guiné, foi uma tentativa de ultrapassar os problemas graves do "localismo" que até então tanto tinha vindo a afectar as unidades autónomas da guerrilha.

As FARP eram compostas de 3 elementos distintos:

(1) -Exército Popular/EP, englobando os melhores e mais experientes combatentes da guerrilha, bem equipado e operando em todo o território. O seu objectivo principal era o de infiltrar áreas contestadas, aumentar o controlo local por parte do PAIGC e apertar o cerco aos campos fortificados portugueses.
(2) -A Guerrilha Popular/GP, que era constituída pelos restantes membros das anteriores forças de guerrilha, colocadas sob um novo comando, e recrutadas directamente entre as populações locais.
A sua missäo era a de proteger e manter as novas áreas libertadas.

(3) -A Milícia Popular/MP. Constituída pelos aldeöes mais activos e dignos de confianca.
Tinha como missão garantir a segurançaa das aldeiias face aos ataques dos portugueses. actuando também como força policial nas áreas libertadas.

Estas 3 formaçöes funcionavam em coordenaçäo (especialmente o EP e o GP) tornando possível colocá-las rapidamente sob comando militar único quando isto era necessário,.  tendo em vista operações maiores,tanto ofensivas como defensivas.

A unidade básica de combate das FARP era o "bigrupo", uma combinação de dois grupos independentes de 20 a25 homens que actuavam em geral coordenadamente, mas que também podiam actuar separados.Cada grupo dispunha de uma mistura de armamento ligeiro e pesado.

Adicionalmente foram formados grupos especiais de artilharia que podiam reforcar os grupos anteriores em caso de necessidade operacional.

Esta estrutura base de grupo e bigrupo foi mantida pela FARP durante toda a guerra.
Uma estructura flexivel veio permitir que vários bigrupos se juntassem em unidades de 200 a 300 homens.

Foram também criadas novas estruturas geográfcas e hierárquicas: Comandos Regionais para cada uma das frentes (norte,sul, e mais tarde leste), e  um Comando Central--Conselho de Guerra--que passou a ter o controlo directo de todas as operações militares.

Este Conselho de Guerra era constituído por um pequeno grupo de dirigentes do PAIGC sob o comando de Amilcar Cabral.

O Comando Regional torna-se a pedra base da nova organizacäo militar viisto estar em contacto constante com o Conselho de Guerra e com os escalöes menos elevados das extructuras mlitares (zonas,sectores,bi-grupos).

Qualidades e dedicacäo dos Comandos Regionais tornaram maiis efectiva toda a estratégia do PAIGC.

Criaram-se também unidades especiais treinadas no uso dos novos equiipamentos pesados que estavam a ser destribuídos pelos diferentes agrupamentos (baterias antiaéreas, calibre 75 e 120, etc).

(Continmua) (**)

Um abraço. José Belo

____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes do Francisco Henriques da Silva sobre este livro:

1 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10745: Notas de leitura (434): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (1) (Francisco Henriques da Silva)

(...) Junto vos remeto uma recensão crítica dividida em duas partes do livro de Patrick Chabal, intitulado “Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war”, Cambridge University Press, 1983, reeditado em 2003.

A obra, cujo conteúdo é bem conhecido, é uma das mais conhecidas biografias sobre o fundador do PAIGC, de que faz um retrato tão fiel quanto possível como homem e como líder político, muito embora não apresente grandes novidades.

É claro que o leitor tem de ficar de sobreaviso pois, a meu ver, trata-se do retrato de um marxista heterodoxo e pragmático que, por um lado, não obedece a cartilhas pré-concebidas e, por outro, um cabo-verdiano, de cultura portuguesa que, de algum modo, descobre e desenvolve a sua "africanidade" ao longo da vida, retrato feito por Chabal, cuja formação é igualmente marxista e que não esconde a sua simpatia pelas ideias e "praxis" de Cabral.

O livro assume particularmente importância pois divulga para o mundo de expressão anglófona, ou seja para um universo que não se restringe apenas aos luso-falantes, a figura e obra de Cabral. (...)

(...) O autor detém-se na análise do Congresso de Cassacá (1964) que visou reorganizar a estrutura militar, reformar e disciplinar o partido, reduzir a autonomia de certos grupos, coarctar os abusos de poder, exercer um firme controlo político sobre a condução da luta armada (a principal questão de fundo) e, finalmente, a organização civil das áreas libertadas. Todavia, o líder do PAIGC e o Congresso reconheceram, igualmente, a existência de outras questões relevantes: a etnicidade (ou seja, a fraca adesão dos fulas aos ideais da guerrilha, antes alinhando com as teses portuguesas) e problemas de índole cultural que suscitavam óbices à prossecução da luta. (...)

(...) Para além da narrativa biográfica, Patrick Chabal que estudou outros processos revolucionários de luta armada anticolonial em África, sobretudo em Angola e Moçambique suscita a questão essencial de se se saber por que razão é que a luta do PAIGC obteve maior êxito que a dos seus congéneres marxistas MPLA e FRELIMO. O autor pensa que aquele partido dispunha de importantes vantagens à partida: em primeiro, lugar, os demais movimentos nacionalistas guineenses desapareceram ou eram irrelevantes; em segundo lugar, existia uma organização melhor estruturada e uma mobilização mais generalizada do campesinato na Guiné em prol da guerrilha, susceptível de diluir as diferenças étnicas existentes e de estabelecer laços mais consistentes de unidade nacional; em terceiro lugar, subsistia um controlo político real de toda a actividade militar e, finalmente, o PAIGC estabeleceu uma administração minimamente eficaz nas áreas libertadas. Poderíamos ainda acrescentar que em contraste com os outros movimentos emancipalistas das ex-colónias portuguesas, o PAIGC dispunha de inegáveis trunfos diplomáticos que os demais não desfrutavam. Estes factores de diferenciação em relação aos outros movimentos de emancipação têm de ser sublinhados, estão na base do respectivo êxito e devem-se, em larga medida, à liderança de Amílcar Cabral. Por razões que o livro não adianta, nem poderia adiantar uma vez que não envereda pela futurologia, a evolução seria outra, já patente, porém, na gestão de Luiz Cabral e no golpe de Estado de “Nino” Vieira (golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980) a que Chabal alude de passagem. (...)


(**) Último poste da série > 9 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15223: Da Suécia com saudade (52): Em 1974, foi criticado, no parlamento, o fornecimento ao PAIGC, sob a forma de ajuda, de produtos como o tabaco e o álcool, considerados nocivos para a saúde e, em 1975, postos na "lista negra" (José Belo)

Guiné 63/74 - P15261: Parabéns a você (975): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15243: Parabéns a você (974): Mário Ferreira de Oliveira, 1.º Cabo Condutor de Máquinas Ref da Marinha de Guerra Portuguesa (Guiné, 1961/63)