Joaquim Veríssimo Serrão (Santarém, 1925 - Santarém, 2020): homenagem do António Graça de Abreu a um dos seus grandes mestres e amigos, recentemente desaparecido aos 95 anos. Para admiradores e críticos, uma figura incontornável do nosso séc. XX português
O
Historiador Joaquim Veríssimo Serrão e a Guerra na Guiné-Bissau
António
Graça de Abreu
Tive a sorte, ao longo da vida, de ter
como professores e mestres, no liceu e na universidade, alguns homens de enorme
envergadura intelectual e humana, que muito me ensinaram e, de algum modo,
contribuíram para ser o que sou, um ser aparentemente humilde, em busca do
inalcançável entendimento do mundo, um permanente apaixonado pelas palavras, a
caminhar pelo fluir das gentes da minha Pátria, da China e da língua portuguesa,
a navegar pelo mundo, pela prosa, pela poesia, pela História.
Recordo Óscar Lopes, o excepcional
professor de Português nos meus antigos 3º., 4º. e 5º. anos, no início da
década de sessenta do século passado, no Liceu D. Manuel II, Porto.
Trinta anos
depois, Óscar Lopes e Eugénio de Andrade fariam a apresentação da minha
tradução Poemas de Li Bai, na Galeria da Praça, no coração do
Porto, obra depois galardoada com o Prémio Nacional de Tradução 1990, do Pen
Club e da Associação Portuguesa de Tradutores.
Mantive, com Urbano Tavares Rodrigues, meu
professor de Português em 1965/66, no 7º. e último ano do liceu, no Colégio
Moderno, Lisboa, uma amizade saudável e entusiasmante que perdurou até ao fim
da sua vida. Em 1997, Urbano Tavares Rodrigues fazia, na Missão de Macau em
Lisboa, a apresentação do meu livro China de Jade e escrevia
palavras de grande simpatia sobre a minha poesia.
Quer Óscar Lopes, quer Urbano
Tavares Rodrigues foram militantes de topo do Partido Comunista Português, com ambos
aprendi a olhar melhor o mundo, que respeitei e admirei sempre, embora, depois
de seis anos de vida na China Popular, de 1977 a 1983, eu já não acreditasse
nos “amanhãs que cantam” e na superioridade dos regimes políticos socialistas.
Na Faculdade de Letras de Lisboa, nos anos
sessenta e setenta do século passado tive a ventura de encontrar Fernando Mello
Moser, mais um excelente professor, no 1º. e 4º. ano do meu curso de Filologia
Germânica. Grande Mestre e amigo, precocemente falecido, faz parte dos não
muito homens de eleição que conheci.
Em 1995, regressei à minha Faculdade de
Letras, agora para um mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão
Portuguesa. Dois professores se destacavam, António
Borges Coelho e Joaquim Veríssimo Serrão. Bem diferentes nas suas opções
políticas (Borges Coelho, ex-comunista, havia passado longos anos na cadeia de
Peniche, Veríssimo Serrão era o grande amigo de Marcello Caetano).
Unia-os a
História e o rigor e seriedade com que transmitiam aos seus alunos as estórias
da História. Aulas fabulosas com estes dois professores, tão diferentes e tão
dentro da nossa viagem pelas gestas de um passado, tão presente.
Joaquim Veríssimo Serrão, falecido
há um mês atrás, com 94 anos, seria o orientador da minha tese de mestrado. Encontrávamo-nos
na Academia Portuguesa da História, a que presidia, para conversarmos e
melhorarmos o meu trabalho, a biografia de D. Frei Alexandre de Gouveia
(1751-1808), bispo de Pequim. Diante de mim, a abertura permanente com um
excepcional ser humano, um fabuloso homem da nossa História, um Amigo.
Em 2004, era publicada pela
Universidade Católica, a minha tese, a biografia D. Frei Alexandre de
Gouveia, Bispo de Pequim.
Capa do livro de memórias do António Graça de Abreu,
"Diário da Guiné" (Lisboa, Guerra e Paz, 2007)
Em Junho de 2007, eu recebia esta
carta do Prof. Dr. Joaquim Veríssimo Serrão, então com 82 anos:
Santarém, 8
de Junho de 2007
Exmo. Sr. Dr.
António Graça de Abreu
Meu querido António
Há muito que formei em mim a concepção
de que a velhice não corresponde apenas ao último degrau da vida. Pelo
contrário, deve ser vista como uma época de permanente actuação, para nela
ainda fazermos o que se torna possível no campo da actividade creadora.
No dia
4 de Junho, adquiri na Feira do Livro de Santarém uma “jóia” de verdade histórica
e de beleza literária incomparáveis. Fiel aos princípios acima enunciados, a
obra foi logo objecto de leitura e apreciação, e esse agrado, fiz sentir no
telefonema que lhe dirigi para o Estoril. Agora, no regresso de uma deslocação
a Madrid, onde fui acompanhar o Professor Juan Velarde Fuertes, nos seus 80
anos. Mais novo do que eu que vou nos 82 anos! Mas todos os dias a ler, a
escrever e a fazer livros.
Pois hoje voltei ao belo e dramático
“Diário da Guiné”, da sua autoria, e lá pude esclarecer a tonteria do General
Spínola de deixar ir a um encontro com guerrilheiros 3 majores…desarmados, que
foram feitos em postas.
Como se a moral dos “libertadores” fosse a mesma que a nossa:
bons ou maus cristãos que sejamos! E não custa tampouco compreender a renúncia
do General Spínola em 28 de Setembro de 74. Valente a lutar, inexperiente como
político. E o coronel Fabião, que alinhavou a paz com os guerrilheiros, mas
deixou que 2000 fulas tivesses sido fuzilados por “traição” à Guiné que nem
sequer era ainda um país independente!
As suas crónicas da Guiné de
1972-1974 são das mais lindas e comoventes que jamais foram escritas por um
combatente. Que o Prof. Marcello Caetano tinha razões para desconfiar dos guerrilheiros,
dá-a o António, na página 44. “Não era essa – nem é hoje – a linha política do
governo de Lisboa, nem do PAIGC, que lutava pela independência total e expulsão
dos colonialistas brancos.”
Que lindas páginas que fazem chegar
as lágrimas aos olhos!, da cor dos olhos dos meninos guinéus, da doçura
tropical das mulheres do território que amenizavam a solidão dos combatentes,
da beleza de uma Guiné que não merecia os libertadores que teve, nem o Luís
Cabral, nem o Nino, talvez o Amílcar que era amigo dos portugueses, mas que
abatido pelos radicais do PAIGC…
O seu “Diário da Guiné” é uma obra
prima de sinceridade, de enlevo pela terra, de ternura pelas crianças de olhos
azuis e coração de ouro. Mas ganharam elas com a libertação, quando continuam a
andar nuas, sem sapatos e esfaimadas, mas antes eram amadas pelo colonizador
que as erguiam nos braços?
Um grande abraço, cheio de ternura e
admiração, do seu muito amigo, e a dedicação,
Joaquim
Veríssimo Serrão
Cópia da carta, de 8 de junho de 2007. dirigida por Joaquim Veríssimo Serrão ao nosso camarada António Graça de Abreu, elogiando o seu livro, "Diário da Guiné" (Lisboa, Guerra e Paz, 2007).
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Nota do editor:
Último poste da série de 22 de julho de 2020
Guiné 61/74 - P21192: In Memoriam (368): José Barreto Pires (1945-2020): "termina uma vida, nasce uma saudade", a de um homem bom, grande camarada e indefetível barrosão, que muito amou a sua aldeia, Gestosa, Couto Dornelas, Boticas... Era membro da primeira hora da nossa Tabanca Grande.