Angola > 1961 > A bordo de um Nord Atlas, com tropas paraquedistas. A Maria Arminda à esquerda, a e Ivone Reis à direita (**).
Ela é, de resto, membro da nossa Tabanca Grande, com 25 referências no nosso blogue. Conheceu o TO da Guiné e ficou com uma relação muito especial com as as suas gentes!...
Depoimento de Maria Ivone Reis (2004) (Excertos)
(...) Nasci em Venda Seca, Belas, concelho de Sintra, em 1929.
Éramos quatro irmãos, sendo eu a terceira. Lembro-me do nosso Pai, doente em
casa; às vezes levava-me à rua a passear. Faleceu, tinha eu cinco anos. A nossa
Mãe era doméstica. Após a morte do Pai, fomos para casa dos nossos avós
maternos.
Dois anos depois, a Mãe faleceu, tinha eu sete anos. A
causa da morte de ambos foi tuberculose pulmonar.
Os nossos avós maternos tiveram nove filhos. Viviam da
agricultura e dos produtos lácteos dos animais. A minha Avó acolheu-nos, quatro
netos, com carinho, mas muito exigente, sobretudo comigo, a rebelde!
(…) A Avó, “analfabeta”, foi a minha grande catequista, ensinando-nos a fazer o bem e “nunca” o mal. O meu Avô nunca mandou os filhos estudarem. Logo, aos netos também não. Assim, os tios após a primária, se a fizessem ou não, trabalhavam na terra.
[Juventude: trabalhar para poder estudar]
(...) Na minha juventude, procurei trabalho, acompanhando
crianças, desde que me facilitassem o tempo para estudar. Estive em três
famílias, todas extraordinárias no
acolhimento que me deram.
A primeira família era de um diplomata americano. (…). A segunda família era muito agradável. Eram franco-belgas e tinham três filhos. Tratavam-me por “mademoiselle” (…)
Passados quatro anos, conheci outra família, próxima de amigos comuns, que me desafiou para acompanhar uma criança de dois anos. Teria assim mais tempo para estudar. (...)
[Escola de enfermagem, 1958]
(...) Assim continuei até
que, em 1958, conclui o Curso de Enfermagem Geral na Escola das Franciscanas
Missionárias de Maria.
O terminar deste curso foi para mim a realização de um sonho que desde sempre alimentei. Quando era criança tinha estado num sanatório, em Francelos, perto de Espinho, porque naquela altura havia a primo-infecção e aquelas outras doenças do foro respiratório.
Foi lá que conheci uma senhora, Guilhermina Suggia, que era violoncelista e era mundialmente conhecida, fazia concertos na Rússia e pelo mundo fora. Ela ia lá passar as férias, e contava muitas coisas das suas viagens, dos seus concertos e nós ficávamos todas espantadas… são coisas que para as crianças parecem sonhos. Pensei logo que queria ser pianista, mas foi no sanatório que percebi que queria mesmo era ser enfermeira. (…)
[Enfermeira no Hospital da CUF, 1959 e convite para enfermeira paraquedista em 1961]
(...) Comecei a trabalhar em 1959, no hospital da CUF e foi aí que fui abordada por uma colega da Escola para integrar uma equipa de enfermagem na Força Aérea, mais concretamente nos Pára-quedistas, para actuar em Angola, onde a guerra tinha estoirado, em 1961.
O convite seduziu-me de imediato, disse logo: “Olhe, conte comigo, mas eu amanhã confirmo”. Eu tinha que dar uma satisfação à família com quem vivia, mas a minha decisão estava tomada. (…)
Quando me contactaram pensei que a minha ida como enfermeira era útil, e o importante era atenuar o sofrimento daquele que não tinha culpa nenhuma e que estava na frente de guerra. Não pensei na estratégia de guerra, o porquê da guerra. Achava que aquilo seria uma situação temporária e depois voltávamos.
(...) Na verdade, nunca tinha pensado trabalhar em África. Quando as notícias da
guerra em Angola chegaram, para mim, como para muita gente, foi uma surpresa.
Tínhamos uma opinião desinformada e uma população que também não estava
esclarecida, muito menos sobre o que se passava em África.
E aceitei o desafio, embora o vencimento fosse menor do que na CUF. Na verdade, eu nem perguntei nada, não perguntei quais eram as condições (…)..
Fomos o princípio de um quadro de enfermeiras graduadas
militares na Força Aérea. A nossa missão específica era de, a bordo, assistir e
tratar os feridos ou doentes, combatentes ou população civil, e conduzi-los
para o hospital indicado.
O pára-quedismo despertou em nós a consciência do medo,
desenvolvendo, simultaneamente, a audácia de agir, com segurança, no risco e na
adversidade. Na “retaguarda” da guerra, as equipas de evacuação aérea, pilotos
e enfermeiras, estavam sempre prontas a responder à chamada, viesse ela das
zonas de combate ou dos mais “esquecidos” aquartelamentos das tropas. Era uma
vida intensa.
[Curso de enfermeira paraquedista em Tancos, junho-agosto de 1961]
(...) Mas a nossa preparação tinha sido cuidada. Quando se reuniu
o grupo de voluntárias – éramos 11, uma fracção de uma companhia – fomos
convocadas para fazer testes de adaptação e de capacidade. Naquele tempo a mulher
não estava ginasticada, não havia a prática de ginástica que temos hoje. Mas
estes testes iniciais não eram eliminatórios. No curso que se seguiu as pessoas
desenvolviam-se ou não, cumpriam as metas fixadas ou não.
Começámos onze e só ficámos seis, porque as outras não
aguentaram os treinos. A guerra tinha começado em Março e nós fomos convocadas
em fins de Maio. Fomos para Tancos fazer os testes a 25 ou 26 de Maio, e depois
fomos para lá iniciar o curso no dia 6 de Junho, que é o dia do desembarque da
Normandia, o dia mais longo, o dia D, como eu digo sempre.
Era um curso adaptado a nós, à nossa capacidade física, que
não era igual à dos homens, tínhamos que fazer tudo numa dimensão adaptada à nossa
resistência física. O primeiro salto foi a 2 de Agosto e fizemos todos os
outros saltos até 8 de Agosto, data em que fomos brevetadas.
Na Força Aérea, nos pára-quedistas, já havia mulheres,
civis, na parte administrativa. A nossa relação com os pára-quedistas era muito
cordial.
Claro que eles tinham sido advertidos das circunstâncias em que nós íamos, porque é que íamos e portanto o estatuto que nos deram – e que lhes deram a eles – também acautelou o nível de relação que se propunha que houvesse e tudo correu muito bem. . (…) No fim do curso estávamos envolvidas numa afectividade muito grande, porque realmente os pára-quedistas são excepcionais, são pessoas muito abertas, muito solidárias e amigos. E isso foi muito importante para nós vivermos a nossa missão.
[Partida para Angola, em 23 de agosto de 1961, com a Maria Arminda]
A 23 de Agosto fomos duas enfermeiras para Angola, como teste. Estávamos ainda a fazer fardas em Lisboa, quando foi anunciado que ia haver uma operação especial dos pára-quedistas no norte de Angola, na Serra da Canda e eles gostavam da nossa presença.
Era tudo à experiência: ver como é que nós nos dávamos, ver
como é que os pára-quedistas reagiam à nossa presença. Mas não foi nada de especial
porque aqueles pára-quedistas que nós fomos encontrar no avião para a Serra da
Canda, tinham estado em Tancos em Junho,quando nós tínhamos ido para lá. Eles
tinham embarcado para Angola em Julho. (…)
Em Luanda onde inicialmente aterrámos e onde ficávamos –
tínhamos a messe e os alojamentos lá – vimos que as pessoas, os africanos e os
europeus que estavam lá radicados tinham uma relação humana boa. Eram pessoas
muito abertas a uma relação e, mesmo com a população local, não há dúvida
nenhuma de que havia uma relação rica de sensibilidade e de vivência.
É claro que a situação de guerra veio alterar as coisas em todos os sentidos. E nós, a nossa presença militar também alterava tudo, mas nunca senti fricções. (...)
(Continua)
[Seleção / subtítulos / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de13 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21763: Parabéns a você (1922): Major Enfermeira Paraquedista Reformada Maria Ivone Reis (FAP, 1961/74)(**) 13 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)
(***) Último poste da série > 28 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21702: (De)Caras (133): o ten inf Esteves Pinto (1934-2020), que foi instrutor de alguns de nós no CISMI, em Tavira, e que morreu no passado dia 18, com o posto de cor inf ref