
Meu caro Luís,
Junto texto evocativo de mais uma perda dolorosa. Bom seria que não passasse de uma atoarda, de uma daquelas confusões em que já me vi envolvido, caso do Braima Galissá.
Como qualquer um de nós, dou comigo a refletir sobre comportamentos valorosos ligados à fidelidade e à camaradagem que ficaram sem o devido reconhecimento. Mamadu Camará era um Futa-Fula que sabia bem o que valia, tanto não se negou às práticas da valentia que foi um dos meus soldados que avançou para os Comandos, posso dizer com mágoa que tenho fuzilados, presos e espancados e fugitivos, gente que atravessou países a pé e à boleia até encontrar paz e auxílio para vir para Portugal.
Como gravemente ferido em combate, em 1972, Mamadu ficou em Portugal e aqui recompôs a sua vida, num turbilhão afetivo que não se deseja a ninguém. Viveu nos últimos anos em boa acalmia, adorava ir até à Irlanda do Norte visitar os seus netos "cor de café com leite", sempre irrepreensivelmente vestido, todo aquele corpanzil exibia um cavalheiro à moda antiga.
É talvez esta última imagem que eu quero guardar de ti, como se estivesse a ouvir o teu vozeirão de baixo-barítono, que não perdeu volume, passados mais de 50 anos. E um abraço fraterno de nosso alfero, aí vai, até às estrelinhas,
Mário
Estas repetidas perdas de inexauríveis amizades
Mário Beja Santos
Não tenho precisado do confinamento para me manter em rede com a tropa guineense e as gentes do Cuor. Acresce, quando é possível ir trabalhar na Biblioteca da Sociedade de Geografia haver passagem obrigatória pela comunidade que se espraia pelos bancos do Rossio, para os lados da casa da ginjinha e por todo o Largo de São Domingos, comércio variado não falta por ali, pergunto por beltrano ou sicrano, sempre com prudência, nunca esqueço o lamentável incidente em que perguntei a alguém pelo Braima Galissá, exímio tocador de korá, e me responderam prontamente que tinha morrido durante um concerto em Genebra.
Passou-se recentemente algo parecido, telefonava sem resposta ao Queta Baldé, o meu admirável 126, sempre a arrastar os pés, que me deu uma ajuda extraordinária a reconstituir o meu diário da Guiné, faz parte do pequeno grupo que de vez em quando aqui vem ao bacalhau com batatas, a maior das preferências de qualquer guineense.
Descansado era coisa que eu não haveria de ficar, desde de 4 de agosto de 1968 que Mamadu Camará fazia parte do meu currículo. Estou neste momento a vê-lo atrás de Zacarias Saiegh, ao lado de Abdulai Djaló (dito o Campino), vieram buscar-me a seguir ao almoço para seguirmos para Finete e Missirá, o seu olhar coruscante media de alto a baixo o novo comandante, o que dele podia esperar. E começou logo a dar trabalho, tinha dívidas por toda a parte, era doido por rádios, relógios, pulseiras e caprichava na roupa, passeava-se nas horas disponíveis num brinco de roupa garrida. Aceitava que através da contabilidade houvesse os descontos para os seus credores esfaimados. E sabia pedir. O meu guarda-costas, Cherno Suane, escovava regularmente a roupa que trouxera de Lisboa, bem como três pares de sapatos. Em escassos meses, levou-me dois pares, tive que lhe fazer frente explicando-lhe que os sapatos pretos eram de uso obrigatório com a farda n.º 2, rendeu-se à evidência, mas aproveitou para perguntar se eu não precisaria de um par de sapatos novo, era uma questão de irmos a Bafatá, sim, àquela loja do Esteves, onde nosso alfero compra a música dessa gente que está sempre a gritar…
Tornei-me seu confidente. Não era muito feliz nos seus amores. Apaixonara-se por uma cabo-verdiana que tinha um terrível cadastro, numa rixa com o anterior companheiro, quando este se preparava para lhe dar uns tabefes e pontapés, ela atirou-lhe um facalhão de talho à tábua do peito. Terá vivido embeiçado com a dita, suportou estoicamente comportamentos menos desejáveis, acarinhou os filhos dela e os rebentos dos dois. Passavam-se os anos e a praxe dos encontros manteve-se imperturbável.
Inesquecível esquecê-lo, e neste meu vasto armário onde guardo relíquias da saudade abro mais uma gaveta, e com que dor contida vasculho a homenagem que devo prestar a tal querido amigo. E foi então que me recordei de um texto que lhe dediquei relacionado com o ato de lealdade e dedicação incomparável, curvando-me respeitosamente pela sua memória, volta-se a publicar algo que tanto pode ser ficção mas também tomado como realidade, e abraço mais saudoso para ti não pode haver:
********************
Agosto de 1969
MAMADU CAMARÁ, A ONÇA VIGILANTE
Fogo de Santelmo, fogo de Madina
A partir do meio da tarde, o céu fez-se chumbo, o ar esfriou, ficámos à espera que chovesse, contrariados no meio dos trabalhos, tudo à volta do arame farpado. Quando parecia que o chumbo passaria a negro, o negro da nuvem espessa que se encaixara como uma abóbada sobre Missirá deixou imprevistamente que os raios e coriscos se acendessem e, como uma faca que rasga a seda, estoiraram estrepitosamente em Missirá, em todo o Cuor. O anoitecer fez-se dia com aquela iluminação de teatro, espectral. A chuva abundante caiu dos céus, ficou a empapar-se às nossas botas, o sibilar da trovoada gigante levou-nos a fugir para casa.
É nesse entretanto da fuga precipitada para as moranças que começa uma flagelação com morteiros e costureirinhas. Do pânico da chuva passou-se rapidamente para a resposta, corríamos nus, em roupa interior, encharcados, enlameados. Quem limpava as armas pô-las em funcionamento, quem fazia a contabilidade mudou de armas, quem cozinhava foi logo responder com metralhadoras, e todo este fogo de resposta amorteceu o som das obusadas que espalhavam o metal destruidor, salpicando a terra. Colhidas de surpresa, as mulheres e as crianças que cultivavam e brincavam, atiraram-se para as valas. No morteiro 81, encadeado por aquele maldito fim de tarde desorientador, pois falsa era a noite e falso era o dia, com o precioso auxílio do Queirós, eu punha e tirava cargas das granadas, procurando atinar com as distâncias.
Agora, nada mais me interessa do que agradecer discretamente a Mamadu Camará, que cambaleia, cheio de contusões e rasgões. Nessa noite, depois do jantar, enquanto Missirá faz serão a comentar os acontecimentos, chamo Mamadu, depois de ter refletido sobre a sua bravura.
Na reconstrução de Missirá, Mamadu senta-se no tronco da palmeira, enquanto converso com Cibo Indjai, lá ao fundo, Alcino Barbosa, quer intervir na conversa
Fotografia tirada em Missirá, seguramente depois do grande ataque de março de 1969, em que perdi todo o material fotográfico
Mamadu Camará à esquerda, sempre galhofeiro, disse pilhéria e pôs toda a gente a rir, que saudades guardo de todos estes meus queridos companheiros
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21833: In Memoriam (388): Aniceto Rodrigues da Silva (1947 - 2021), soldado condutor auto, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, maio de 1969 / março de 1971)