Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
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Adeus e até à próstata!
por Luís Graça (*)
1. Encontrámo-nos na cafetaria do jardim da Gulbenkian, em Lisboa. Recordo-me de nos termos cruzado, por mero acaso, numa exposição sobre o cérebro humano. Acabámos por ver o resto, juntos, e no fim fomos beber um bica e dar os dois dedos de conversa da treta. Era sábado e estávamos livres. Já não via o meu amigo psicólogo há uns largos tempos.
No passado, tínhamos estado ligados a projetos de intervenção e investigação
no domínio da promoção da saúde no local
de trabalho, desempenhando ele as funções de assessor para a área da saúde
mental. Além disso, era especialista em perturbação do stress
pós-traumático (PSPT), provocado por
situações-limite como a guerra, os acidentes, as agressões, os assaltos, e
outras formas de violência, mas também a experiência de doença, e nomeadamente da
doença oncológica.
Éramos amigos de longa data, sem sermos propriamente íntimos. Ele
tinha feito a licenciatura em psicologia no ISPA – Instituto Superior de Psicologia
Aplicada. E a tropa nos serviços psicotécnicos do exército. Doutorou-se depois, em Lovaina, na Bélgica. Tivera
mais sorte do que eu, que não escapei à “guerra do ultramar”, como então se
dizia: interrompera-me os estudos e, depois da “peluda”, foram mais quatro anos a ganhar ânimo para entrar
na calha e continuar a estudar… A trabalhar e a estudar.
Havia, no entanto, uma “pedrinha no sapato” entre nós. Eu embirrava
com a expressão stress pós-traumático de
guerra e, talvez inconscientemente, dava
ouvidos ao coro dos “durães”, os antigos militares das tropas especiais para
quem isso era “doença dos cobardes” (as duas expressões, ditas em tom
sarcástico, eram do meu amigo que, por
sua vez, achava que eu também ainda sofria de traumas de guerra).
Houve uma altura em que o tema da guerra era recorrente nas conversas entre nós. O que me irritava de sobremaneira. Mas a mim, desta vez, não me apetecia nada voltar a falar da tropa e da guerra e, no fundo, a ter de assumir que durante alguns anos não conseguira ser dono do meu destino. De facto, uns puderam continuar a estudar, sem sair do país, outros, mais afortunados, demandaram portos de abrigo lá fora. E eu conhecia alguns, faltosos e refractários, que se piraram antes que a tropa lhes pusesse a mão em cima, e sobre quem tinha sentimentos ambivalentes.
−E tu, meu estúpido, perdeste a guerra e anos de vida! – atenazava-me ,
uma e outra vez, o meu amigo da onça,
sempre que se falava do tema, em tom paternalista e algo diletante. (Afinal, o que sabia ele da experiência pessoal da guerra ?).
Desta vez, e para variar, estávamos ambos a falar dos “casos” e
dos “ocasos” da vida.. Eu tratava-o por “Psi” (de psicólogo). E ele retribuía-me com outro diminuitivo, o “Soc” (de
sociólogo). E veio então à baila a notícia, que eu acabara de receber, uns dias
antes, da morte de um conhecido meu, de quem, de resto, não guardava as
melhores recordações, mas de quem sentia pena, sem saber por quê. Tinha sido doente do IPO, tal como eu.
− Alguém que eu possa ter conhecido ? – indagou o meu amigo “Psi”.
− Não me parece… Mas até é possível, julgo que ainda era do teu
tempo, ou seja, do tempo em que tu lá andaste, com as tuas meninas, a
entrevistar doentes pré-terminais. Ele foi visita frequente do IPO, andou por
lá em tratamento em diferentes períodos. Quase diria que já fazia parte da
mobília…
E adiantei:
− Claro que não te vou dizer o nome, mas tu, como “Psi”, eras
capaz de gostar de ter conhecido a personagem.
− Alguém, um bocado bronco, que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas, às enfermeiras e às radioterapeutas que “tinha sido pegador de touros e ainda
gostava de montar” (a cavalo) ?!...
− É capaz de ser o mesmo, talvez o tenhas apanhado no início,
na primeira fase do tratamento, eu só o conheci
mais tarde. Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no
IPO, e cirandou por lá uns anos. Foi bravo na morte, tenho que o reconhecer.
− É capaz de ter ficado fora no nosso estudo, na altura ele não
reunia os requisitos, um deles era ser doente oncológico em cuidados paliativos…
Mas julgo que ainda cheguei a falar com ele… Achei-o, além de um triste marialva, um
bocado exibicionista e histriónico, se queres que te diga… Mas não sei se estamos a falar da mesma pessoa…
− Nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia
morrer… Bem pelo contrário. E tinha-se voluntariado para um ensaio clínico, também
não sei se chegou a ser aceite… Descobri que tínhamos, afinal, em comum alguns conhecidos, um deles da terra dele, mas o que nos aproximou foi, de facto, o IPO, que frequentámos juntos durante
algum tempo. Vimo-nos ainda diversas vezes. E ele acabou por me confiar umas
fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de
páginas, talvez perto da centena. Pediu-me um “parecer”. Achava que eu tinha pinta de crítico literário.
No fundo, confiou em mim, não sei por quê, nunca lhe disse o que fazia… Queria
saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro, e “ainda
em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha
um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida
que lhe restava… Os direitos de autor seriam entregues à Liga dos Amigos do
IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic).
2. E aqui o meu amigo psicólogo, com nome na praça, e que me fazia companhia, não sei se a contragosto (eu achava que sim, que ele dessa vez, num sábado soalheiro, estava mesmo a fazer um frete), não conseguiu deixar de arregalar o “olho clínico” e de passar a mostrar maior interesse na conversa, disparando-me logo uma pergunta algo sarcástica:
−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da fauna humana ?
Quis responder-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:
−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… mas podes
pô-lo na gaveta do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do “mau da fita”, do
“lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias que sei dele...Podia ter sido marialva e pegador
de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com
ética, com bom senso…
−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões…
Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…
− Predador ?!...
− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamam
“lobo”, em crioulo, à hiena. O que eu acho que é uma ofensa para o lobo, para
mim um animal nobre e altamente social…
− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como
o lobo em alcateia… Mas não sei se o epíteto é bem aplicado ao nosso
conhecido…Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários,
ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…
− É sempre interessante, não ?!, conhecer estes exemplares, e
estudá-los, pelo menos em laboratório… Não os gosto de encontrar na vida real….Mas
tu e eu temos que saber lidar com toda a fauna humana, todo o “bicho-careta” que nos pede
ajuda…
− Tu, sim – respondi eu −, que fazes clínica, és psicoterapeuta,
ouves no divã, tal como o padre no confessionário, muitas histórias, boas e
más, alegres e tristes, cómicas e trágicas… Eu limito-me a contar ou a inventar algumas, das poucas que me chegam aos ouvidos…
3. Descrevi então ao meu amigo “Psi” quem era essa tal “hiena” da minha pequena história… Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as napoleónicas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil, como a dos tempos do Liberalismo, da República ou dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e depois ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…
Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do
que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra
(uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar", como então se
dizia. Deve ter feito o 2º ano, no máximo.
Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se “à porrada” com alunos e
professores. Claro, foi expulso, e de
algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias.
Na época mandavam-se estes casos para o Colégio Nuno Álvares, ali
perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir
e de “fazer dele um homem”… Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da
herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de
família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos deve ter vindo desses tempos. Mas eu sei
pouco do seu passado, baseio-me no que ele contou, no seu manuscrito, ou numa
ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-me, como as suas alegadas "conquistas amorosas".
Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebi passou por Cabo Verde e Angola. Aprendeu uns truques de boxe. Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos. Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil, com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique a União Nacional, deu-lhe uma mãozinha...
Passou a vender produtos zoofitossanitários
e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Habituou-se
à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas
inteiras fora de casa. Não sei se chegou a ter duas famílias em dois sítios
diferentes, mas tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic) ao longo do caminho de casa…
− Bem, daí a sociopata vai uma distância…
− Também nunca disse que ele fosse um sociopata, nem sei se ele,
em vida, chegou a ter problemas com a justiça… Mas teria alguns traços do
sociopata, no mínimo era um homem violento. E, na verdade, não nutria
sentimentos de compaixão pelos outros. Contou-me (mas não deixou isso escrito)
que atropelara mortalmente um “pobre diabo”, na Estrada Nacional nº 1, na reta
da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"..., mas nem sequer parou, para prestar socorro à
vítima. “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto,
curvado, a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe
de lado… Confirmou a notícia da morte pelos jornais, no dia seguinte: “Uma chatice, mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”,
acrescentou ele, com o maior dos desplantes… e sentindo-se impune. A polícia
nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso foi arquivado.
E aqui o meu amigo “Psi”, que na juventude andara pelas “águas
turvas de um grupúsculo maoista” (a expressão era dele), ironizou:
− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável) que faz (ou
faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Ainda bem que a humanidade, a corja
humana, não veste toda por igual, como na Coreia do Norte , ainda hoje, ou na
China do tempo do “Grande Timoneiro”, meu ídolo de juventude.
− Nem come só arroz chau-chau ou hambúrgueres!
− Às vezes, “Soc”, pergunto-me como é que um gajo, quando é novo,
pode ser tão cretino!…
− Para o bem e o mal, a fauna humana é diversa e multicolorida… E
adaptativa. Imagina o que seria um mundo
de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas,
quanto às igrejas, deixa lá – contemporizei eu – muito boa gente sofreu do
mesmo mal, antes e depois do 25 de Abril…
−Estou de acordo contigo… O comunismo enquanto utopia foi a doença
infantil da nossa geração, nascida no pós-guerra, filha bastarda do Salazar e
do Cerejeira…
−… e que terá preenchido o vazio ideológico deixado pela crise do
catolicismo. No fundo, saíste de uma igreja para te enfiares noutra… Dizem que
houve muitas conversões na manhã do dia 26 de Abril… Tu e eu conhecemos algumas…
O “Psi” não gostou da minha insinuação, relativa ao seu passado. E procurou desconversar:
− Mas voltando ao teu, afinal nosso, conhecido… Parece-me ter sido
um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus…
Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música
ié-ié…
− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que
tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do
coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua…
− Estou a ver… Na província, isso ainda é (ou era) notório, tal
como nos filmes do velho Faroeste…
− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico” (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. (De vez em quando, eu apanhava, no seu discurso, alguns restos da sua tosca formação político-ideológica.) E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apurei (nem quis, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo…
E ainda acrescentei:
− No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E eu nunca o inquiri sobre isso, achava que não tinha esse direito, para mais numa situação em que a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não me parece que tenha sido um operacional de coisa alguma, quando muito um "peão de brega", gostava isso sim de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante".
4. Com um sorriso amarelo, contou-me, da última vez que o vi (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica do IPO quem lhe passou a “certidão de óbito antecipada”:
−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou na próstata… Agora a bexiga e o pâncreas… Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a consulta de psicoterapia. Boa sorte e coragem.
A verdade
é que o Jota Jota apagou-se uns dois ou três
ou meses depois, pelo que eu vim a saber mais tarde. Esteve numa unidade cuidados continuados, com muita morfina em cima daquele corpo…
Mas, muito
antes já lhe tinha devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota,
elegante, cortês, até simpática, mas cínica: “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”
Ele escrevia mal ecom erros de ortografia, mas eu não tinha coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isto, afinal, a um homem que, pela conversa da sua médica, ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, mesmo sabendo que ele era um narcisista ?!…
Não o desencorajei, acabei por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais... Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas…
E depois conviria saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante. encontrar um editor… E ainda restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. (Eu fazia questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era, de resto, mais velho do que eu.)
Claro, nunca me chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, um pouco megalómano e mitómano, do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira, creio que de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheci, a não ser de fotografia: teria idade para ser filha dele.
Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo divorciado, o Jota Jota era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado, casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava… quando ainda tinha forças para tal… Mas nos últimos meses a sua decadência física foi galopante, disse-me um seu conterrâneo, meu conhecido..
Às tantas tive pena daquele meu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, acomeçar por jovens mulheres que ele seduzira, e que era incapaz de autocrítica e arrependimento…
− Não gosto de bater nos mortos, nem mesmo daqueles que foram em vida, grandessíssimos filhos da mãe…
E acrescentei, retomando a conversa com o "Psi":
− O Jota Jota, à sua escala, reles, desprezível, terá sido um deles… Grande ou pequeno, para mim é um filho da mãe...
− Tal como os esbirros e os lacaios da Santa Inquisição, da PIDE, do Pombal, do Salazar… – complementou o meu amigo “Psi”.
− Eh!, pá, não falo das figuras históricas, deixá-las lá dormir o sono eterno no Panteão Nacional dos Figurões, esse ridículo ossário das nossas pretensas memórias coletivas… Até por que os portugueses não conhecem a sua própria história…
− Os outros povos também não – respondeu o “Psi” −, sou capaz de concordar contigo, não há céu nem inferno, apenas limbo para aqueles que, no seu tempo, foram grandes, poderosos ou famosos…
− “Aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando!”… Vê o pobre diabo do Camões… Quem o lê hoje ?
− Lemo-lo nós, no nosso tempo, por obrigação, nunca por devoção ou paixão… − ironizou o “Psi”.
− Para mais agora que perdemos o Império (ou a sua ilusão, nunca tivemos dimensão para ser uma nação imperial e imperialista).
− Algumas dessas figuras, a quem chamamos herois, deram-nos bastos motivos para os continuarmos a odiar, mesmo depois da morte…
− Sim, há homens (e mulheres) a quem a História não perdoará, a menos que se continue a falsificar a História…
O tema era caro ao “Psi”, que me adiantou:
− Haverá sempre gente pronta a acreditar… e a mentir. Mas felizmente que a História, enquanto ciência, não é do domínio da fé e da propaganda.
E aqui ele foi taxativo;
− Sim, está por fazer a lista dos mais famosos mortos execráveis de cada país… Mas a nossa História ainda é um ninho de mentiras...
E eu abanei a cabeça, em sinal de concordância, acrescentando que, no dito país dos brandos costumes, não chegaríamos hoje a um consenso sobre esse macabro “Top Ten”.
− E depois há o “enviesamento ideológico”, como tu, ”Soc”, gostas de lembrar… Vê como a historiografia trata os vencidos e os vencedores… Vê o caso dos irmãos, Dom Pedro e Dom Miguel…
− Ou dos pais, o Dom João VI e a espanhola, a Dona Carlota Joaquina, takvez uma das nossas rainhas mais odiadas da nossa História… Mas voltamos ao nosso Jota Jota…, que decerto não ficará na nossa História com H grande…
Aguardava pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa. Fazíamos horas, eu ia adiando o clique de telemóvel para a minha boleia, talvez por não querer perder o final daquela história de um homem a lutar contra a morte. Pergunto-me hoje se não fiquei ali apenas por caridade (a palavra repugna-me), ou por compaixão… Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo eu não queria desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em mim, que só me conhecia do IPO…
Já antes me confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:
− VIP!... Um doente VIP!...
Nunca tinha ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias...
− VIP ? – interpelei eu, para logo a seguir acrescentar:
− Mas é um direito, que o meu amigo tem, o direito à saúde, consagrado na Constituição…
Não sei se ele entendeu a minha observação, tanto mais que ele não deveria ser, pelo que eu deduzia, um fervoroso apoiante do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebi onde queria chegar: de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem me explicar como teria apurado esse valor).
− Dava
para comprar um bom apartamento em Lisboa – asseverava ele.
− Sim, talvez há uns largos anos atrás… − atalhei eu. – Agora Lisboa é fogo, o metro quadrado já ultrapassa os 3 mil euros…
Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial gabarolice, garantia-me que a “menina da farmácia” (sic) já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:
− Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.
E seguia-se a justificação:
− A gente gasta um milhão e meio de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…
E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço. Ao mesmo tempo, provocava-me compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…, "quanto mais caros melhores!"), era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo… dos ricos com que ele se gabava de ter privado, "nos bons velhos tempos"....Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista, por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado.
Duvido que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro” (colocada por causa da Covid-19), lhe tenha dito, textualmente, essas palavras, e muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica oncologista a dar-lhe essa informação, embora muito por alto. Mas eu registei as suas palavras como tal, no meu caderninho de notas, com a data desse dia.
Logo que a ambulância partiu com o meu companheiro de infortúnio, tive o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltaria a ver. E, confesso, com algum alívio… A sua história acabrunhava-me. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele, completando já talvez o seu processo de luto...
Foi protelando a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, há uns anos atrás, o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...
A ambulância do INEM levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde caríssimo, que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, aos berros, no corredor, e por aí fora.
− Mas em boa hora lá me levaram ao sítio certo. Dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha surpresa. A princípio, confesso, senti-me intimidado e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…
E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:
− Nunca tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!
− Nunca tinha feito sequer uma eco prostática ? – quis saber eu, evidenciando algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.
− Nada, nunca precisei, graças a Deus!
Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a tensão, e gracejou:
− Senhor Jota Jota, porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…
E, depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:
− Como viu, não doeu nada... Ou doeu ?!
− Não, senhora doutora.
− E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito provavelmente vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só lamento o sr Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia ou dois, em observação e para fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico.)
A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando
a conversa bem humorada que mantivera logo de início:
− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão
feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas,
só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…
E finalizando:
− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo, estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.
E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ma
contou, com graça, pondo-se na pele da médica:
− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade
médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde,
nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do
meu ano, do meu curso, a escolher esta
especialidade como primeira opção… O meu pai, alentejano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao
javali. Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas. Um mulher de arma em punho, está a ver ?!... Isto foi
no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de
acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre, à perdiz…
Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens,
começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns tossiam para disfarçar o desconforto, ou
puxavam grandes fumaças dos cigarros… E antes que se avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia, ou não fosse um "chaparro" de gema) fez-me a presentação ao grupo dos
machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de
tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a
mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora
seja uma senhora muito bondosa e fina, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca
precisem dos seus serviços, dela ou dos
seus colegas”… Fez-se silêncio, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na
mão, exclamou, para desanuviar o
ambiente: “Seja bem vinda, doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.
O nosso homem, o Jota Jota, ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, para mais doutora… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida:
− Então, adeus, e até à próstata, senhora doutora!
(*) Último poste da série > 17 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)