1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá,
1967/69), em mensagem do dia 21 de Junho de 2018 enviou-nos mais uma memória da sua guerra.
Outras memórias da minha guerra
30 - O anjo excomungado
Um equilibrista em perigosa actuação entre arranha-céus de Nova-Iorque
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Silva, ó Silva, olha aqui o João Albino. Lembras-te dele? – perguntou o meu vizinho Fiães, ao ver-me passar junto do refeitório da CCS de Catió.
Olhei com alguma curiosidade, ao mesmo tempo que tentava ligar-me ao nome apontado. Então, ele insistiu:
- Aquele equilibrista que subia e descia um arame lá no largo da Feira dos Dez, em Lourosa?
Aí, reagi logo afirmativamente. Quem é que não se lembrava daquele espectáculo presenciado pela multidão, próximo da Capela de S. Miguel?
O João Albino sorriu, ao mesmo tempo que parecia querer manter o anonimato. Manifestei a minha surpresa em vê-lo ali no nosso BART 1913, felicitei-o pelos seus sucessos e aproveitei para saber mais alguma coisa dele. E, afinal, não foi difícil.
- Lembro-me bem de ter ido a Lourosa. Quem me pediu para lá ir, foi o meu tio Jorge Miguel que vive ali por perto. Tem um salão de barbearia e cabeleireiro.
Confirmei logo que o conhecia bem. Casou com uma vizinha minha.
- Pois foi ele é quem me inspirou. É o meu ídolo. Aos 16 anos, o meu avô teve que o mandar para a França, para junto de um irmão, porque ele não queria trabalhar na barbearia, lá na aldeia, perto de Portalegre.
E continuou:
- Em França, veio a integrar-se num grupo de equilibristas de circo. E como era um gajo de muita coragem, tornou-se famoso. Foi ele o artista que substituiu a vara do equilíbrio por duas asas, dando a sensação de que voava. Era conhecido por “Michelangelo”. Fazia um número espectacular, mas muito perigoso. Bastava um pouquito de vento e a segurança estava logo em causa.
Dizem que não lhe faltavam miúdas. Ele era mesmo uma vedeta. Mas o que ele mais desejava era aproveitar esses momentos e gozar a vida.
- Mas, ele era manco!
- Sim. Num dia com mais vento, ele teimou em actuar com as asas de anjo, mas desequilibrou-se e quase se matou ao cair do arame. Ficou afectado de uma perna e teve que largar a actividade. Regressou a Portugal e influenciou-me para o substituir naquela loucura.
Já habituado ao ambiente afrancesado, o regressado Albino passou a sentir ainda mais o sacrifício de viver no isolamento alentejano.
E, um dia, quando falava sobre a sua vida atribulada e se lamentava da sua sorte na presença de um industrial de cortiça, que ali se deslocava com alguma frequência, foi encorajado a mudar-se para norte, para o concelho da Feira.
Conheci-o por altura dos meus catorze anos (1957). Frequentei a sua pequena barbearia, onde apareciam outros tipos de clientes.
Chegava sempre tarde à barbearia. Parecia fazer questão em ter clientes à espera, junto à porta. Devido à deficiência na perna direita (não a podia dobrar), caminhava bastante esticado, por forma a poder rodar essa perna, para a colocar na sua frente. O Senhor Michel parecia explorar bem a sua deficiência, assumindo uma pose erecta e altiva, bastante beneficiada pelos seus bastos cabelos ondulados, pelo seu bigode e sorriso tipo Clark Gable e pelos óculos escuros Ray Ban.
Capela de S. Miguel
A aldeia era pequena e não podia dar-lhe muitos clientes. Além disso, a sua pose altiva, a sua permanente argumentação sobre tudo e todos e a sua frontal posição crítica face à religião, afastavam parte da possível clientela.
Todavia, a sua experiência francesa, aliada a uma certa dose de rebeldia alentejana, davam-lhe um à-vontade, pouco comum naquele ambiente rural nortenho. Pela frente, quase toda a gente o respeitava, mas, por trás, havia uma onda de contestação, bastante crítica, especialmente orquestrada pela família Ramirinho, pelo Tono Coninhas e por algumas beatas de sacristia.
Ora, o Senhor Michel, teve que aproveitar tudo para ganhar algum dinheiro que o pudesse ajudar a viver. Cortava o cabelo curto, como era hábito naqueles tempos difíceis mas, salientava-se noutros tipos de corte, onde realçava seus conhecimentos mais modernos. Além disso, veio a ter algum sucesso com o corte “à la garçonette” nas crianças e adolescentes do sexo feminino.
Eu simpatizava com o Senhor Michel. Ele já me influenciava a cortar pouco o cabelo, dando-me uma imagem “mais de acordo” com a minha postura de “revoltado”. Também me falava muito dos seus conhecimentos afrancesados. Mas, o que mais admirava nele era o seu optimismo de alentejano e o seu sentido crítico de homem livre.
Foi nessa altura que presenciei o Senhor Michel a arrastar a asa pela sua Luisinha. Ela tinha ido à barbearia para acompanhar a filha da Tininha, enquanto ele lhe cortava o cabelo.
A miúda já estudava francês e cismou adquirir um corte “à la mode”. Aliás, tive a oportunidade de apreciar a sua exuberante actuação de conquistador.
A miúda sentada na cadeira limitava-se a olhar fixamente o espelho na sua frente. Porém, o Senhor Michel mexia-se constantemente. Após vários movimentos em falso, batendo, repetidamente, o clik da tesoura, aproximava-se da miúda e mal tocava no cabelo. Afastava-se, olhava-a de novo, elevava os lábios fechados e abanava ligeiramente a cabeça no sentido vertical. Por vezes, esboçava um “très belle, très belle” ou uma exclamação tipo: “oh la, la, jolie, petite demoiselle”!
De cabeça esticada, braços abertos, com o pente numa mão e a tesoura na outra, o artista arrastava a perna deficiente, enquanto rodopiava paralelamente à cadeira, que até me parecia um garnisé a arrastar a asa, preparando a (futura) galadela.
Desde que começou a constar que o marido da Luisinha d’Azenha, Jorge Miguel, fora apanhado a molestar a sua mulher, não havia dia de lavadouro ou noite de taberna, em que o assunto não viesse à baila.
- Para mim, ele é um excomungado. – Acusava a Felismina do Canto, que continuava:
- Um homem que desonra a namorada, leva-a de casa sem casar pela Santa Madre Igreja e que, ainda por cima, a trata mal, devia ser castigado.
- Realmente, e logo aquela rapariga, tão bonita, filha de tão boa gente e tão temente a Deus. – Lembrou a Ti Matilde.
Logo a Maria Bolachona interveio em jeito de aparente despeito:
- Chamas bonita àquela magricela, um pau de virar tripas que não pesa 70 quilos, que tem os olhos grandes de ougada e cabelos ripados, sem ondas nem caracóis?
- Nós dizemos que gordura é formosura, mas não te esqueças do que diz o outro ditado: O que é demais, é moléstia.- Observou a Ti Matilde.
Um pouco mais ao lado, num tom mais suave, murmurava a Tina Beata:
- Pois é, mas eu continuo a pensar que a culpa é das mulheres porque se deixam levar e não se sabem portar bem. Por acaso, se fosse comigo, iam ver do que eu era capaz. Até o capava, se me faltasse ao respeito.
- Ei, mulheres do solheiro, estais a serrar de alguém? – Interrompeu a Irmã Julinha, que surgiu por ali, vinda do fundo da quinta da família Ramirinho, onde se encontrava de férias pascais.
- Ó Julinha, não queira saber que aquele excomungado, que desonrou a Luisinha e que a obriga a viver com ele em pecado, foi apanhado a molestar a rapariga.
- A molestar, como? A bater-lhe? A magoá-la? Digam-me, por favor, o que essa alma do diabo lhe anda a fazer.
A Felismina, agarrou nalgumas peças de roupa, para as pôr a corar e aproximou-se da Irmã Julinha e, em voz mais baixa, confessou:
- Na sexta-feira passada, quando ia para a primeira missa, ao passar junto à casa da Luísa, ouvi-a gritar baixinho e, por curiosidade, aproximei-me e olhei por uma frincha da portada da janela. Ó Julinha, sabe bem que eu não sou mulher de levar e trazer. Nem sou nada dessa gente que levanta boatos, maledicências ou falsos testemunhos. Apenas me lembrei de espreitar, antes de a acudir.
- Não me digas que estava a bater-lhe? – Interrompeu a Irmã Julinha
- Não sei. Só sei que eles estavam nuínhos, conforme Deus os botou ao mundo. Tal como Adão e Eva no Paraíso.
- Credo em Cruz, Santo nome de Jesus! Nem me digas? Que pecado!
- E o pior é que ele estava em cima dela como se ela fosse uma cadela, coitadinha!
- Deve-a ter magoado?
- Sim, sim, até porque vi o excomungado a querer sarar-lhe “as partes” com a saliva da língua.
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Quando regressei da Guiné, andei uns meses a trabalhar como Comercial numa empresa de produtos químicos. Corria quase o País todo e logo que passei por Portalegre, encontrei o Sr. Jorge Miguel. Levou-me à sua aldeia, almocei com toda a família (mulher e três filhos – um rapaz e duas meninas). Pareceram-me bastante felizes. Falámos agradavelmente de muita coisa, inclusive do seu sobrinho João da CCS de Catió, agora a viver na Bélgica.
Antes da despedida, teve um desabafo:
- Amigo Zeca, gosto muito do norte e da maior parte das pessoas de lá. Gostava de ter continuado naquela terra, mas tivemos que vir para cá antes que aquelas ratas de sacristia matassem a Luísa à pedrada, como se fazia na Grécia Antiga. Aquelas putas, faziam-lhe a vida negra!
Ficou sentado num extremo da mesa, com uma lindíssima criança sentada sobre a sua perna esquerda. Fitou-me, saudando-me com alguma comoção, elevando a mão direita com o copo do vinho que restava do nosso último brinde:
- Obrigado Zeca. Que sejas sempre tão feliz como eu! Tu mereces.
A mulher veio abrir-me o cancelo de acesso à rua. Ao abraçar-me na despedida, confessou-me:
- Zeca, às vezes sinto muitas saudades da família e dos bons vizinhos, como vós. Mas, diz àquela gente que sou muito feliz. Tenho quatro anjos; três filhos e um marido, a quem devo a maior sorte do mundo.
Afastei-me, comovido com o que tinha visto e ouvido. Ainda acenei um adeus, já de longe. E pensei:
- Não deve ser só por ele ter sarado as feridas com a saliva da língua…
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Nota do editor
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Guiné 61/74 - P18036: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): “Amor à Pátria”