1. Publicamos hoje mais um episódio da História da CCAÇ 2679, chegada até nós no dia 26 de Dezembro de 2008, enviado por José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71.
Encontro imediato
Uma outra vez, no declinar do dia, saímos para nova emboscada nocturna. Em marcha tranquila e silenciosa, rumámos à picada que, a leste de Piche, se dirige quase numa linha recta, até ao Corubal. Chegados à proximidade do rio, flectimos para montante, onde tencionava abancar à espera das horas. A luz esgotava-se, e acentuava as sombras do arvoredo. Nestes preparos, demo-nos conta de um barulho distante. Coisa estranha, um barulho na mata.
Pressentia-se o barulho, que não conseguíamos identificar, e parecia longinquo. Mas com as árvores de permeio, cogitava, podia ter origem a uma distância bem menor do que avaliávamos. Era ainda bastante cedo. Dispusemo-nos para passar uma noite descansada. Estava no meio de nada. O trilho tinha ficado um pouco para trás, mas se houvesse movimentações de travessia do curso de água, isso deveria alertar-nos.
A passarada já se remetera ao silêncio. A noite fechara, mas permitindo uma luz coada, que a generosa lua-cheia nos enviava, como uma bênção. Ao longe o tal barulho, anónimo, persistia e despertava-me a curiosidade. Alguns comentários de diversa índole foram produzidos.
Porra, não façamos nós barulhos que nos atraiçoem, alertei. Procurei um chão confortável para me aninhar, perto do transmissões, e do enfermeiro. Volta e meia, ouvia-se uma qualquer observação ao barulho, e o pessoal reprimia o riso, não fosse o diabo tecê-las.
Permanecemos ali, e naquelas circunstâncias, durante algum tempo. Levantei-me com uma restolhada vinda do meio do pessoal. Dois meninos, do meio da instalação, tinham-se juntado e conversavam em surdina. Os coiros pensavam afastar o medo.
Armei banzé, e aproveitei o pretexto para proceder a averiguações. Acordaram os que dormiam. Todos se levantaram, carregaram as mercadorias, e, ala, atrás de quem mandava. Alguns arremedaram com os dois mariconços. Por sua causa, andávamos ali, à procura de um barulho, às cabeçadas nas árvores, e a noite estragada.
A progressão era, naturalmente, lenta. Apesar da relativa facilidade do luar, muitas vezes desatinávamos com a trajectória, e chocávamos com os obstáculos. Nada de grave,ninguém sofreu seriamente. E o barulho acentuava-se. Agora até podíamos estabelecer uma direcção. Uma hora depois, mais coisa, menos coisa, distinguiam-se gritos sobre um fundo barulhento. Atenção que isto pode dar bronca. Chamaram-me a atenção para o eventual contacto via rádio. Nem pensar. Esses gajos são doidos, e, assim, só faremos o que acharmos melhor. Nas clareiras é que se andava bem. Passados alguns minutos, ouvia-se música e o barulho de vozes crescia. Por lá, cantava-se o bailinho da Madeira...
Lindo! Que grande ronco! Já se distinguia a gaita e o cavaquinho, mais as vozes estridentes dos que mais se esforçavam na festa, e tentavam reproduzir o velho Max. Avisei que íamos chegar sem espalhafato, cada um iria tomar posição junto com os do terceiro pelotão, sem interromper a festa. E assim foi. Aproximei-me. Sorri aos que estavam mais próximos de mim. Dos Foxtrot, cada um ia ficando na periferia daquele pelotão, engrossando-o. No meio, uma fogueira, dois tocadores e cantantes. Sentados no chão, à frente de uma fogueira, o Ramalho, e mais dois ou três. Ainda se davam os últimos goles em duas garrafas de poncha. Cheirava a chouriço.
A cena que memoriso, é a seguinte. O Ramalho de cara levantada, olhar fixo num dos Foxtrot, exclama e pergunta:
- Oh!,oh!, que estais vós aqui fazendo?
Chegada do mato, vendo-se alguns rapazes que garantiam a limpeza dos quartos
Estórias contemporâneas
1 - A vitória não era certa
A actividade do IN, durante os primeiros meses de 1970, na ZA da CCaç 2679, era, surpreendentemante, escassa. Surpreendente, porque imaginávamos durante os preparativos para a comissão na Guiné, irmos ali encontrar grandes e frequentes dificuldades, do género haver um turra atrás de cada árvore. Na verdade, tendo em conta o índice de militares deslocados naquele território, era gigantesca a desproporção relativa a idênticos números de mobilizados para os grandes territórios de Angola e Moçambique, consequência da intensidade da guerra.
Claro que havia algumas minas, uma ou outra emboscada, e várias flagelações, como que a lembrar a condição beligerante. Perguntava aos meus botões, se um dia, com tantas facilidades, não nos aconteceria um grande azar. Porém, como reza o adágio, enquanto o pau vai e volta, folgam as costas, também me descontraía enquanto calcorreava picadas e trilhos. A tranquilidade que decorresse, em vez do recrudescimento da guerra. Rodopiava sobre os pés, olhava para o que alcançava da fila de pirilau, e não achava motivos para reparos. Enquanto isso, o IN preparava-se nos países da área "comunista", para o recurso a novos equipamentos que, mais tarde, viriam a surpreender o sono dos nossos Comandos, e a perturbar a vida das NT.
Mas um primeiro brinquedo foi oferecido ao PAIGC, os célebres mísseis terra-terra, lançados de estruturas portáteis, e que o IN utilizava com escassos resultados. Uma dessas vezes, lançaram quatro ou cinco bojardas sobre Piche, tiros mal regulados com impactos fora da localidade. O pessoal, porém, sem saber das consequências e intensidade do ataque, desatava em correria para os postos defensivos, ou para as valas de prtecçção. Foi o que fez o Comandante, o major Drácula, que se atirou e coseu o corpo no fundo de uma vala próxima do gabinete. Homem delgado, domador das feras milicianas, demonstrava assim, singelamente, que mais vale um cobarde vivo, do que um herói morto. Ali perto, desempenhava funções um militar corpulento, tipo para cem quilos, que também procurou refúgio na mesma vala, e, como outros o seguiam, ele tentava deslocar-se no buraco, quando, deparando com o Comandante, pediu-lhe licença, e obteve como resposta um "passa por cima".
Constatado o fim do ataque, que se consubstanciou no lançamento à distância, de meia dúzia de nísseis, o pessoal, tranquilo, regressava das valas, quando alguém, com aflição, pedia ajuda. Era o mau da fita, o terrível Drácula, vítima do traiçoeiro cagaço provocado pelo IN, agravado por algumas arrobas de um tropa em movimento. Durante alguns dias, o Comandante ficou impossibilitado de corresponder às continênciqas com a mesma dignidade marcial, exibindo o braço ao peito, em sinal da incapacidade para vencer o IN.
Aspecto de uma vala defensiva em Piche, destacando-se uma metralhadora, que me parece ser Breda
2 - A vida pode ser bela
Também o Pelotão 65 estava domiciliado em Piche. Só os graduados e especialistas eram europeus. Desempenhava as funções normais atribuídas aos Caçadores, e revelava cabal capacidade. Todavia, o apontador de morteiro que, por várias vezes, revelou excelentes qualidades no manuseio da arma, tornou-se assíduo nas áreas da cozinha e dos géneros, onde estabeleceu relações preferenciais, premiadas com doses extraordinárias do produto vinhático. Com a habituação, o competente militar arranjou uma certa dependência para a pinga, que passou a preocupar o alferes comandante do pelotão, que não foi de meias medidas, e decretou-lhe a proibição de beber vinho.
Antes de uma saída para o mato, chamou-o e mandou-o apresentar os cantis, que revelaram o conteúdo púrpura do líquido proibido. Logo ali foram despejados, mas o alferes concedeu-lhe o direito de voltar à cozinha para os atestar de água. Quando regressou, fez-se a conferência do conteúdo dos cantis, e o 65 iniciou a progressão.
Mais tarde, algures no mato, quando abancaram para o comerzinho, o alferes observou com estranheza que, a alguma distância, aquele valoroso elemento levava o morteirete à boca e saciava-se.
JMMD
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Nota de CV
Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3625: História da CCAÇ 2679 (10): Um Natal atribulado (José Manuel Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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