segunda-feira, 31 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852


Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), à direita, com mais três elementos da sua sub-unidade. Legenda da foto: "Bissau, Outubro de 69. A uma mesa de café, junto das docas de Bissau, Barbosa, o herói das emboscadas, o condutor Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de grato convívio de gente que partilha com resignação os mesmos sacrifícios. A ver se se tomamos uma 'bica' nesta mesma daqui a 2 meses (...)".

Texto e foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos:

Caro Luís, aqui vai mais um naco de prosa. Dentro das tuas possibilidades, ilustra com fotografias. Tudo farei para que isto não seja uma conversa caquética nem cheire a memórias de um autoconvencido. O que mais me está a empolgar é o fio da memória. Pegando na história do Batalhão [de Caçadores] 2852 [Bambadinca, 1968/70], verifico com curiosidade que o sector L1 era exclusivamente considerado para cá do Geba, o que não era bem assim. Eu estava para lá do Geba, e sem tropas no [regulado do] Cuor a vida do L1 seria um inferno. Ironias do destino. Prometo escrever-te segunda e terça e depois faço férias. Abraços, Mário Beja Santos.


O Saudoso Pimbas,

Cheguei a Bambadinca ao anoitecer de 2 de Agosto de 1968. Foi uma viagem de mais de 10 horas pelo Geba, salvo erro com uma paragem em Porto Gole. Deram-me no cais de Bissau uma ração de combate e comprei três peças de fruta. Houve muitos protestos com o transporte das duas pesadas caixas onde eu transportava livros e discos. Viagem relativamente aprazível, com lindos palmares, muita quietude das águas e o prazer de observar as conversas dos djilas (1) que partiam com as suas mercadorias para o Leste.

Aliás, quando cheguei a Bambadinca e me apresentei ao Comando, informaram-me que eu estava no sector L1. A três, o oficial de operações informou-me que eu ia para uma colónia de férias, Missirá e Finete:
- O régulo vai tratá-lo bem, vai lhe dar umas raparigas para não andar chateado, o Furriel Saiegh fará a guerra por si.

Já se sabe que não foi nada assim e do Saiegh (2) falaremos mais adiante. Ao reler a história do BCAC 2852, com quem convivi ao longo de mais de um ano, saltou-me à memória o nome do seu primeiro Comandante, Manuel Maria Pimentel Bastos (3), de quem guardo uma saudade sem fim. Na caserna, ele era afectusoamente tratado por Pimbas. Conversar com ele era uma delícia, pela sua cultura vastíssima e dotes soberbos de colocar a voz e teatralizar as emoções.

Sobrinho de João Bastos, o famoso criador de revistas do Parque Mayer, conhecia o meio mas adorava igualmente música clássica e frequentava concertos. A sua relação com a guerra era vaga e difusa. Era um cosmopolita acidentalmente colocado num teatro de operações, mantendo notavelmente uma conversa com nexo sem nunca arremessar palavrões ou recorrer ao calão. Os que com ele conviveram recordam a Sra Dona Maria Alzira, a mulher que sempre o acompanhou e que nos fazia rissóis de camarão na cozinha da messe.

Guardo do Pimbas algumas histórias irresistíveis. A primeira, a visita que fez em Novembro de 68 a Missirá. Fui buscá-lo na cambança do Geba, a meio da manhã, com um esquadrão impecavelmente fardado. À chegada a Finete, o Pimbas deslumbrou-se com as reverências das mulheres grandes, muito ao jeito do protocolo mandinga. Fizemos os 14 Km a conversar sobre literatura, astronomia e etnografia. Em Missirá comeu assado numa espelunca transfigurada em refeitório. E pediu música. Ouviu deliciado a Aida, cantada por Nilsson, Corelli, Bumbry e Piero di Palma, dirigida por Zubin Mehta. Acompanhava os momentos triunfais e dramáticos com uísque puro ou copos de água Perrier.

A meio da noite mandou-me patrulhar à volta de Missirá, alegando que um Comandante não podia ser apanhado à mão. Falámos um pouco da guerra e ele tranquilizou-me:
- Menino, mantém-te assim, não há guerra que te aborreça!

O Pimbas voltará a Missirá em circunstâncias dilacerantes, nos momentos patéticos da Op Anda cá (4), submetido às pressões do Hélio Felgas (5), que o desprezava. Aos poucos, o Pimbas foi-se isolando e ficando isolado, se bem que muito apoiado pelo médico, o David Payne, e alferes como Ismael Augusto e o Taco Calado (6). Nunca fora agressivo, e via a guerra com grande distância (salvo erro estivera no Maiombe, talvez em Macau e Índia dos bons tempos) e relativa serenidade. Nessa espiral de isolamento, conversámos muito e fomos úteis um ao outro.

Trocávamos livros, confidências e outras notas íntimas. A operação Lança Afiada (7) foi o ponto culminante que levou à sua queda, acusado de incapacidade, negligência e nulo sentido das realidades. Foi graças ao Pimbas que aprendi que estar numa guerra não é só uma questão de cultura, de assertividade ou convicções. Havia o problema do sentimento. Por sensibilidade, o Pimbas não estava na guerra, mas moldou-se até ao limite das suas forças por se manter enérgico e determinado. Mais tarde, visitei-o em Lisboa e ele recuperara para a vida cosmopolita o que perdera definitivamente com a humilhação da passagem à reserva.
Creio que está por fazer um conjunto de inventários: os oficiais do quadro permanente que não podiam transformar-se em oficiais prussianos e contra-guerrilheiros inflamados, por razões da trajectória profissional e moral; os oficiais milicianos, sobretudo os capitães, que eram lançados na fogueira dos acontecimentos bélicos sem qualquer preparação, pondo entre parêntesis a vida pessoal, profissional e familiar, por vezes com uma violência inaudita. Foi o que foi dado a verificar com homens como o Capitão Maltez, com quem colaborei no Xime.

Vergo-me respeitosamente à memória do Pimbas e logo à noite vou ouvir a Aída em sua homenagem.

___________

Notas de L.G.

(1) Djila: comerciante ambulante, em geral fula, futa-fula ou mandinga, que percorria a Guiné, em especial a zona leste, que tinha acesso privilegiado aos países limítrofes (Senegal e Guiné-Conacri). Em geral falava nelhor o francês do que o português. Eram considerados agentes quer da PIDE, quer do PAIGC, sendo os seus serviços (de informação) disputados por uns e por outros.

(2) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
(3) Tenente coronel de Infantaria Manuel Maria Pimental Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), transferido por motivos discipinares, tendo sido substituído em Julho de 1969 pelo ten cor inf Jovelino Pamplona Corte Real.
(4) Op Anda Cá: decorreu entre 20 e 22 de Fevereiro de 1969, com o objectivo de atacar as posições da guerrilha instalada em Madina / Belel. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(5) Coronel, na altura, comandante do Agrupamento 2957 (com sede em Bafatá), mais tarde COP 2.
(6) Alf Mil médico David Payne Rodrigues Peereira; Alf Mil Manutenção Ismael Quitério Augusto; e Alf Mil Transmissões Fernando Carvalho Taco Calado. Pertenciam ao Comando do BCAÇ 2852.
(7) Vd posts de:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

Sem comentários: