quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 1969 > O tigre de Missirá, o Alf Mil Beja Santos, como era conhecido afectuosamente pelos seus camaradas de Bambadinca, sede do BCAÇ 2852.

Texto e foto: © Beja Santos (2006)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá. "Uma recordação do dia grande do Ramadã. O velho Malã, sua aristocracia de turbante, a ostentação de suas vestes. O bom Keban, expressão de um orgulho que não morre. O padre Mané é o mais humilde do grupo, o grande conhecedor e intérprete do Corão, uma boa alma, feliz com nada que tem. O meu trajo é mesmo o meu traje, em grande estreia. Neste dia de manhã faleceu Bacari Soncó, um jovem Soncó, tísico e palúdico. A Guiné das imensas alegrias e provações".

Foto e legenda: © Beja Santos (2006)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > Recordando a sua chegada a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, escreveu o Beja Santos: "Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado" (...).
Foto: © Beja Santos (2006)



Caro Luís, o que é prometido é devido. Não sei até onde me levará este desvario pela escrita. Mas o desafio cumpre-se, a memória abre-se, as impressões avivam-se e a carta de 1 para 50000 que acabo de consultar foi como lhe tivesse pegado ontem pela última vez. Está-me a fazer bem voltar ao Cuor, onde está parte do meu coração.
Resta saber se os companheiros do blogue não estão a ler estes relatos como uma verdadeira xaropada. Se me permites a imodéstia, nem eu próprio acredito que isto está a acontecer.

Tenho andado tão concentrado a escrever sobre consumo e consumidores nos últimos 35 anos (1) que esta etapa da minha existência era um verdadeiro jardim suspenso onde raramente eu ia regar as flores. Mas é este o sal da terra, é esta a dinâmica da comunicação introduzida por um blogue. E agora vamos para férias. Depois do descanso, voltarei a este trabalho, com alegria renovada.
Teu, Mário.


A minha paixão pelo Cuor


No dia 3 de Agosto de 1968, o Capitão Lester Henriques, oficial de operações do Batalhão de Bambadinca, explicou-me a minha missão no regulado do Cuor:
- Precisamos de si para manter o Geba navegável. A partir de Bambadinca, o Geba é intransitável já que qualquer embarcação ficará destruída por um RPG2 que dispare a três metros de distância. Você comandará Finete, tem lá um pelotão de milícias e cerca de 150 almas. A sua missão é aguentar a todo o custo Missirá, em frente a três santuários do PAIGC: Madina/Belel, Sara e Sarauol. Em Missirá tem um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de mílicias. Não tem electricidade no quartel, aviso-o que não tem nenhum conforto à sua espera, à volta de Missirá é terra de ninguém e estamos em crer que vem muita gente do PAIGC a Badora à procura de alimentos. Das informações que disponho, você vai comandar alguns dos melhores soldados do mundo. Desejo-lhe as maiores felicidades. E acautele-se com as minas.

À hora aprazada, na manhã de 4 de Agosto, apresentou-se o Furriel Zacarias Saiegh (2), que me cumprimentou com um sorriso largo e uma cortesia sincera (dele falaremos longamente mais tarde). Descemos em direcção ao porto e pela primeira vez cambei para a bolanha de Finete. Chegado a Finete, recebi os cumprimentos de Basílio Soncó, um dos irmãos do régulo Malâ. A povoação impressionou-me pela pobreza e a falta de defesa: não havia abrigos, as valas eram baixas, o armamento insuficiente para suportar uma hora de canhões sem recuo e morteiros 82.

Demorou tempo a perceber que o PAIGC não queria aterrorizar Finete, temendo uma maior e mais ofensiva guarnição que pusesse a ferro e fogo as suas colunas de reabastecimento.
Inteirado das dificuldades de Finete, a nossa coluna militar partiu pela estrada de Canturé, depois Darsalame, depois Caranquecunda, finalmente Missirá.

Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado. Visitei as instalações sem fazer comentários, recebi depois cumprimentos, pois avisaram-me que o régulo e a sua família estavam à minha espera. Para tornar a cerimónia mais digna, improvisaram-se cadeiras, mandei fazer chá e avancei solenemente para um régulo outrora poderoso e cujo território era povoado de Enxalé até ao rio Gambiel descendo para Bambadinca, um minúsculo império que resultara dos acordos entre Teixeira Pinto e Infali Soncó. Depois da luta armada, o Cuor extremou-se: no mato denso ficaram os guerrilheiros, em Missirá e Finete, as famílias Mané e Soncó, leais à bandeira portuguesa.

O régulo, quando nos abraçamos, fez questão de me entregar a sua espada, como me devesse vassalagem. Eu sabia que tinha 15 segundos para dar a resposta certa. E a que dei selou a nossa amizade para sempre:
- Régulo, represento a autoridade militar, o senhor é a autoridade civil. Nesta guerra precisamos um do outro como as duas faces de uma moeda. O senhor dá-me a lealdade e eu cumprimento a minha honra dando a minha vida por esta terra.

Olhou-me no fundo dos olhos e nada mais disse. Bebemos um chá fumegante, o régulo mandou servir papaia e água fresca, cercados por toda a família, de pé. À despedida, num português pausado e harmonioso disse-me:
- Espero que fique na morança do homem branco que plantou o palmar de Gambiel.

Curioso, fui logo ver a morança e deparei-me com uma grande cama de ferro com colchão de folhelho, as barbas de milho que também se usavam nas aldeias portuguesas. Naquela morança viveu, vim apurar mais tarde, Armando Cortesão, um dos maiores cartógrafos portugueses que de facto coordenou uma plantação de palmeiras de Samatra no rio Gambiel, em frente a Massomine e Joladu. Recordo a emoção em que o Prof Eduardo Cortesão (3), seu filho, recebeu esta informação muitos anos mais tarde.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > 1969 > Aqui viveu o Beja Santos durante 15 anos, desde Agosto de 1968 a Outubro de 1969, com o seu Pel Caç Nat 52. Missirá era a sua "mais querida aldeola do mundo", escreveu ele num postal ilustrado enviado ao seu amigo, o poeta Ruy Cinatti .

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006)



Pedi para cirandar sozinho, para avaliar o que oferecia o destino. O sol punha-se rapidamente como uma bola de fogo meteórica que caia sobre os palmares (é assim e sempre nos trópicos). Eu ouvia o crioulo, sem entender praticamente nada. Mulheres esquálidas baixavam a cabeça à minha passagem. As crianças com enormes barrigas gralharam para mim. Senti-me num cenário sobrenatural e pela primeira vez, desde que desembarca do Uíge, perguntei-me qual o sentido que eu iria dar àquela guerra.

Penso que nessa noite não dormi praticamente nada, ouvindo os roncos das transmissões, as vozes de quem passava perto. Rezei, pedindo forças a Deus. Como se verá daqui adiante, Ele foi muitíssmo pródigo comigo. Em Missirá fiz-me homem, contraguerrilheiro, professor de crianças, consultor de consciências e tornei-me irmão inesperado de muita gente. A 5 de Agosto de 1968 nasceu a minha paixão por Missirá. Lá voltei em 1990 e 1991. O sofrimento, 20 anos depois, foi enorme. Mas a paixão estava intocável. Dessa paixão, da guerra sanguinolenta e dos feitos dos meus soldados, dos Mané e dos Soncó, falaremos mais adiante.

© Beja Santos (2006)

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Notas de L.G.

(1) O Beja Santos é, profissionalmente, assessor principal do Instituto do Consumidor, o organismo da Administração Pública cuja missão é promover e salvaguardar os direitos dos consumidores. É autor ou co-autor de quase duas dezenas publicações sobre estas matérias. Pioneiro da defesa dos direitos do consumidor no nosso país, "cidadão profissional" (como ele gosta de se apresentar), deu 6 em Janeiro de 2004 uma entrevista ao jornalista Carlos Vaz Marques, programa Pessoal... e Transmissível, Rádio TSF, cujo registo áudio está disponível no respectivo sítio.

(2) Furriel Saiegh: Comandante interino do Pel Caç Nat 52, durante um ano, antes da chegada do Beja Santos. Mais tarde ingressaria na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência.

(3) Eduardo Cortesão (1919-1991), médico, psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, director do Hospital de Miguel Bombardada, introdutor entre nós da grupanálise. O seu pai, Armando Cortesão (1891-1977), era um cartógrafo de renome mundial, co-autor, com A. Teixeira da Mota, de obras de referência como Portugaliae Monumenta Cartographica (1960-1962), em seis volumes.

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