quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

Terceira parte de um conjunto de três posts do João Tunes (1):


Fonte: Bota Acima, blogue do João Tunes > 6 de Abril de 2004


E O JIPE NUNCA VOOU

As noites dos oficiais em Catió seguiam a rotina própria de quem não tem outra escolha que dar cabo do tempo. Esperando que a comissão chegasse ao fim. Esperando. Não havia trincheiras nem valas e os edifícios eram todos cobertos (apenas) de chapas de zinco. Spínola não permitiu a abertura de valas de abrigo para que a tropa não se degradasse em espírito defensivo. Isto dizia ele. Não havia condições para se sair do quartel e, mesmo que houvesse, não havia para onde ir.

Na época, Catió já estava isolada dentro da zona ocupada pelo PAIGC. O abastecimento era feito apenas de avião. E estes não voavam de noite nem quando as condições meteorológicas eram adversas. Na época das chuvas, então, passavam-se semanas de completo isolamento. A comida era má e repetitiva e a falta de frescos (legumes, tubérculos, fruta) muito frequente. Passavam-se semanas a fio em que, ao almoço e ao jantar, se repetia a ementa de enlatados (comemos chispe com feijão de conserva, dias e dias). Quando a repugnância não permitia ingerir mais chispe com feijão, o recurso era consumir quilos e quilos de ostras e camarões, em que o rio próximo era rico, comprados à população a preços insignificantes. Até se enjoar a ostra e o camarão e se conseguir voltar a atacar a chispalhada enlatada.

Era usual o Nino Vieira mandar morteiradas para flagelar o quartel durante a noite. Com a continuação, a direcção de tiro era eficiente e praticamente todas as granadas acertavam dentro do quartel. Havia que retaliar de imediato com artilharia pesada e tratar das baixas quando as havia. Depois, avisar Bissau e esperar pela madrugada seguinte para que os caças Fiat fizessem estragos nas posições do PAIGC e os helis evacuassem os mais azarados na roleta da guerra.

Naquelas condições, terminado o jantar, não apetecia mesmo nada ir para a cama. Porque o que custava mais era estar-se deitado na cama, olhando o tecto zincado e constatar que aquilo era o mesmo que uma mera folha de papel como obstáculo à entrada de um morteiro. Depois de jantar, todos os oficiais se juntavam no bar e bebia-se, bebia-se, até deixar de se ter medo por não se ter lucidez para se sentir o quer que fosse. Os serões iam decorrendo tristes porque se estava num estado de letargia de espera, sempre à espera. Por volta das onze da noite, era habitual o Major Rodrigues, Segundo Comandante e com uma licenciatura em Farmácia, ir ao quarto buscar um calhamaço de Química Orgânica e organizar comigo (único parceiro com formação em Química) uma interminável sabatina de acerto de equações de reacções químicas. Até as cabeças nos doerem e termos coragem inconsciente de irmos à deita.

Uma certa noite, o Major Pessoa, o Oficial de Operações, lembrou-se de fazer um inquérito e perguntar aos presentes quem era a favor da continuação da guerra contra o PAIGC. Só um alferes miliciano (que, entretanto, metera os papéis para seguir carreira na GNR e que os restantes desprezavam por ser chico) disse que sim, concordava com a presença portuguesa na Guiné. Todos os restantes, oficiais, milicianos e de carreira, entendiam que era um estupidez teimar numa guerra perdida. Na altura, estava longe de saber que o Movimento dos Capitães já germinava em algumas cabeças...

Às vezes, o Comandante, Tenente-Coronel Melo, não se aguentava com os copos e procedia a uma liturgia que se repetiu muitas vezes. Levantava-se a custo e dizia-nos, autoritário:
- Senhores oficiais, façam favor de embarcar no meu jipe.

E lá ia toda aquela dezena de oficiais que havia no quartel, à molhada numa viatura de quatro lugares. O Comandante compunha a boina e conduzia o jipe para a pista de aviação em terra batida. Durante uma dúzia de vezes, o Tenente-Coronel acelerava o jipe pela pista fora, simulando o descolar de um avião.

Aquelas gincanas eram acompanhadas pelos gritos desafinados do oficialato etilizado de Catió, em que dominavam "TIREM-ME DAQUI!", "A GUINÉ É UMA MERDA!", "QUERO IR PRA CASA!", "MORTE AO CABRÃO DO CACO!", para só citar as passíveis de transcrição.

O jipe do Comandante nunca levantou voo. Quando convencido desta evidência, ele parava o jipe e dizia:
- Como esta merda não levanta voo, vamos fazer uma manifestação contra a PIDE.

Era então que ele embalava o jipe até parar frente às instalações da delegação da PIDE em Catió (era fora do quartel e chefiada por um agente europeu que vivia lá com a mulher). Então, normalmente por volta das duas da manhã, o oficialato da Guiné deitava cá para fora toda a força que restava e gritava, em uníssono, "MORTE À PIDE!".

Depois de o protesto se repetir meia dúzia de vezes, era o tempo de regresso, darmos voltas pelo escuro até irmos para a cama e esperar, esperar sempre, confiando que a noite não trouxesse trovoada. E assim se foi fazendo a catarse da espera em Catió.

A maioria de nós regressou. Não no jipe do Tenente-Coronel Melo mas sim de navio ou de avião requisitado à TAP. Andamos por aí com os parafusos mal apertados. Mas houve tantos, tantos, que só esperaram. Sem direito a viagem de volta. E sem terem terminado a catarse. Apenas remetidos ao silêncio absoluto com a vantagem única de não ouvirem os patrioteiros de hoje, saudosistas do império, dizerem que estivemos ali a defender a Pátria.



Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes


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Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

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