terça-feira, 23 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2206: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (9): Saí do filme muito melhor comigo (Virgínio Briote)

Guiné > Bissau > 1965 > A equipa de comandos do Alf Mil Virgínio Briote desembarca do heli, pronto para a acção.

Foto: © Virgínio Briote (2006). Direitos reservados.

1. Com a autorização do co-editor Virgínio Briote (1), transcreve-se a seguir o mail que ele enviou à Diana Andringa, co-realizadora do filme "As Duas Faces da Guerra":


Gostei muito do vosso trabalho. Do seu e do Flora Gomes (2). Da Diana estou habituado a ver obras empenhadas, sem faltar ao rigor. Do Flora, vi dois filmes que passaram na RTP. Por isso, não foi surpresa, para mim, a qualidade que mostraram.
Das Duas Faces da Guerra, alguém pode dizer que é um trabalho de um face e meia. Porquê? Porque da nossa presença mostra apenas a face da guerra. Não mostra nada do outro trabalho que foi feito junto das populações. Casas, assistência médica, higiene, alimentação. Muitos dizem que em 11 anos de guerra se fez mais pela população que nos séculos anteriores. Mas esse facto também fazia parte da guerra. Fazia parte da chamada psico-social. Não digo aquela que era determinada pelas Neps militares. Era a que os nossos militares, localmente, podiam fazer por eles e para eles e que se estendia à população. Claro que isso não foi muito mostrado. Nem provavelmente era esse o objectivo do documentário e 1 hora e 40 minutos é 1h40', não dá para tudo.

O documentário é belo, saí da lá como gostaria de ter saído. Com mais paz dentro de mim e se fosse possível a gostar ainda mais daquela gente. Saí de lá em 1967. Pertenci a uma força ofensiva, quando íamos para o mato o nosso objectivo era destruir o então chamado IN.

Deixei a Guiné mal comigo. A odiar-me e a procurar esquecer a Guiné e aquelas gentes. Nos anos a seguir, envolvido na minha actividade profissional, quando alguém falava da guerra colonial, o assunto não me dizia respeito. Eu não queria lá ter estado, por isso eu não estive lá. Como se quisesse esconder de mim próprio o facto de ter lutado empenhadamente do lado errado.

Ver aquela gente falar sem rancor, aqueles a quem eu acordava de madrugada com tiros e granadas, foi uma lição para mim. Não me absolveu, mas como escrevo atrás saí de lá melhor comigo.
Que mais posso dizer, Diana? Que gostei, é tudo.

vb
____________

Nota do editor L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

Blogue do Virgínio Briote > Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas Guiné. Ir e voltar. 1965 e 1967. Histórias baseadas em factos reais, mas vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu . (Fevereiro de 2006 / Fevereiro de 2007).

Aqui fica um cheirinho de um dos blogues mais intimistas sobre a experiência, humana e operacional, de um oficial miliciano, comando, na Guiné...

Fevereiro 26, 2006

Um guia

22. TRADIÇÃO É PARA QUEBRAR TAMBÉM!

Tinha sido capturado numa emboscada que a tropa fizera junto a Mantida. Ouvira um tuga, branco de barba preta, dizer a outro, amarra o gajo, amarra-o já, eu vou-me àquele. Nem sentira as cordas que lhe prenderam nas mãos, que as pernas não precisavam. Deitaram-no numa maca, camisa e calças em sangue, atordoado, só se lembrara que caíra para trás, sem forças. Deram-lhe uma injecção, nem sentira, só vira a seringa na mão do soldado de cigarro na boca, cinza a cair por ele abaixo. Adormecera logo, mal o transporte arrancou. (...)


(2) Vd. post anteriores:

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2202: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (8): Voltei a Cufar e a chafurdar nas bolanhas e rios de maré (Mário Fitas)

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2200: A nossa Tabanca e As Duas Faces da Guerra (7): Comentário de Inácio Silva, da CART 2732, Mansabá, 1970/72

21 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2199: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (6): A crítica de Leopoldo Amado

21 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2198: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (5): Agradecimento de Diana Andringa

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2196: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (3): Para a petite histoire do filme (Diana Andringa)

18 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2189: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (2): Febre de guerra ? Espero pelo filme em DVD (Torcato Mendonça)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2187: A nossa Tabanca Grande e o filme As Duas Faces da Guerra (1): Estou interessado em comprar o DVD (Fernando Inácio)

Ver ainda:

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2194: Pensamento do dia (13): É na guerra que se revela o pior e o melhor das pessoas (Diana Andringa, Visão, nº 763, de ontem)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2186: Uma guerra, duas vitórias: entrevista de Diana Andringa à RTP África (Luís Graça)

8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2165: As Duas Faces da Guerra, filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, no DocLisboa2007 (18-28 Outubro 2007)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Virginio, ao fim destes anos vejo que não houve um único comentário a este teu poste...

Na realidade,poucos dos antigos combatentes que fizeram a guerra da Guiné (como tu e eu), têm a lucidez e a coragem de se expor em público como tu aqui o fazes...

O nosso luto é patológico... E todavia temos de fazer as pazes connosco e com os outros (incluindo aqueles que nós odiámos e nos odiaram, como acontece em qualquer guerra, entre "inimigos"...).

Fazes sempre falta neste blogue que ajudaste a construir l. Ab, Luís

Hélder Valério disse...

Olá Luís
Olá Briote

Tens razão, em parte.
Não houve, em tempo oportuno, comentários ao post do Briote mas recordo-me de ter feito um comentário favorável, não neste post em causa mas sim do de pós-filme.
Nele dizia que tinha gostado, que me pareceu uma apresentação não facciosa, honesta.
Claro que recebi logo uma "amoestação" e isso retraiu-me, já que estava no blogue havia pouco tempo. Mas também percebi que, enquanto que as reflexões do Briote são sinceras e refletem o "sangramento" do seu coração e, já agora, também a "redenção", os comentários de então partiam do princípio de que "aquele filme" era propaganda do IN e que por isso devia ser repudiado e não valorizado.

Mas, pronto, aqui e agora, saliento a verticalidade do Briote e a minha compreensão para os seus pontos de vista.

Um grande abraço
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Camaradas, custou-me muito ver-me livre da pele que trouxe da Guiné. Depois de tanta mudança que a minha vida levou, idêntica à de todos os que por lá andaram, consegui esquecer a Guiné. De tal forma que eu nem reagia às histórias de alguém que tinha vindo daquelas terras. Esqueci. Para mim era um assunto arrumado. Até contactos com Camaradas. Acabou. 40 e cinco anos se passaram.
E um dia reformei-me. E talvez nesse dia ou no seguinte vi que não tinha nada para fazer e nem me apetecia pensar. Rodeavam-mwe livros e mais livros nas prateleiras dos armários, caixotes fechados há dezenas de anos, inúmera documentação sobre os meus 45 anos de actividade profissional e pensei, aimda vou ter que dar uma arrumadela nisto. E talvez ainda tenha qualquer coisa minha lá na casa da minha Mãe, lá para o Norte. Pois, foi numa deslocação ao Minho, a casa da minha Mãe que subi ao "falso" e encontrei a Guiné, a Guiné onde eu tinha estado de 1965 a 1967. Numa velha mala, estava lá tudo, incluindo o material que recolhi aquando do fecho daa CCmds do CTIG, fotos e documentação, todo o tipo de relatórios do tempo do major Dinis, passando pelo cap. Rubim e terminando no cap. Garcia Leandro. Comecei a ler e, afinal eu também por lá tinha andado. Abraço, Camaradas!
V Briote