terça-feira, 23 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (Abril de 1968/Janeiro de 1969) > Um pequeno luxo, no aquartelamento em construção (e rapidamente abandonada meses depois, em Janeiro de 1969): a messe de oficiais... No chão, assinalado a vermelho, o famigerado repelente contra os mosquitos...


Foto: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.

1. Damos hoje início a uma nova série: Humor de caserna. Será iniciada com a reprodução do post de 9 de Novembro de 2004 > Portugas que merecem as nossas palmas - XII: António Lobo Antunes (Luís Graça)


É seguramente muito melhor a escrever livros do que a dar entrevistas. O gajo (o senhor gajo...) não se sente bem no papel de entrevistado: é desconfortável lê-lo, dá a ideia de que anda com papelinhos amarelos no bolso, daqueles de tipo autocolante, com citações de gajos tão ou mais famosos do que ele, com frases feitas, e pequenas histórias prontas a servir...

Achei-o mais piegas, mais ternurento, menos cínico, mais portuga, na entrevista que deu hoje ao Adelino Gomes, no Público. A pretexto da homenagem que lhe estão a fazer, a esta hora, em Lisboa. E do seu último romance, Eu hei-de amar uma pedra (Lisboa: D. Quixote, 2004, 616 pp., 19 euros no hipermercado mais próximo de si; se for adolescente e não tiver graveto, faça um choradinho junto do autor, numa sessão de autógrafos, de preferência na presença do editor).

A homenagem é a dos seus vinte e cinco anos de carreira literária. E a da sua consagração de escritor de nível mundial. Vão cá estar grandes críticos literários: a portuguesa Maria Alzira Seixo, a espanhola Maria Luisa Blanco, o sueco Mats Gellerfelt, o alemão Wolfram Schütte. Ele, António Lobo Antunes, o melhor escritor de língua portuguesa da actualidade, podia já dar-se ao luxo de fazer birras, de mandar os portugas à merda, de cobrar a factura por ser mal amado na sua terra e no Hospital Miguel Bombarda. Mas não, ele faz o frete de ir ao Teatro Muncipal São Luís, de dar entrevistas, de autografar livros, de mostrar um sorriso amarelo aos leitores que lhe compram os livros e o lêem.

Com a idade e a fama, o nosso António está a ficar mais consensual, mais nacional, mais bem comportado. A sua ferida narcísica está melhor. Ou, pelo menos, não está pior. E os portugas rendem-se à evidência do êxito e, mesmo se o não lêem nem o entendem, tiram-lhe o chapéu. É um dos nossos poucos produtos de exportação. É, pá, o gajo (o senhor gajo...) tem mesmo de ser bom, para ter o êxito que tem na estranja, na Alemanha, na Suécia, na França, nos States... Esse argumento convence o papalvo, e o portuga pode ser saloio mas não é parvo.

E o Sampaio, que é da geração dele, e amigo dele e da família dele, achou por bem dar-lhe a grã-cruz-de-não-sei-quê. Espero que não tenha sido o Sampaio, o irmão do Daniel Sampaio, mas o Presidente, o Presidente de todos os portugas.

Este país é pequeno (em latim, parvulu, que deu parvo). E há vizinhos e amigos por todo o lado. Este país continua a ser o Bairro de Benfica dos anos cinquenta e sessenta. A Benfica das hortas e dos quintais, da couve portuguesa e dos coentros. E depois temos a lágrima fácil ao canto do olho.
Eu gosto do António, do escritor, que não do homem (que não conheço, vi-o uma vez na Feira do Livro, com o ar de quem estava ali a fazer um grande frete, contrariamente ao Zé Cardoso Pires, que era a humanidade em pessoa, um e outro autografando livros aos meus filhos, a Joana e o João). Confesso que não sou um serial reader do António, mas quando pego num livro do gajo lei-o de rajada.

Não resisto a fazer copy and paste desta carta que ele mandou de Angola a um dos manos mais novos, quando esteve no cu de Judas [, Era então alferes miliciano médico, tinha 28 anos, e estava recém-casado.] Vem hoje no Público.

O estilo é o da Guidinha, do saudoso Stau Monteiro. Presumo que a carta seja autêntica, e que o original, agora desenterrado do baú, esteja nas mãos do irmão. Reconheço nele (e nela, a carta) o estilo desalinhado e irreverente do futuro grande escritor. Um gajo como ele não precisa de ser adjectivado nem muito menos da grã-cruz-de-não-sei-quantas. O Portugal que o viu nascer é que precisa de homanegeá-lo. Acredito que ele não se sinta bem na sua pele, ao ser hoje apaparicado por tanta gente, no São Luís. E de ter honras de telejornal. Ele, no fundo, gosta, diz que não gosta, mas gosta, como qualquer primata social...

A vaidade é própria dos primatas, que são animais sociais, territoriais e... predadores. E vai gostar de ainda, um dia destes, receber o Nobel. É ele e nós. Com ele há uma parte de nós, dos portugas, que é apaparicada. E nós estamos mesmo com necessidade e desejo de sermos apaparicados.

Tivemos o Saramago, outro mal amado; temos agora o António, que está de reserva. Ainda o temos o eterno Manuel de Oliveira, que já está no Guiness por ser o realizador mais velho do mundo ainda a trabalhar... Não temos muito mais, talvez o Siza Vieira, talvez a Paula Rego, talvez o António Damásio, talvez o Figo, talvez até o Francis Obikwelo e o Deco, outros dois portugas de corpo inteiro...

Não vou dizer que o gajo, o António, o Lobo Antunes (1), é um génio e escreve bem, que isso ele já sabe, a gente já sabe. A crítica reconhece-o. Mas palmas, pelo menos, apetece-me dar-lhas e mandar-lhas neste dia. O António é um dos portugas que merece as minhas, as nossas palmas. Não fui à tua festa, pá, mas fiz-me de certo modo representar por cinquenta por cento dos meus genes. Já comprei o teu último romance e tenho-o à mesa de cabeceira: prometo lê-lo por estes dias de Outono.

Luís Graça

PS - Este escrito está datado. É de 2004. E pretendia ser uma pequena, singela, ternurenta, homenagem ao escritor António Lobo Antunes, por parte de um dos seus leitores. Hoje, passados três anos, há mais razões para estender essa homenagem ao homem (e ao nosso camarada), que sorriu à morte com meia cara... Quem se olha ao espelho e vê a morte, como muitos de nós que estivemos na guerra, tem muito respeito por quem a enfrenta com coragem, à morte, à adversidade, à doença... António, viveremos até aos cem anos, para continuar a ler as tuas fabulosas crónicas e perdermo-nos nos labirintos dos teus romances e das nossas vidas... Desculpa o tratamento por tu, mas aqui na nossa Tabanca Grande todos somos iguais, somos camaradas. Além disso, ainda não te puseram no Panteão Nacional, com a bandeira verde-rubra por cima!... Figas, canhoto!... E obrigado pela sopa que nos tens dado.

2. Humor de caserna > A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (2)

Carta da Guerra em Angola Enviada por Lobo Antunes ao Irmão Mais Novo
Público, Terça-feira, 9 de Novembro de 2004 (com a devida vénia...)

Remetente:
António Lobo Antunes
Alferes-médico SPM 2676

Ex.mo Sr. Manuel Lobo Antunes
Travessa dos Arneiros, 14
Lisboa 4
Metrópole

Redação: A Sopa
27-04-1971, em Ninda

Querido Manuel,

Eu estou em Angola. Eu gosto muito de Angola. Eu vim para Angola num barco muito grande, com muitos soldados. Eu vou voltar de avião. Eu vou aí em Setembro. Eu tenho patilhas. Eu tenho cabelo rapado. Eu tenho muitas saudades de todos, tais como da Margarida. Angola é em África. África tem leões, macacos, gazelas, elefantes, pacaças, palancas e muitos pretos. Os pretos tem um cabelo com muitos caracóis e dentes brancos. Os pretos não falam português, falam preto. A gente não percebe os pretos a falar preto. Os pretos às vezes falam português. Os portugueses nunca falam preto. Em Angola há muito calor todo o dia. Eu tenho uma espingarda mas ainda não matei ninguém. Eu visto farda. Farda é um fato igual para todos. Eu como coisas que não gosto de comer mas como porque há muita gente com fome e não devemos desperdiçar. A colher fica em pé na sopa de tal maneira a sopa é grossa. A sopa serve também para pegar tijolos uns aos outros. Há casas que foram feitas graças à sopa. A sopa tem muitas coisas dentro, que a gente tem de mastigar, e às vezes corta-se a sopa com a faca. A sopa é mais dura do que um bife muito duro. As colheres de sopa caiem no estômago da gente com um barulho parecido com pedras a cair num poço. Eu não gosto de sopa. Eu nunca mais como sopa. Já me nasceram dentes na barriga para moer a sopa, e os meus intestinos, a fazerem a digestão da sopa, parecem mesmo um motor de traineira. Quando me sento à mesa e vem a sopa tenho medo porque a sopa parece cimento. Eu estou forrado de sopa por dentro. Quando me assoo sai sopa do nariz. Quando espirro espirro gotinhas de sopa. Outro dia tiraram-me sangue e um talo de couve saiu-me da veia e entupiu a agulha. De vez em quando, quando há feridos, fazem-se transfusões de sopa, e a gente vê o grão e o feijão da sopa a saírem de um para entrarem no outro. Quando há feridas é preciso desinfectar a sopa que sai da ferida. Se se espreme uma borbulha aparecem logo bagos de arroz de sopa. A sopa é o nosso pior inimigo, a espiar a gente do fundo das panelas duas vezes por dia, ao almoço e ao jantar, a sopa ataca-nos. A sopa já fez muitas baixas. Às vezes a sopa traz brindes como os bolos-reis tais como baratas, insectos, borboletas, que morreram envenenados pela sopa. De maneira que a gente vai começar a usar a sopa como remédio para os ratos. Os americanos já nos pediram para a gente mandar sopa para o Vietname, porque os comunistas morrem todos se a comerem. Eu gostava muito de dar sopa à sopa. Eu vou acabar. São horas de comer a minha sopa.

António Lobo Antunes
Vítima nº 07890263 da sopa
Morto no campo de batalha do refeitório com um ataque agudo de sopa

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

(2) A bianda, o tacho, a comes-e-bebes, o rancho, além do álcool, era talvez a principal preocupação do tuga na Guiné... O supremo luxo era um bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo, em Bissau, Bafatá, Nova Lamego, regado com vinho verde ou com umas bazucas... Veja-se, nos nossos cancioneiros, como o fantasma da fome, a pulsão da comida (e da bebida), inspirava os nossos poetas e humoristas de caserna. É apenas uma amostra... Também deveria fazer parte de qualquer filme-documentário sobre o qutodiano das NT, nos buracos (aquartelamentos e destacamentos) em que vivia... Esta também é outra face da guerra. Talvez um dia alguém a consiga passar para o garnde écrã. Como diz o Jorge Cabral, a 'nossa' guerra nãi teve apenas duas faces, era caleidoscópio...

(...) A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê
É preciso protecção.

(...) Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!

Hino de Gandembel


(...) Quando cheguei a Bolama
Muita fome lá passei
De fome julguei morrer
Mas desta ainda escapei.

(...) De noite cheguei a Empada
Estava tudo iluminado,
De manhã fui passear,
Fiquei decepcionado.

Comecei a comer melhor
Depois que cá cheguei,
Mas foi à minha custa,
Pois cá me desenrasquei.

Houve cabritos e cabras,
Mortos a tiro e paulada
Que para matar a fome
Não nos custava nada.

Neste rol de matança
Também há porcos e leitões
Que para nós mais tarde
São grandes recordações. (...)

Cancioneiro de Empada


CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês.
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968

Cancioneiro do Xime

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