O Marechal Spínola, a partir de retrato oficial na Presidência da República
1. Mensagem de Joana Santos:
Caro Luís Graça,
A pedido da minha mãe, junto um texto seu, destinado ao Blogue.
Depois seguirão mais dois e um outro para o Carnaval, segundo me disse.
Cumprimentos nossos,
Joana Beja Santos
2. Há uns dias atrás a Cristina Allen tinha-me respondido a um mail meu, em que procurava inteirar-me da sua saúde (ela acabava de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica) ao mesmo tempo que lhe dava notícias de uma família com que ela havia privado na sua lua de mel em Bissau.
Caro Luís Graça,
Estou a recuperar bem, em casa, e agradeço o seu cuidado. Reenviou-me uma mensagem preciosa que me traz notícias da família que mais me acarinhou em Bissau.É interessante saber como o seu Blogue tem vindo a ser um ponto de encontro de pessoas que considerava perdidas para sempre. Já cumpri os meus 53 dias, e em breve receberá notícias minhas. Aterrei na Portela com todo o vigor.
Um abraço, Cristina
3. Os meus 53 dias de brasa em Bissau > Desespero controlado (II) (*)
Breve história do alguidar comunitário, com fim feliz
(Ao Cabral, que me desejou força!)
Referi, no último texto que enviei, que deixara o Alferes Beja Santos em “banho de Maria”, no Hospital Militar.
Para quem cozinha, nada de especial nesta comparação. O calor insuportável daquele quarto de três, a atmosfera carregada de fumo, o fervilhar dos ânimos, tinham qualquer coisa de um pudim, cozido em calor lento, que, por vezes, se deslaçava e tinha, lá no fundo, uma camada espessa, inexoravelmente queimada. O que estava certo. Aquela terapia só de leve se exercia, à superfície dos comportamentos. O resto descia ao fundo da memória e se, por vezes, se soltavam bolhas de agressividade libertadora e benfazeja, afadigavam-se logo os enfermeiros em alisá-las, à força de injecções e tranquilizantes comprimidos.
Considerações à parte, vivia-se o quotidiano.
Fachada do HM 241, Bissau
Nessa manhã em que seria hospitalizado, o Mário e eu faríamos as malas e procuraríamos outro quarto, na “Berta”. Estava ali um espaço fresco e sombrio, com uma larga cama. Sem desfazer as malas, desci para o almoço e deparei com uma execrável salada de feijão-frade com atum. Os feijões, minúsculos e mal cozidos, o atum, na prática inexistente, cebola avonde, a gritar pela intervenção rápida da escova e pasta de dentes! Pousei ainda os talheres, mas (“saco limpo cá tá firma!”) enfrentei o questionável cozinhado.
Uma mãozinha leve tocou-me no ombro. Era a Berta, untuosa, que me perguntava se gostara do almoço (“sim.”), se o meu marido vinha almoçar (“não, foi hospitalizado.”), por quanto tempo (“não sei”) e, por fim, o tiro certeiro: num quarto de casal, eu não podia ficar, seria perder dinheiro com uma pessoa que ocupava um quarto de duas… mas ela conhecia uma senhora que alugava quartos, pessoa muito decente, e eu poderia ir comer ali as refeições (“é o vais!”, pensei…).
A senhora trabalhava nos Correios, queria eu ir já? Respondi-lhe que me arranjassem um táxi, quanto antes, me dessem a morada, e ela prontificou-se. O motorista chegou e era ali mesmo, ao cimo de uma avenida, que terminava na Praça do Império. Conheci, assim, o João Carlos, e o seu táxi.
A nova senhoria mostrou-me um quarto em cuja cama eu mal cabia, e, de seguida, a casa de banho, à qual não chegava água corrente, e onde nada funcionava, a não ser um enorme alguidar onde, desculpava-se, eu teria que mergulhar a esponja. O democrático alguidar tinha um suspeito fundo de sarro, mas lá lhe fui dando a semana adiantada, que me exigia. Farejei o armário, que cheirava a desinfectante e a naftalina, espalhei pelo quarto umas gotas de Miss Dior (oh vanitas!) e adormeci exausta. Acordei a tempo de sair, comprar água “Perrier” (não havia “Vichy”) e mais um frasco de álcool.
Pior seria a noite. Comecei por secar a bacia do lavatório com a toalha comunal. Entornei-lhe dentro uma boa porção de álcool e acendi um fósforo. Ali estava a labareda das minhas desinfecções. Porém, daquela vez queimei a franja. E, de novo, a toalha me ajudou. Só então deitei a “Perrier” no lavatório, aguardando que as bolhas se desfizessem. Lavei a cara, limpando-a à fralda da camisa.
Nessa noite, ainda tive que ouvir o Roberto Carlos, aos berros. E travei uma incansável batalha com uma grande barata de asas. Acendi a luz para ler e lá estava ela, em cima da mesa-de-cabeceira. Parecia olhar-me e saber, de antemão, o que faria. Tinha o chinelo na mão e, mal o erguia, a barata voava. Perseguia-a, brandindo a arma de arremesso, e ela voava, zumbia. Quando voltava a atirar-lha, ela saltava e, atraída pela luz do candeeiro, voltava, inocentemente, ao seu poiso. Recomeçava a batalha, e ficávamos na mesma. Deixei-a, enfim, gozar do espaço conquistado. Experimentando um “Vesparax” do David [Payne], dormi a sono solto.
Pois foi exactamente à esplanada da aleivosa Berta que, repetidos os rituais do álcool, dos fósforos e sumárias abluções, eu fui parar para um frugal pequeno-almoço, na manhã seguinte.
Talvez o Padre Afonso, que tinha sempre um cafezinho e biscoitos das suas “confessadas” para repartir comigo, conhecesse alguém que me albergasse com alguma dignidade. Pus-me a caminho, mas não fui longe. As tiras da sandália do pé direito soltaram-se quase todas da sola e, chinelando, fui até à praça de táxis – uma eternidade a alcançá-la.
De novo, o João Carlos, o motorista que falava português. “Para o Pintozinho!”, disse, e ele: “Mas é já ali”. Mostrei-lhe a sandália e ele riu-se, dizendo que já tinha reparado. Ríamos os dois. Fiz-lhe um gesto com a sandália desfeita – ou parava de rir ou levava com ela! Ameaça vã, o rapaz não parava de rir. Recusou a gorjeta, e disse-me que, quando precisasse, bastava telefonar para a praça, estacionava sempre lá. Escreveu o nome e o número num papel. A pária da “Berta” encontrara transporte privado.
Tirei a outra sandália e subi descalça as escadas interiores. Da secção dos relógios e ourivesaria saltou uma mulher jovem, aos gritos: “MariCristina! MariCristina!” Reconheci o sotaque alentejano de Aljustrel, a minha terra. Houve um apertado abraço. Inesperada, estava ali a Fernanda Ramires, das mãos e agulha de ouro que, tão jovem, fazia maravilhas de costura.
Desabei em lágrimas para cima dela, que também limpava as suas, comovida. Sua mãe, sua avó, tinham sido nossas vizinhas, acudido às nossas doenças, às nossas mortes, e havia, entre nós todas, uma cumplicidade amiga. Não tinha a Ilda, sua mãe, ajudado a amortalhar a minha avó?
Contei-lhe da Berta, do alguidar, da franja queimada. Fizemos planos. O Quito, seu marido, havia de estar de acordo. E eu, já de sandálias novas, tinha na mão o molho de chaves da sua casa. Eram minhas. Tudo estaria por minha conta. Passava a ter uma sala, com aparelhagem para a minha música, cozinha, sala de jantar, um quarto fresco, uma casa de banho de luxo, pátio, lavadeira-engomadeira e a “bajuda” que escolhi, Joana. Bem podia o meu marido mandar-me embora, que eu não ia! Estava ali eu, a minha rocha, o meu respeito, o meu quartel.
Em uma dessas manhãs calmas que ali vivi, vi passar Spínola, quase nosso vizinho, num carro assustador (!), pernas abertas, entre sacos (de quê?) – outra pose para o seu retrato. Fiz-lhe um largo e divertido adeus. Um breve aceno seu – na minha rua, tinha ele público.
Foi o Luís Graça que colocou o seu retrato no Blogue? E, junto a ele, não estará o Bruno? – “Bruno, aponta!” (outro dito de Bissau).
Cristina Allen, Fevereiro de 2009
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Nota do editor L.G.:
(*) Vd. poste anterior da série > 9 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...
4 comentários:
Mais Força Cristina!Quanto à D.Berta está viva e continua com a
pensão e restaurante...
Um Abraço de Solidariedade.
Jorge Cabral
Cumprimentos.
Mais uma vez bravo para esta mulher de nome Cristina.
Porque não um livro contando a outra face da guerra e, note-se, naquela altura 53 dias era muito tempo e concerteza muita "estória".
Soberbo e real o texto.
CMSantos
Mansambo 68/69
A Berta já deu de comer a tantas gerações de portugueses, muitas vezes inventando refeições a partir do nada, que não me admiro que um dia seja erguido um monumento pela comunidade portuguesa em Bissau a essa senhora.
Tem força o texto e a Cristina também.O meu camarada da 2339, CM Santos e contemporâneo do Mário B. Santos,diz e bem - a outra face da guerra...soberbo e real o texto. Mais uns relatos de 53 dias em 1969 são necessários.Aplaudo. Mostra efectivamente a outra face de uma guerra estúpida, traiçoeira, cruel...guerra e não só. A nossa geração viu muito.Lembra-se?
Depois Aljustrel e saltei. Volte lá, regrida a tempos antes de Bissau e, 56 Quilómetros para o lado do mar havia (e há) uma Vila Linda, capital do maior concelho deste país; ainda antes dos tempos de Bissau, ainda em Aljustrel, cerca de 50 Kms para o lado contrário estava a Cidade. Quer num quer noutro lado vivia um sujeito. Um dia mandaram-no defender isto e aquilo... foi e voltou farto...correu em busca do jovem de outrora, que vivia á direita e á esquerda de Aljustrel...nunca o e se encontrou mais. Correu, correu e"exilou-se", gosta muito daqueles lugares, hoje de passagem a caminho do outro Sul...mas sabe e compreende bem como dois alentejanos se encontram em qualquer parte do mundo, mesmo ele que nasceu mais a Sul e, durante vinte, ou mais anos,viveu na planície doirada...os pais ainda lá estão mas, como não os pode abraçar passa na A2...
Isto era breve comentário. Eu que parei a escrita e os comentários...não cumpri e trangredi...Vidas.Este blogue...
Abraços para a Cristina e Joana,
Torcato
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